29 de março de 2018

A cruz é o lenho da dor, mas é também o lenho da glória

Nosso Senhor, na aparência derrotado, na realidade foi o vencedor 

Plinio Corrêa de Oliveira*


Consideremos o seguinte contraste na Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo: Ele era o condenado, mas de fato era o juiz, pois julgou o povo deicida e profetizou o castigo que haveria para a infâmia daqueles homens. Foi o juiz, e também o executor do castigo. Na aparência Ele era o derrotado, mas na realidade foi o vencedor. 

Podemos facilmente imaginar o que representa Nosso Senhor Jesus Cristo ter sido pregado na cruz, mas ai dos responsáveis por aquele imenso crime. Mesmo o abandono daqueles a quem Ele tinha amado, mesmo o daqueles a quem Ele acompanhou até o último momento de vida, com alguma graça para conseguir que se salvassem. 

Pouco depois de Nosso Senhor expirar na cruz, o céu se obscureceu e houve um terremoto espantoso na terra. Ele previra que o véu do Templo se rasgaria, que em certo momento a cidade de Jerusalém seria tomada, que os inimigos entrariam na cidade e ela seria arrasada, e que o povo judeu seria disperso. 

Pode acontecer que pareçamos derrotados, ao longo da nossa vida de católicos, mas não desanimemos, lembrando-nos de que Nosso Senhor foi derrotado, foi vencido, mas carregando a Cruz Ele foi o verdadeiro vencedor. A cruz é o lenho da derrota, do sofrimento, da infâmia, da dor, mas é também o lenho da glória. Quem é esmagado com a cruz, vence. Quem vence sem a cruz, este sim, é um derrotado. A esta regra não escapa ninguém. 

Quando virmos quão poderosos são os inimigos da Igreja, podemos desprezá-los, dizendo: Eles não são nada diante de Deus. O dia de Deus chegará, e com Deus iremos em frente.

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(*) Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 11 de abril de 1992. Sem revisão do autor.

28 de março de 2018

Alguns pensamentos de grandes santos para meditarmos nesta Semana Santa

“Amigos da Cruz, que estudais um Deus crucificado, o mistério da cruz é um mistério desconhecido dos gentios, repelido pelos judeus e desprezado pelos hereges e pelos maus católicos; é, porém, o grande mistério que deveis aprender praticamente, na escola de Jesus Cristo, e que somente em sua escola podeis aprender”.
(São Luís Grignion de Montfort) 


“Aconselho-te a oração mental e com o coração, particularmente sobre a Vida e a Paixão de Nosso Salvador. Se as contemplares com frequência na meditação, encherás a tua alma, aprenderás a Sua modéstia e modelarás as tuas ações pelo modelo das Suas. Ele é a Luz do mundo; e n’Ele, por Ele e para Ele devemos ser instruídos e iluminados”.
(São Francisco de Sales) 


“São seis as coisas que se devem meditar na Paixão de Cristo:
• A grandeza das Suas dores, para nos compadecermos delas;
• A gravidade do nosso pecado, que é a sua causa, para o detestarmos;
• A grandeza do benefício, para o agradecer;
• A excelência da divina bondade e caridade, que se descobre nela, para a amar;
• A conveniência do mistério, para se maravilhar com ele;
• E a multidão das virtudes de Cristo, que resplandecem nela, para as imitar”. 

(São Pedro de Alcântara)

26 de março de 2018

Julgamento e condenação de Jesus Cristo, uma farsa sórdida e grotesca

Fonte desta matéria aqui reproduzida:
Revista Catolicismo, Nº 807, março/2018
Selecionamos para esta Semana Santa, ligeiramente adaptados, trechos da excelente obra Jesus Cristo, Vida, Paixão e Triunfo, do Pe. Augustin Berthe.(1) No capítulo 7 — Paixão e Morte de Jesus — o autor narra o divino oferecimento de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras, aceitando o sacrifício supremo de ser crucificado e morto para redimir o gênero humano. Destaca ainda a ignóbil farsa montada no processo contra Jesus, resultado de uma diabólica conspiração para condenar de antemão o Inocente por excelência. 

