26 de agosto de 2012

Uma infernal Revolução para extirpar a memória do Antigo Regime

No post anterior [“Diz-me como falas e dir-te-ei quem és”] consideramos como cabecilhas da Revolução Francesa declararam uma verdadeira guerra contra a linguagem polida, os bons costumes e os bons modos, e introduziram uma nova linguagem igualitária e grosseira. 

Hoje veremos como nesta “guerra” colaboraram — no mesmo molde do movimento feminista de nossos dias — as reivindicações do feminismo radical; os esforços de revolucionários para se obter uma ruptura dos laços familiares, abolindo hábitos tradicionais, a cortesia e o refinamento do Antigo Regime. Enfim, a implantação do trato igualitário em todas as relações sociais, entre pais e filhos, patrões e empregados, professores e alunos, homens e mulheres, superiores e inferiores etc. 

Tudo isso baseado nos trechos abaixo, que selecionei do livro A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias, de Fréderic Rouvillois. 

“O papel da mulher na Revolução Francesa é demasiado complexo para ser evocado em algumas linhas. O que se pode salientar é que as principais 'heroínas' da Revolução, como Olympe de Gouges ou Théroigne de Méricourt, reivindicam, pela palavra e pela ação, uma estrita igualdade de sexos. 


Em sua Declaração dos direitos da mulher, datada de 1791, Olympe de Gouges [gravura à esquerda] proclama: ‘A mulher é livre e igual ao homem em direitos’, ‘o princípio de toda soberania reside essencialmente na Nação, que não é senão a reunião da mulher e do homem’, e se ‘tem o direito de subir ao cadafalso, a mulher deve ter igualmente o de subir à tribuna’.(1) 




Théroigne de Méricourt [miniatura à direita] fundou em 1790 o Clube dos Amigos da Lei, no qual as mulheres, como os homens, têm o direito de voto, e em 1792 recebeu uma coroa cívica por sua participação ativa na insurreição de 10 de agosto. Nada de diferenças, nada de hierarquias: a nova mulher não pretende mais situar-se, com o homem, na relação clássica de sedução e proteção, que o século XVIII tinha levado ao paroxismo. Daí uma completa subversão dos códigos em vigor. [...]

“Daí por diante, em virtude do igualitarismo republicano, a mulher que assim o deseje pode decidir sobre seu destino matrimonial e dotar comportamentos e maneiras dificilmente concebíveis sob o império dos costumes antigos. 

Ideia análoga encontra-se nos modelos de cartas de divórcio — sendo que [na França] o divórcio por consentimento mútuo foi reconhecido por lei em 20 de setembro de 1792 — propostos então pelo Secretário dos republicanos: ‘Nós nos casamos sem sermos amantes. Tal união não pode perdurar, num tempo de liberdade, nesse tempo que durará para sempre. É a forma de nos concedermos reciprocamente a liberdade’, escreve o marido. ‘Cidadão’, responde a esposa, ‘eu aceito a proposta que me fazes’.(2) 

Revolução Francesa: ruptura com os laços familiares 
“No que diz respeito às relações entre pais e filhos, deparamos com outra espécie de figura. De um lado, com efeito, alguns dos mais duros atores da Revolução, sans-culottes, enfurecidos etc. se deixam docilmente seduzir por um discurso utópico, em larga medida precursor dos totalitarismos por vir, que implica um relaxamento, senão uma ruptura absoluta dos laços familiares. Para os mais extremados, a criança pertence à República e não mais a seus progenitores, desde a idade de 5 anos, quando não desde o nascimento. 


Na ordem social concebida de acordo com os princípios, assim se explicará, alguns decênios mais tarde, Buonarotti [Filippo Giuseppe Maria Ludovico Buonarotti — mais conhecido como Buonarroti (quadro ao lado)] que é então adjunto do comunista Babeuf: ‘A pátria se apodera do indivíduo ao nascer, para não abandoná-lo senão ao morrer’.(3) Neste caso o amor fraterno será substituído pelo respeito filial, e a hierarquia pela liberdade. 



Sem ir tão longe, o relaxamento dos laços familiares pode se traduzir em contestação da autoridade paterna — que a opinião pública, é verdade, parece pouco inclinada a aceitar. ‘Parece estanho um decreto da Comuna que não permite mais aos mestres, nem aos pais e às mães, corrigir suas crianças por meio de algum castigo corporal, o que, afirma-se, é a causa de as crianças terem-se tornado tão travessas’.(4) 

Supressão das festividades e saudações tradicionais
Porque mesmo aqueles que sonham com isso projetam suas esperanças num futuro distante; enquanto aguardam, o respeito devido aos pais deve subsistir, ainda que se exprima, daí por diante, de um modo simplificado, dessacralizado e racionalizado: ‘Não estamos mais no tempo do cerimonial’, esclarece o autor do Secretário dos republicanos, que lembra não ser mais necessário enviar aos pais voto de feliz ano novo, ‘esse tipo de carta ridícula e bizarra’, de que a polidez antiga fazia questão cerrada. 

‘Eu não acredito’, escreve então um filho a seu pai, ‘que tu te irrites por não receber esses votos [...]. É um costume que o republicano deve abolir. As obras de um pai são [apreciáveis] de outra maneira; não há um dia marcado para lhe testemunhar o reconhecimento que, num filho, deve ser continuo...’. E o pai contra-argumenta, em resposta: ‘Quanta hipocrisia! Que falsos beijinhos. É preciso que o vício não tenha subterfúgios, e que a virtude dispense convenções’.(5) [...] 