O Pe. Berthe expõe com muita eloquência os conciliábulos feitos no julgamento do Sinédrio dirigido por Anás e Caifás. Esses velhos e astutos sumos sacerdotes dos judeus quiseram inicialmente dar certa aparência de legitimidade ao julgamento, a fim de não levantar suspeitas no povo e não dar pretexto ao governador romano para anular a sentença condenatória. Mas não conseguiram dissimular suas iniquidades: praticaram gravíssimas ilegalidades, violaram todas as leis, não respeitaram sequer as formalidades normais de um processo legal. 

Como na época o Sinédrio não tinha o poder de emitir sentenças capitais, por isso Jesus Cristo foi enviado depois ao governador romano, que em nome do Imperador detinha o poder de condenar à morte os habitantes da Judeia, encerrando-se o julgamento no palácio de Pôncio Pilatos.
A Direção de Catolicismo


Jesus Cristo diante de Pilatos – Munkácsy Mihály, séc. XVIII. Coleção Particular.


O Inocente condenado à morte num processo infame e ilegal



Jesus acabara de entrar no horto de Getsêmani, cujo nome significa lagar de azeite. Naquele momento, o Pai Celeste considerou n’Ele apenas o representante da humanidade decaída, degradada por todos os vícios e manchada por todos os crimes. E Jesus consentiu em ser desde aquele momento unicamente o homem das dores. Deixou que a sua divindade se eclipsasse, e que lutasse sozinha com o sofrimento sua humanidade, com as suas debilidades, fraquezas e desolações.
Para não submeter os seus discípulos a uma prova dura demais, mandou-lhes que o esperassem à entrada do Horto: Sentai-vos aqui, enquanto Eu vou além para orar (Mt 26, 36). E tomou consigo Pedro, Tiago e João, aquelas três testemunhas da sua gloriosa transfiguração no Tabor. Só eles, fortalecidos com aquela grande lembrança, eram capazes de assistir ao espetáculo da sua angústia, sem se esquecerem de que era o Filho de Deus. 

Não se faça a minha vontade, mas a tua

Na sua condição humana, o Filho de Deus encontrou-se diante da aterradora visão do suplício que ia sofrer. Um tédio profundo e um horror imenso, junto a uma tristeza que ninguém poderia sequer imaginar, apoderaram-se da sua alma, a tal ponto que irrompeu naquela exclamação angustiosa: A minha alma está numa tristeza de morte! Sem um milagre, a humanidade de Jesus sucumbiria ao peso da dor. Os três discípulos, comovidos e aterrados, olhavam para ele com ternura, mas sem ousar pronunciar uma palavra. Disse-lhes Jesus com voz trêmula: Ficai aqui e vigiai, enquanto Eu também vou orar (Mt 26, 38).
Afastou-se e andou com dificuldade até a gruta, que desde então passou a chamar-se Gruta da Agonia. Mas a terrível visão O seguia. Logo que ali chegou, viu perpassarem-lhe diante dos olhos os diversos instrumentos de suplício: cordas, flagelos, cravos, espinhos e uma cruz; verdugos, com a boca cheia de zombarias e blasfêmias, e uma turba em delírio a oprimi-lo com vilanias sem nome. Por um momento recuou horrorizado. Mas enfim, caindo de joelhos e com o rosto em terra, exclamou: Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice; todavia não se faça a minha vontade, mas a tua (Mt 26, 39). 

Oração no Horto (La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.

Não pudeste velar uma hora comigo

Deus Pai, porém, queria que Ele bebesse o cálice até o fim, por isso nenhuma voz do Céu respondeu ao seu queixume. Aterrado, trêmulo e coberto de suor, levantou-se e caminhou com dificuldade para onde estavam os três discípulos, a fim de neles buscar alguma consolação, mas encontrou-os prostrados pela tristeza. Tão grande era a prostração deles, que mal reconheceram o seu Mestre. Queixou-se Ele daquele abandono, e dirigiu-se mais especialmente a Pedro, que momentos antes fizera tão belas promessas: Tu dormes, Simão. Não pudeste velar uma hora comigo? Vigiai e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt 26, 40-41).
Tendo assim estimulado os discípulos, voltou uma segunda vez à gruta. Reapareceu-lhe a visão ainda mais aterradora. Ele, o santo dos santos, viu-se coberto com uma montanha de pecados. Todas as abominações e todos os crimes, desde a prevaricação de Adão até o último pecado cometido pelo último dos homens, se levantaram diante d’Ele e a ele se juntaram, como se fosse Ele o culpado de todos. E bradou-lhe uma voz: Olha para todas essas monstruosidades. Pertence a ti expiá-las com sofrimentos proporcionados ao número e enormidade dos atentados cometidos contra Deus. Prostrado no pó, com o coração triturado e a morrer de dor à vista do pecado, ainda assim encontrou força bastante para tornar a dizer com sublime resignação: Meu Pai, se for preciso que Eu beba este cálice, faça-se a tua vontade. Tendo dito estas palavras, tornou outra vez aos discípulos, na esperança de encontrar junto deles algum conforto para a sua alma exausta; mas tinham os olhos sonolentos, e de tal modo se sentiam oprimidos pela tristeza, que não acharam uma só palavra para lhe responder. 

Monstruosa ingratidão dos homens

Entrou pela terceira vez na gruta, para ali sofrer uma agonia mortal. Coberto com todos os pecados dos homens, e sofrendo tormentos inauditos no seu Corpo e na sua Alma, viu milhões de pecadores que, depois de resgatados por Ele, O perseguiam com os seus desprezos e ódios implacáveis através dos séculos. Viu-os perseguindo a Igreja, calcando aos pés a Hóstia Santa, profanando a cruz, blasfemando da sua Divindade, decapitando-lhe os filhos, trabalhando com todas as forças para conduzir ao inferno as almas, pelas quais iria dar o seu Sangue! À vista de tão monstruosa ingratidão, caiu Jesus ao chão como que aniquilado. O seu corpo estava banhado de suor e de sangue. Gotas de sangue saíam-lhe de todos os poros, corriam-lhe pelo rosto e caíam em terra. Contudo não cessava de orar, e com voz enfraquecida repetia ao Pai que estava pronto para beber até o fim o cálice das dores.
Inevitavelmente culminaria com a morte aquela inexprimível angústia, quando desceu do Céu um anjo para O consolar e fortalecer. No mesmo instante voltou Jesus à sua calma e serenidade; e aproximando-se dos discípulos, disse-lhes com aquela sua habitual indulgência: Agora dormi e descansai, pois já não precisais de velar comigo. Porém, mal haviam cerrado os olhos, disse-lhes: Levantai-vos e vamos. É chegada a hora em que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores. Está perto aquele que me vai entregar (Mt 26, 36-46). E ao clarão dos archotes que alumiavam o vale, puderam ver bandos de gente armada que se dirigiam para o jardim de Getsêmani. Era Judas à frente dos soldados que deviam prender Jesus. 