“Proclamada a República, a celebração do Dia de Ano é proibida: ‘Morte a quem faça visitas!’, comentam os Goncourt [os irmãos Edmond e Jules de Goncourt (desenho ao lado), conhecidos como “historiadores patrióticos”)], ‘Morte a quem ouse distribuir cumprimentos! E os governantes, nesse dia, vão abrir todas as cartas no correio, para se assegurarem de que todos esqueceram o calendário gregoriano e os votos de boas-festas’.(6) 

Os que celebram o Dia do Ano passam a ser suspeitos, como registra um agente secreto do ministro do Interior, num relatório de 31 de dezembro de 1793: ‘O Antigo Regime ainda não foi suprimido dos corações. Vê-se por toda Paris três quartos de cidadãos apressados em desejar um bom ano’.(7) Na manhã seguinte, outro espião, Rolin, confirma em seu relatório: ‘Os antigos preconceitos podiam bem desaparecer. Observou-se que, não obstante, o ano [republicano] já tenha cumprido uma estação, muitos cidadãos consideram que esteja começando hoje. As visitas se deram, como de costume; até nas ruas foram ouvidos cidadãos se desejando um bom ano’ — o que constitui uma afronta, e uma informação que merece ser transmitida ao ministro. ‘É preciso tempo’, conclui, Rolin, ‘para esquecer os preconceitos, os hábitos contraídos ao nascer’.(8) [...] 

Acima de tudo, ‘os novos costumes’, como diz Robespierre, devem substituir os hábitos, manifestações repreensíveis de uma polidez decididamente suspeita e de um ‘aprumo’ intrinsecamente aristocrático. 

Igualitarismo em todas as categorias, inclusive nas Forças Armadas 
A realidade, com efeito, parece mais difícil de se impor nas relações hierárquicas. Aqui, a antipolidez revolucionária, no contrapé das maneiras antigas, se prende a uma tentativa de neutralização, de nivelamento das diferenças. 

A questão, como se verá mais adiante, ocupará extensamente no século XIX todos os autores de tratados de savoir-vivre. Numa nota algo preciosa, o autor do Secretário dos republicanos esclarece que, doravante, ‘devem chamar-se homens e mulheres de confiança àqueles [empregados domésticos] que o destino ordenou servir a seus iguais. Essa expressão não é insultuosa como lacaio ou doméstico’.(9) 


É essa mesma igualdade que os sans-culottes parisienses, último reduto do extremismo revolucionário, tentam impor às forças armadas: não vem ao caso que aí tenham sobrevivido a velha etiqueta e o protocolo antigo, que manifestam as mesmas desigualdades, as mesmas diferenças das regras da polidez. No dia 25 de novembro de 1792, com base em proposta da seção de Halles, a assembleia da Sociedade Fraternal do Homem em armas decreta não admitir, nessa matéria, ‘nenhuma distinção senão as indispensáveis ao comando’. 

Restabelecer as distinções conduziria de fato a ‘destruir a unidade de ação do serviço e os princípios da igualdade e fraternidade’.(10) Quanto a Hébert, este cede a palavra a um simples soldado, que se pergunta: por que os generais e os oficiais ‘se cobrem de galões de ouro? Republicanos devem se distinguir pelos belos uniformes? Se somos todos iguais, é preciso acabar com a aristocracia dos uniformes, sobretudo no exército’”.(11)
____________ 
Notas: 
1. O. de Gouges, Oeuvres, Mercure de France, 1986, p. 101.
2. Secrétaire des républicains, ou Nouveaux modèles des lettres sur diferentes sujets, Barba, 1793, pp. 89, 91. 
3. Ph. Buonarotti, Conspiration pour l´égalité, Éditions sociais, 1957, t. 1, pp. 204, 164. 
4. Citado por P. Caron, Paris pendant la Terreur, op. cit., t. III, p. 363. 
5. Secrétaire des républicains, op. cit. pp. 72, 10-12. 
6. E. et J. Goncourt, Histoire de la société française pendant de Directoire, Charpentier, nova edição, 1898, p. 196. 
7. P. Caron, Paris pendant la Terreur, op. cit., t. II, p. 101. 
8. Ibid., p. 125; também no relatório Dugas, de 2 de janeiro, p. 135. 
9. Secrétaire des républicains, op. cit. p. 85. 
10. Citado por A. Soboul, Les Sans-Culottes parisiens en l´an II, op. cit., p. 658. 11. Le Père Duschene, nº 311.
11. Le Père Duschene, nº 311.

17 de agosto de 2012

“Diz-me como falas e dir-te-ei quem és”


Após termos visto, no post anterior, alguns trechos da introdução do livro A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias, de Fréderic Rouvillois (Professor de Direito Público na Universidade de Paris-V, grande colecionador de tratados de savoir-vivre), continuamos hoje com a postagem de alguns excertos do primeiro capítulo da obra. 

Antes, porém, faço um comentário... (uma ameaça?!). Não se preocupe, dileto leitor, serei breve... 
Na introdução do livro, o Prof. Rouvillois demonstrou como a história da polidez teve seus pontos altos e baixos na França. O ilustre autor não tem essa opinião, mas, de fato, um dos pontos mais elevados da polidez se deu no “Ancien Régime”, época do esplendor da “douceur de vivre” (a “doçura de viver” herdada da Cristandade medieval), do charme, da elegância, da cortesia que pairavam sobre a França até a eclosão da Revolução de 1789. O ponto mais baixo foi, sem dúvida, o período da Revolução Francesa, época da grosseria generalizada, na qual o povo francês passou pelo pesadelo. 