A Traição de Judas (La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena

Traição dissimulada com um beijo

Não tinha o infeliz Judas perdido tempo desde que saíra do cenáculo. Foi dizer aos membros do Supremo Conselho que Jesus se dirigia com os discípulos para o Monte das Oliveiras, e pernoitaria num lugar solitário (perfeitamente conhecido do traidor); e que, por conseguinte, muito fácil seria prendê-lo durante a noite, sem excitar nenhum rumor no povo. Bem satisfeitos, adotaram os príncipes dos sacerdotes aquele plano, e formaram uma chusma de gente armada para o pôr logo em execução. Compunha-se o pelotão de um destacamento de soldados encarregados de guardar o Templo, servos do sumo sacerdote e um punhado de populares com lanças, varapaus, tochas e lanternas. Acompanhavam aquela noturna expedição alguns membros do Sinédrio, para tomar as decisões exigidas pelas circunstâncias.
Os soldados não conheciam Jesus, e receberam ordem de esperar à entrada do horto enquanto Judas avançaria sozinho para o seu Mestre, e o indicaria a todos com um sinal inconfundível: Aquele a Quem eu der um beijo, esse é. Prendei-o e levai-o com toda a precaução, porque bem pode suceder que vos escape (Mt 26, 48). Dado o sinal, devia Judas misturar-se com os discípulos, como se não tivesse parte no crime que se ia perpetrar. Disfarçava assim a traição ao seu Mestre, poupando aos príncipes dos sacerdotes a vergonha de ter recorrido a um vil expediente para satisfazer a sua vingança. Todos, porém, haviam feito os cálculos sem contar com a sabedoria e o poder de Deus.
Era meia-noite quando os soldados chegaram perto do jardim. No vale reinava um pesado silêncio, e a própria tropa evitava fazer barulho, a fim de não despertar o povo. Naquele momento Jesus descia com os discípulos para a porta do jardim. Conforme o pacto, Judas avançou sozinho ao encontro de Jesus. Aproximou-se do Mestre sem o mínimo acanhamento, como se viesse dar-lhe conta de qualquer incumbência, e disse: Salve, Rabbi! Ao mesmo tempo deu-lhe o beijo que os judeus costumavam dar aos amigos e parentes. Em vez de rejeitar o traidor, Jesus disse-lhe com brandura divina: Amigo, a que vieste? Judas, é com um beijo que entregas o Filho do Homem? (Lc 22, 48).
Em lugar de cair de joelhos, para suplicar o perdão do seu pecado, Judas ouvia as invectivas indignadas dos discípulos, e decidiu retroceder para os da sua tropa. Imaginaram os soldados que ele lhes daria alguma explicação, seguindo-se daí um momento de hesitação, dando lugar a uma cena de majestade inigualável. Não esperou Jesus que O viessem prender, mas avançando para os soldados, perguntou-lhes com voz firme:
A quem buscais?
A Jesus de Nazaré – responderam eles.
Sou Eu! – disse Jesus.
E com esta simples palavra, soldados, criados e sinedritas, tomados de um terror súbito, recuaram um passo e caíram todos ao chão. Depois que se levantaram, Jesus, sempre de pé diante deles, repetiu-lhes a pergunta:
A quem buscais?
A Jesus de Nazaré – repetiram eles, trêmulos.
Sou Eu Jesus de Nazaré, como acabo de declarar. Mas se é a mim que buscais, deixai ir estes.
Jesus acompanhou estas últimas palavras com um gesto imperioso. Desejava salvar seus discípulos, conforme a oração que dirigira ao Pai algumas horas antes — De todos os que me confiaste, não perdi um só (Jo 18, 7-9). 

Jesus preso pela soldadesca 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.

A hora do poder das trevas

Os discípulos viram como Jesus prostrara os soldados, imaginaram que se defenderia, e preparavam-se para a resistência. Quando a tropa se aproximou para prendê-lo, rodearam-no os onze, cheios de indignação, e bradaram: Senhor, permitis que desembainhemos a espada? Pedro não deu a Jesus tempo de responder, brandiu sua espada sobre a cabeça de um servo do sumo sacerdote, chamado Malco, e cortou-lhe a orelha direita.
Ia travar-se uma luta, mas logo interveio Jesus, que disse a Pedro e aos seus companheiros: Basta. E então, mostrando mais uma vez o seu divino poder, aproximou-se de Malco e tocou-lhe na orelha, que logo ficou curada do golpe. Depois, dirigindo-se a Pedro e a todos os assistentes, declarou que não precisava ser defendido contra os seus inimigos; e se estes lhe punham agora as mãos, era porque se entregava voluntariamente a eles. A Pedro, Jesus ordenou: Pedro, embainha a tua espada. Os que se servem de espada morrerão pela espada. Não devo beber Eu o cálice que meu Pai me deu? Julgas que não posso pedir a meu Pai, que logo me enviaria mais de doze legiões de anjos? O que agora está acontecendo foi antes profetizado, e é preciso que se cumpram as Escrituras (Mt 26, 52-54; Jo 18,11).
Essa oblação voluntária, Jesus a fez notar aos membros do Sinédrio que acompanhavam os soldados. Voltando-se para eles, disse: Viestes prender-me com espadas e varapaus, como se estivésseis perante um ladrão. Todos os dias estava Eu sentado no Templo, ensinando no meio de vós, e não me prendestes. Mas tudo isto aconteceu para que se cumprissem as Escrituras dos profetas. Esta é a vossa hora, a hora do poder das trevas (Mt 26, 55-56; Lc 22, 53).
Aqueles homens estavam cegos e endurecidos. Quanto mais Jesus fazia brilhar a sua divindade, mais ia crescendo neles o ódio. Por ordem deles, tendo-se apoderado de Jesus, os soldados o prenderam como se fosse um malfeitor. O divino Mestre estendeu as mãos aos algozes, transtornando os discípulos e fazendo-os perder a coragem. Ao verem que Ele não rompia as cadeias, que os soldados O ultrajavam impunemente, que os sacerdotes e escribas blasfemavam contra Ele, e que a populaça começava a vociferar ameaças e imprecações contra eles, esqueceram-se de todas as suas promessas e fugiram, cada qual para o seu lado.
Como Jesus tinha anunciado, ficou sozinho no meio dos seus inimigos. 