A Rainha Maria Antonieta é guilhotinada
Durante tal época, dominada pelas ideias revolucionárias, as boas maneiras foram odiadas, condenadas, e seus representantes guilhotinados. Proscreveram-se até as saudações respeitosas que pudessem lembrar o século de Luís XIV. Tudo em nome do igualitarismo, segundo o qual não se pode saudar de modo diferente um do outro, pois todos são iguais, todos são “citoyens” (cidadãos). Se a distinção está proibida, é o estabelecimento da descortesia e da vulgaridade no trato social. 

A propósito, encerro meu comentário com esta frase lapidar de Plinio Corrêa de Oliveira: 
“A Revolução Francesa foi satânica porque ela cometeu sacrilégios, entronizou a deusa razão, etc. Mas não só por isso. Foi satânica porque consistiu numa explosão de ódio contra o bem, representado pela pompa, pela graça, pela cortesia, que brilharam naquele tempo”. 

Passamos então à transcrição de trechos selecionados do Capítulo I da obra “A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias: 

“‘As boas maneiras’, declarou no fim do século XVIII o especialista em direito público inglês Edmund Burke, ‘são mais importantes que as leis e é a elas que as leis em grande parte se subordinam’.(1) Em muitos aspectos, essa observação, que resume a filosofia do Antigo Regime,(2) esclarece em negativo as razões, as finalidades, mas também a virulência da ofensiva da Revolução Francesa contra os bons costumes. 

Se os revolucionários entram em confronto com a polidez, tal como é praticada na época, isso se dá ao mesmo tempo em oposição ao Antigo Regime e em nome dos próprios princípios da Revolução. [...] 

Era dos "sans-culottes": Morte da linguagem polida 
Sans-culotte (1789)
“É exatamente isso que os revolucionários reclamam: ir ao encontro da igualdade e da fraternidade, das quais eles pretendem extrair os fundamentos do novo regime e da humanidade regenerada. A polidez contra a igualdade republicana: tal é o complô denunciado por Hébert, redator do jornal Le Père Duchesne, reportando-se às palavras de um contra-revolucionário disfarçado: ‘Todos os indigentes, que nós teríamos posto de joelhos diante de um brasão, nos falam hoje com o chapéu enfiado na cabeça. Não há mais classes nem distinções; o cidadão que vende água em potes e cidadão banqueiro estão na mesma linha; é, ao contrário, uma honra não ter terras nem posses, e não se obtém nenhuma consideração se não se for o que se chama um verdadeiro sans-culotte’.(3)(4) [...] 

“Dos ângulos históricos, sociais e morais, a polidez parece intimamente ligado ao Antigo Regime. Por isso os elementos mais radicais da Revolução Francesa, que pouco a pouco ganham terreno, se aproximam do poder depois de 10 de agosto de 1792, e, tomando-o de assalto, enfim, depois de maio de 1793, com a eliminação dos girondinos, vão se empenhar em reverter os usos e as regras — sancionando, dentre os que lhes permaneceram fiéis, os que de imediato não lhes pareceram politicamente suspeitos. 


Ancien Régime: estilo polido
Fixados esses objetivos, não surpreende que tal ofensiva se manifeste, em primeiro lugar, nas relações sociais — e em particular na esfera da linguagem e da fala. A esse respeito, pode-se mencionar, com certeza, o gosto pronunciado de certos autores e certos jornais, dos primeiros anos da Revolução, pela grosseria e pela trivialidade. Trata-se, para eles, de chocar o que é designado, com menosprezo, por ‘gente honesta’, ‘gente de bom-tom’, ou ainda ‘gente como deveria ser’. Chocando-os, fica demonstrado, sem grande esforço, o seu fervor revolucionário. É assim que Hébert, redator de Père Duchesne, o jornal favorito dos exaltados, ornamenta seus artigos de inverossímeis ladainha de blasfêmias e torpezas, como ‘b...’, ‘f...’, ‘J... F...’, ‘pé no traseiro’, ‘capeta’, expressões das quais se prevalece como se fosse um alvará de civismo — o que não impedirá, de resto, que ele venha a ser preso, acusado de complô, e executado em 24 de março de 1794. 


Revolução Francesa: estilo deselegante
Por outro lado, dirigindo-se a um moderado como Camille Desmoulins, Hébert recrimina o uso da ‘linguagem dos afetados [entre os quais ele se inclui], nos sentimentos assim como no amaneirado’. Para ele, tudo se liga: as maneiras revelam os sentimentos, as ideias, as convicções profundas, e aquele que se comporta ou se expressa como aristocrata certamente está muito próximo de ser um deles; é preciso, pois, advertir ‘que ele cuide com atenção da gravata fatal’.(5) Mais claramente, ele merece a guilhotina. [...] 

“A língua francesa, declara o autor, um tal ‘C*** B***, Homem livre’, deve ser regenerada pela Revolução, pois, ‘Não basta que uma língua seja rica em vocabulário, é preciso ainda [...] que, com as falsas ideias, ela não privilegie imagens continuas de servidão e abjeção’.(6) Tal é o caso da língua francesa, que depois da época feudal se tornaria ao mesmo tempo mais polida e ‘menos verdadeira’. Essa corrupção se manifesta, de saída, prossegue C*** B***, pelo ‘absurdo e ridículo uso de chamar [o superior] vós em vez de tu’, maneira incontestavelmente ‘feudal’ de se exprimir; o que haverá de mais humilhante, com efeito, do que ser chamado de tu por alguém a quem se deve tratar por vós

A mesma “igualdade” reivindicada, posteriormente, na Revolução Comunista
Essa corrupção do ‘jargão polido’ se traduz, em seguida, pelo uso dos termos cavalheiro, senhor, madame, que igualmente atestam o carácter não igualitário das relações sociais. Ora, esse estado da língua francesa é ‘uma das principais causas do nosso embrutecimento e da nossa servidão’. Eis porque o autor propõe ‘a todos os bons cidadãos, a todos os amigos da liberdade e da igualdade’, sacrificar ‘de pronto, um uso prejudicial aos eternos princípios da verdade’. Restabelecendo ‘a língua pura e simples da natureza’, pretende C*** B***, proibindo o tratamento vós, substituindo os termos senhor, madame por cidadão ou cidadã, dirigindo-se a cada um pelo seu patriotismo, ‘logo recuperaremos nossos verdadeiros direitos e restabeleceremos a igualdade’. Como se as coisas e as palavras estivessem tão inextricavelmente atadas umas às outras, que bastaria silenciar estas últimas para fazer desaparecer aquelas. 


Ancien Régime: opção preferencial pelo charme
A ofensiva emana de ‘gente delicada e bem educada’,(7) e em particular de uma jovem aristocrata, conquistada pelos ideais republicanos, a senhorita de Kéralio, filha de um acadêmico, de quem Michelet insinua que ela própria não respeitava o tratamento tu que exigia dos outros.(8) O que não impede o Mercure national de dar eco imediato aos clubes políticos, às sociedades fraternais e às repartições de Paris, onde desde o ano seguinte o termo cidadão é substituído por senhor. Quanto ao tratamento tu, este pouco a pouco é imposto pela rua. No dia 4 de dezembro de 1792, tendo um orador observado que ‘a palavra vós era contra o direito de igualdade’, a assembleia geral dos sans-culottes de Paris proclama o banimento desse ‘resto de feudalismo’, e exige o tu ‘como a verdadeira palavra digna de homens livres’,(9) No mesmo momento, a sociedade popular de Sceaux declara que, doravante, seus membros ‘usarão o tratamento de irmãos, usarão o tu e se chamarão cidadãos, abjurando solenemente a palavra senhor’. 


Revolução Francesa: opção preferencial  pelo grosseiro
A radicalização da Revolução vai confirmar essa tendência. Após a eliminação dos girondinos, hostis a tais familiaridades, os sans-culottes tentam impor legalmente a proibição do tratamento vós. Na altura do 10º Brumário do ano II (20 de outubro de 1793), uma representação parlamentar das sociedades populares de Paris declara à Convenção que ‘muitos males resultam ainda desse abuso praticado pela arrogância dos perversos e pela adulação; sob o pretexto do respeito, ele afasta os princípios das virtudes fraternais’. A representação reclama, portanto, uma lei que garanta a reforma desses vícios. E, como essa regra parece essencial, pleiteia que ela seja sancionada sem restrições: é preciso que os refratários ao tratamento tu sejam declarados suspeitos, já que ‘favorecem, dessa forma, a arrogância que serve de pretexto à desigualdade’.(10) É sempre a mesma ideia: diz-me como falas, dir-te-ei quem és; deixa-me ensinar-te como se fala e, sejas quem fores, tu te tornarás um verdadeiro republicano... [...] 


Revolucionários confabulavam no Café Procope. No centro, Voltaire com o braço levantado
“Afinal, nenhuma lei será adotada. Mas, no fundo, isso já não é mais necessário: adotado pelo todo-poderoso comitê de saúde pública, o tratamento tu se torna, daí por diante, oficiosamente obrigatório, e sua prática se generaliza tanto na sociedade como nas forças armadas(11) ou no âmbito da administração. Quanto aos contraventores, se evitam a pena capital que os radicais lhes destinavam, não escapam a alguma sanção, longe disso. No dia de Natal de 1793, no Procope [no famoso Café Procope, restaurante fundado em 1694 em Paris, reuniam-se revolucionários de 1789 para confabularem (desenho acima)], na rua da Anciènne-Comédie, um garçom, mal informado do recente triunfo da Fraternidade, tem a ‘deplorável’ ideia de tratar por vós a dois cidadãos que ele estava prestes a servir; estes se enfurecem, o afrontam, temendo que os tomassem como suspeitos de cumplicidade: ‘Eles, o chamaram escravo’, relata um agente secreto do ministério do Interior que assiste à cena. ‘e o injuriaram de forma revoltante, enquanto o garçom, um senhor idoso, se desculpava, repreendia-se pelo uso do vós e repetia tu, e ti. Eles agitaram todo o café, dizendo que o patriotismo os empenhava em guiar todos os cidadãos segundo os bons princípios’. 

Esse ‘erro malfadado’, devido à força do hábito ou à fadiga, teria terminado muito mal para o aturdido garçom, se os acusadores ultrapassassem ‘os honestos limites de todos os bons republicanos’ e não tivessem sido instados a sair do café, ‘o que eles fizeram, lamentando-se’.(12) 

A história não nos diz se o porteiro, que tinha colocado sobre a porta do escrivão Guinguené uma placa com os dizeres ‘Aqui se honra o título de cidadão e usa-se o tratamento tu. Fecha a porta, s´il vous plait’ [se fazeis o favor],(13) teve a mesma sorte do garçom do Procope... 

Na província, as coisas vão por vezes ainda mais longe que em Paris. Testemunha-o uma deliberação tomada no 24º Brumário do ano II (14 de novembro de 1793) pelo comitê revolucionário do distrito de Tarn, que por si só resume toda a questão: 
‘O Comitê revolucionário, Considerando que é da essência de sua instituição contribuir com todo o seu poder para a anulação dos abusos do antigo regime; Considerando que os princípios eternos da igualdade não podem admitir que um cidadão diga vós a outro cidadão que lhe responde por tu; [...] Artigo 1º — A palavra vós nos pronomes e nos verbos, quando se trate de um só indivíduo, está, deste momento em diante, banida da língua dos franceses livres e deve ser substituída, em todos os casos, pelas palavras tu ou ti. (14) [...] 
“Ao mesmo tempo, interdito similar atinge os termos senhor e senhora. Desde 22 de setembro de 1792, o dia seguinte à abolição da monarquia, Charlier proclama na Convenção que ‘assim como a Revolução atinge completamente as coisas, é preciso que ela atinja também as palavras. O título cidadão é o único que deve ser utilizado em todos os atos antes designados por vós. A palavra senhor ou seu não deve mais ser uma qualificação em uso’.(15) [...] 

Cidadãos... Camaradas... Companheiros... 
O termo cidadão é adotado, em substituição a senhor, até no repertório dramático. No dia 26 de abril de 1794, todos os diretores de teatro recebem ordem oficial de fazer desaparecer, das peças que encenarem, as palavras e os títulos interditos, substituindo-os por termos ‘civicamente corretos’. Estes se apressam a corrigir os textos, até mesmo de autores antigos e prestigiados... 

A essa caça às palavras interditas se espalha por toda parte, até nas instâncias mais inadequadas, como em igrejas, escolas ou faculdades, pois ‘não se trata’, declara Robespierre, ‘de formar senhores, mas cidadãos’.(16) 

Os que ainda ousam pronunciar os termos antigos são objetos de suspeição, tal como os que persistem em praticar o tratamento vós: assim, no dia 24 de janeiro de 1794 (5 do pluvioso do ano II), o Comitê Revolucionário dos Trezentos coloca um velho comerciante de madeiras, Jean-Baptiste Gentil, sob a suspeita de tolerar em seus domínios o uso das palavras interditas: ‘Ele conservou um espírito de grandeza’,(17) garantem seus acusadores; é portanto, um mau cidadão, um contra-revolucionário em potencial, que é necessário punir, na medida do seu crime. Da mesma forma, no sexto mês do calendário republicano no ano II, um comerciante de tabaco, de 68 anos de idade, é expulso da Sociedade Popular do Bom Conselho, da qual ele havia sido, até então, um membro pontual e devotado, por haver inadvertidamente chamado de senhor o seu presidente...(18) 
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Notas: 
1. Citado por J.F.Kasson, Les Bonnes Manières,savoir-vivre et société aux États-Unis, Belin, 1993, p. 83. 
2. Ancien Régime: Período histórico iniciado com o Renascimento (no final do período medieval) e que se estende do até a Revolução Francesa (1789). 
3. Le Père Duchesne, reedição EDHIS, 1969, t. VII, no 201, 1792, p. 5. 
4. Sans-culotte: Significa literalmente “sem calção”, designação pejorativa dada aos homens do povo, adeptos fanáticos da Revolução Francesa, que trajavam calças longas, comuns, em vez dos convencionais calções bufantes, na altura dos joelhos. 
5. Citado por L.Gallois, Histoire de sjournaux et des journalistes de la Révolution française, Bureaux da la Sociéte de l´industrie fraternelle, 1845, t. I, p. 565. 
6. C*** B***, “Sur l´influence des mots et le pouvoir de l´usage”, Le Mercure national, 14 de dezembro de 1790, pp. 1813-1814. 
7. F.A.Aulard, “Le tutoiement”, art. cit. p. 482. 
8. J. Michelet, Les Femmes de la Révolution, A. Delahays, 1855, p. 191. 
9. A. Soboul, Les Sans-Culottes parisiens en l´na II. Mouvement populaire et gouvernement révolucionnaire, 2 juin 1793-9 Thermidor na II, Clavreuil, 1958, p. 655. 
10. Le Moniteu, citado por A. Soboul, Les Sans-Culottes, Le Seuil, “Points”, 1979, p. 215. 
11. Cf. Ph. Wolff, Vous, une histoire internationale du vouvoiment, Toulouse, Signes du monde, 1993, p. 213. 
12. Relatório do agente, citado por P. Caron, Paris pendant la Terreur, op. cit., t. I, 1910, p. 409. 
13. Citado por A. de Baecque, F. Mélonio, Lumières et Liberté, Le Seuil, p. 2004. p. 205. 
14. Citado por J. Robiquet, La Vie quotidienne au temps de la Révolution, Librairie Hachette, 1938, pp. 64-65. 
15. Citado por F. Brunot, Histoire de la langue française, Armand Colin, 1937, t. IX, 2ª parte, p. 683 
16. M. Robespierre, Textes choisis, op. cit., t. III, p. 175. 17. A. Soboul, Les Sans-Culottes, op. cit., p. 408. 18. Ibid., p. 701.
17. A. Soboul, Les Sans-Culottes, op. cit., p. 408.
18. Ibid., p. 701.

6 de agosto de 2012

FRAGMENTOS DA “HISTÓRIA DA POLIDEZ”

A propósito do que temos exposto sobre excelência da cortesia, mencionei certo comportamento (melhor diria “fenômeno”) que muito me surpreendeu em Paris: temia não ser bem acolhido e ser tratado rispidamente (conforme a lendária falta de hospitalidade e descortesia do francês de nossos dias), mas, muito pelo contrário, fui muito bem acolhido e tratado com extrema gentileza. Como procurava explicação para esse fato que me assombrou, um amigo, o Sr. Marcos Aurélio Vieira, disse-me que tinha lido um livro, publicado em 2009, sobre a história da polidez na França. Segundo ele, em tal livro certamente eu encontraria resposta para o “fenômeno”. 

Claro, pedi o livro emprestado! No que fui gentilmente atendido com toda presteza. Assim, comecei a ler a obra (544 páginas, sem nenhuma ilustração... Para o público brasileiro, creio que ela lucraria com algumas ilustrações...). Pretendo publicar aqui alguns trechos escolhidos para proveito de nossos leitores. Antes disso, alguns dados: 
Frédéric Rouvillois. Nascido em 1964, mora em Paris, onde é professor de Direito Público na Universidade de Paris-V. Autor de várias obras sobre história das ideias, é bibliófilo e colecionador, desde sempre, de tratados de savoir-vivre.(*)  
A obra: A HISTÓRIA DA POLIDEZ. De 1789 aos nossos dias. (Título original: Histoire de la Politesse. De la Révolución à nos jours. “Grua Livros”, São Paulo, 2009. 

O autor: Frédéric Rouvillois. Um professor de Direito que realizou extensa pesquisa histórica a partir da Revolução Francesa — marco da transformação não apenas do regime até então vigente, mas das boas maneiras, costumes e hábitos, impostos pelos novos detentores do Poder (Danton, Marat, Robespierre et caterva). Estes, entre inúmeras aberrações, mudaram até o calendário; gestos de cortesia passaram a ser mal vistos; aboliram o tratamento de “Monsieur” e “Madame” (todos os homens e mulheres, segundo os revolucionários, deveriam ser tratados simplesmente “citoyens” [“cidadãos”]); aboliram o “Vous” (todos eram obrigados a se tratarem por “tu”). Em suma: após terem derrubado a Monarquia, queriam implantar o reino do igualitarismo total. O livro, vencedor do Gran Prix Du histoire de 2007, trata das modificações que ocorreram nos costumes do dia-a-dia, desde a Revolução Francesa (1789) até os tempos atuais. 


Para a postagem de hoje, ofereço aos leitores alguns “morceaux choisis” mais significativos que escaneei da introdução do referido livro (entre as págs. 9 a 16). Apenas inseri os subtítulos, as ilustrações, e assinalei alguns pontos. 

Dedicatória do autor: Para Manon, Charles, Bathilde, Margot e Gabrielle, para Eloi, a fim de que eles compreendam, um dia, por que seus pais lhes ensinaram boas maneiras.  

“A polidez é coisa antiga, mas hoje ressurge com vigor. Desde há alguns anos, a imprensa e todas as mídias constatam seu retorno triunfal, ao mesmo tempo que programas de televisão são dedicados ao savoir-vivre,(*) cursos de civilidade são oferecidos nas escolas ou nos centros socioculturais, obras, artigos, testes e jogos se multiplicam, e a venda de manuais de boas maneiras, que sofrera um declínio acentuado na década de 1970, parece estar de novo a pleno vapor [...]”.
Na parede da Sorbonne, pichado o lema contestatário: “Défense d’interdire!” (É proibido proibir!)
[Comentário: Chamo a atenção para a data “1970”. “As boas maneiras sofrera declínio” logo após a Revolução da Sorbonne (maio de 1968, em Paris). A explosão da rebelião estudantil e libertária, na qual se preconizou uma nova concepção de vida: “Nem mestre, nem Deus, nem regra”. Era um dos slogans bradados pelos estudantes revolucionários de maio de 68. Visava-se implantar a anarquia, estabelecendo uma sociedade “sem regras”. A meta era eliminar os aspectos anti-igualitários da sociedade, expressos nos costumes, nas boas maneiras, na diferença entre os sexos, no respeito pelos superiores, nas tradições de família etc.] 

“Em paralelo a essas iniciativas, uma grande pesquisa de opinião, realizada entre março e abril de 1999, revelava que as boas maneiras são consideradas particularmente importantes por 68% dos franceses; de acordo com outra sondagem, realizada em outubro de 2003 por Mme Figaro, essa cifra se aproximou dos 70% figurando a polidez em segundo lugar, quando os franceses foram questionados sobre os valores que almejam transmitir às crianças: cifras significativas, já que essa opinião, como se sabe, não era partilhada senão por 53% dos entrevistados, quinze anos atrás, e por apenas 21% em 1981.

E não se trata, no caso, de um novo avatar do eterno conflito entre adultos e adolescentes, pois estes, em sua grande maioria, parecem perfilar tais ideias e princípios: a se acreditar na pesquisa Sofres, divulgada em novembro de 2003, os comportamentos que os ‘jovens' consideram, quase por unanimidade, inadmissíveis (insultos ao professor, 96%; falta de respeito com os pais, 94%) dizem respeito a atentados contra as regras da polidez, percebidos por eles como muito mais graves do que um bom número de delitos sujeitos à sanção penal (como trabalho noturno, fraude nos exames, consumo de entorpecentes).

A incivilidade contra os ‘velhos’ e as autoridades, que a ‘cultura de Maio de 1968’ considerava mais uma vez, e até recentemente, um direito imprescritível, como manifestação normal de liberação e desenvolvimento individual, tende nos dias de hoje a ser considerada (novamente) falha imperdoável. Na verdade, nem pesquisadores nem pesquisados esclarecem o que entendem exatamente por ‘polidez’, ‘respeito’ ou ‘boas maneiras’. Mas isso não impede que se constate um verdadeiro retorno a valores que poderiam parecer abandonados para sempre”.

Polidez: uma história de altos e baixos 
 “Ora, sem questionar no momento as razões profundas, a consistência e a perenidade desses indícios, cabe constatar que, se há um retorno, ele se dá porque antes houve um declínio: é que, no curso do tempo, o savoir-vivre conheceu mudanças, mutações profundas. Na verdade, a polidez tem uma história: uma história não linear, descontínua, com altos e baixos, tempos fortes — a Restauração, nas últimas décadas do século XIX, talvez no início do século XXI —; tempos mortos — a Revolução Francesa, o momento posterior a Maio de 1968 —; reviravoltas — a Monarquia de Julho, a Primeira Guerra Mundial —, avanços e recuos...

Se afinarmos o propósito, veremos que não existe apenas uma história geral da polidez — essa que acabamos de evocar —, mas também uma história particular, essa de modos e costumes, formas, regras, ritos do savoir-vivre que também são objetos de variações permanentes, por vezes muito rápidas. Assim é que, no curso da idade de ouro da polidez burguesa, representativa do século XIX, certas práticas surgem, ao passo que outras tendem a desaparecer, a se simplificar ou, ao contrário, a se complicar e a se sobrecarregar”.

Multiplicidade no savoir-vivre em cada país, cada região 
“Paralelamente a essa história, existe uma geografia do savoir-vivre. ‘Sem a polidez’, assinalava o ensaísta Alphonse Karr, na metade do século XIX, ‘não nos reuniríamos senão para combater. É preciso, portanto, ou viver só ou ser polido’.(1) Por essa razão, de uma maneira ou de outra, a polidez existe em todas as sociedades humanas, em todos os países. No entanto, qual cada tem a sua, mais ou menos singular e distinta da dos seus vizinhos: ‘Se um caixeiro viajante, da região do Limousin, me diz: tim, tim, erguendo seu copo, eu lhe respondo gentilmente: com prazer', contava com alegria o romancista Jacques Perret. ‘E se, tendo notado um garagista, na região da Picardia, gritando: bye, bye!, eu dou um passo atrás, para gentilmente me informar sobre o sentido dessa locução e mostrar o interesse que tenho pela gíria da região. O savoir-vivre não é ainda, definitivamente, internacional, e faremos o possível para que não venha a ser. Com a consciência universal, a democracia planetária e a economia mundial, temos amplos motivos para estancar nossa sede, sem instituir a mesura planificada nem racionalizar o buquê de aniversário como se fosse o diâmetro dos pneus. As mil maneiras de realizar uma mesura ou enviar um buquê de aniversário colaboram para essa diversidade que torna a condição humana mais ou menos suportável’. A cada um o seu savoir-vivre: ‘Certos estrangeiros, nórdicos dentre outros, ficam indignados quando nos veem engolir um ovo quente com nacos de pão mergulhados no molho. Estão no seu direito: bom uso aqui, mau costume acolá’.

Num mesmo país, discerniremos às vezes variações sensíveis: sempre mordaz, Jacques Perret sugeriu que é possível ‘estabelecer um mapa da França onde as regiões seriam assinaladas segundo o protocolo das saudações e dos abraços. Veríamos, por exemplo, um traço pontilhado: limite norte do beijo triplo, como para a cultura da vinha’(2) ou um encontrão desagradável.

Essa geografia do savoir-vivre é, de saída, uma geografia histórica, cada região, cada país submetendo-se, no curso do tempo, à influência mais ou menos acentuada de alguns dos seus vizinhos, sem, no entanto, perder inteiramente sua singularidade. Na França, sempre existiram, assim, diferenças notáveis entre o savoir-vivre parisiense, eco direto e herdeiro da corte, e uma polidez provinciana mais rústica, mais tradicional, permanentemente defasada em relação à capital, que nessa matéria sempre deu o tom, sem que ninguém jamais sonhasse em disputar o privilégio.

Dentro da própria capital, distinções acentuadas são discerníveis de longa data: ‘Sob Charles X, e ainda sob Luis Filipe’, observou o historiador Jacques Boulenger, ‘cada quarteirão de Paris tinha seu aspecto particular, seus costumes, seus habitantes, seu ‘mundo’, a bem dizer, e esses ‘mundos’ não se confundiam jamais’, separados por ‘mil nuanças de polidez, de vestimenta, de maneiras e de linguagem’.(3) 

Mas isso significa apenas que, na capital, certos círculos dominantes, em geral reagrupados em determinados lugares (o bairro de Saint-Germain até 1830, o quarteirão do passeio de Antin e da Nouvelle Athènes entre 1830 e 1840), dão o tom aos vizinhos, e a partir daí o impõem, pouco a pouco, ao conjunto da cidade e depois do país. É de Paris, com efeito, que vêm as modas, os usos, mas também sua contestação — como na época revolucionária, depois de 1918, ou ainda, depois de Maio de 1969, no desdobramento da liberação dos costumes.

Em contrapartida, se existe uma geografia (histórica) da polidez, pode-se afirmar que não existe uma sociologia do savoir-vivre, ou, mais exatamente, que esta deixou de existir após a Revolução Francesa, que representa, a esse respeito, uma cisão radical — uma cisão de que Balzac se dá conta num artigo surgido em maio de 1830, ‘Palavras da moda’: ‘Agora que nossos costumes tendem a nivelar tudo, agora que um amanuense de doze centavos pode levar vantagem sobre um marquês, pela graça das maneiras [...], só as nuanças permitirão às pessoas reconhecerem-se, como é devido, no meio da multidão’.(4) Ainda que não goze de unanimidade, ainda que seus preceitos não sejam respeitados de modo idêntico em todos os meios, nem por isso a polidez vem a ser a mesma para todos. [...]”

Revolução Francesa: Golpe contra a “velha França” 
“Ainda que a França, após o reinado de Luis XIV, seja universalmente reputada por seu savoir-vivre, constata-se que a maior parte das regras em vigor evoluiu consideravelmente ao longo dos três últimos séculos. [...]

A história da polidez na França, da Revolução aos nossos dias, poderia ser subdividida em quatro tempos sucessivos. O primeiro se anuncia ao redor de 1789, por meio de uma crise de extrema virulência, no curso da qual os mais radicais tentaram fazer desaparecer a velha civilidade francesa, na qual veem o fruto envenenado do Ancien Régime que eles sonham erradicar até a última lembrança. Mas essa tentativa é rapidamente liquidada por um êxito retumbante, que se inicia com a queda de Robespierre, em julho de 1794, e se conclui com a chegada de Bonaparte ao poder, após o golpe de estado do Brumário no ano VIII (novembro de 1799): os anos seguintes serão marcados pela condenação dessa ‘antipolidez’ jacobina e pela reafirmação das regras do savoir-vivre clássico, que de fato, nesse breve período revolucionário, não se ressentirá de golpes súbitos. Porém, apesar do início catastrófico, o século XIX, em sentido amplo — que se estende de 1800 à Primeira Guerra Mundial — pode ser considerado a idade de ouro da polidez burguesa.

Esse largo período não é evidentemente homogêneo: ele conhece desarranjos significativos, em 1814, com a Restauração, em 1830, com o aquecimento da anglomania, em 1850, com o início do aburguesamento da vida rural, na década de 1890, com a moda fim de século etc. Porém, o período apresenta certo número de traços característicos; o fato de que as regras do savoir-vivre vão ao mesmo tempo se sofisticar — tornando-se no geral cada vez mais complexas, exigentes, rígidas — e se difundir até as camadas relativamente mais modestas da sociedade”.  

Mudanças entre as duas guerras e no post-guerra
“Esse segundo período termina com a Grande Guerra Mundial. Certamente, nessa matéria — que o historiador das representações, dos costumes e dos comportamentos toma como objeto — não existem cesuras nítidas nem fronteiras bem delimitadas: é por isso que bom número de regras de decoro começa a se alterar muitos anos depois da Grande Guerra — como a obrigação de não fumar, imposta às mulheres — ao passo que outras subsistirão, sem mudanças notáveis, nos decênios seguintes e, em alguns casos, até nossos dias.

Todavia, o primeiro conflito mundial não deixa de marcar uma reviravolta decisiva em matéria de savoir-vivre, assim como na ordem política, intelectual, econômica e social: de resto, tudo se intensifica, e o declínio do decoro burguês resulta em particular de terem sido colocadas em causa as condições, em especial materiais e psicológicas, que tinham permitido o seu florescimento ao longo do século anterior. No curso desse terceiro período — o tempo das rupturas, de 1914 à Liberação —, assiste-se com efeito à inversão do movimento que se observara no período precedente, com uma irresistível tendência à simplificação dos usos e ao desaparecimento de alguns deles, aqueles que se tornaram impraticáveis ou que pareceram ilegítimos.

Enfim, com o início da década de 1950 abre-se a era das incertezas, a nossa: de um lado, persegue-se o movimento de desconstrução iniciado no período entre as duas guerras, e o encolhimento progressivo dos grupos sociais respeitadores dos usos do savoir-vivre tradicional; mas, por outro lado, parece também ganhar prestígio, sobretudo depois da década de 1990, certa tomada de consciência de sua importância, assim como a aparição de novas formas de decoro, correspondentes a práticas e atividades até pouco tempo atrás desconhecidas, inabituais ou inconfessáveis. 

Fluxo e refluxo? Numa época em que certa renovação do savoir-vivre parece coexistir com uma radical colocação em causa de seus princípios da metáfora — e, meditando sobre o passado, poderemos nos interrogar sobre qual seria, em nossas sociedades pós-modernas e globalizadas, o futuro da polidez”.
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Notas: 
(*) Savoir-vivre. Definição extraída do DICIONÁRIO HOUAISS: Conhecimento e prática dos usos e costumes da vida social; habilidade em lidar com os seres humanos em geral; tirocínio, discernimento.

1. A. Karr, Une poigné de vérités, Michel Lévy Frères, 1866, p. 303. 
2. J. Perret, “La France vue par un Français”, Savoir-Vivre International, ODE, 1951, pp. 14, 18, 20. 3. Boulenger, Les Dandys, Calman-Lévy, 1932, p. 191. 
4. H. de Balzac, “Des morts à la mode”, Oeuvres diverses, t. II, I.