Fuga dos Apóstolos no Horto 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.

Jesus tratado como um criminoso vulgar

Os fariseus, senhores enfim de Jesus, puderam satisfazer o ódio feroz que lhe tinham votado. E para humilhar aquele profeta, que se fazia passar pelo Messias, quiseram que fosse tratado como um criminoso vulgar. Deram ordem aos soldados para atarem os seus braços sobre o peito. E depois, por meio de cordas presas a uma cadeia que lhe cingiram à volta do corpo, os esbirros obrigaram-no a caminhar diante deles, como se se tratasse de um ladrão ou de um assassino. O cortejo pôs-se em marcha do jardim de Getsêmani para o Monte Sião, onde se encontrava o palácio dos pontífices. Era lá que Jesus devia ser julgado.
Ao atravessar a ponte do Cedron, por instigação dos fariseus os soldados precipitaram Jesus ao leito do riacho. Caindo Ele sobre as pedras, redobraram os sarcasmos e insultos. Espetáculo divertido para aqueles chefes de Israel, ao verem prostrado no lodo aquele taumaturgo que tirava os mortos do sepulcro! Mal sabiam eles que, naquele mesmo momento, se verificavam em Jesus aquelas palavras proféticas: No caminho beberá da água da corrente, e por isso levantará a cabeça.2 

A sórdida farsa do Sinédrio

Depois daquela queda, o prisioneiro avançou com dificuldade para o palácio do sumo sacerdote. Os habitantes de Jerusalém ignoravam o crime que os seus chefes acabavam de cometer, mas alguma agitação já se iniciava na cidade adormecida. Decididos a concluir o assunto naquela mesma noite, os chefes do Sinédrio tinham mandado prevenir os príncipes dos sacerdotes e os escribas, para que se juntassem no palácio de Caifás. Corriam emissários em todas as direções, à procura de testemunhas falsas, com o fim de encobrir a sua infâmia com aparências de legalidade. Como era preciso dar ao julgamento uma certa publicidade, dirigiram-se para o tribunal os fariseus mais opostos a Jesus e às suas doutrinas, para assistir ao interrogatório e aplaudir os juízes. A populaça, sempre pronta a amotinar-se contra o inocente, já começava a agitar-se na sombra ao comando dos seus mentores.
Chegou o cortejo ao palácio dos pontífices a uma hora da manhã. Os soldados levaram Jesus para uma das salas onde estava o magistrado incumbido de formular a acusação. Esse juiz instrutor, chamado Anás, era sogro de Caifás, sumo sacerdote que devia pronunciar a sentença. Anás ocupara o sumo pontificado durante longos anos, e tinha feito passar o cargo a diversos membros da sua família, ficando ele sempre com a primeira autoridade no Sinédrio. Caifás nada fazia sem a direção do astuto velho.
Jesus diante de Anás 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
Introduzido à presença do ex-pontífice, Jesus manteve atitude firme e semblante calmo e sereno. Tinha Anás preparado com cuidado o seu interrogatório. Fez ao preso muitas perguntas sobre os seus discípulos e doutrinas, com a esperança de colher qualquer indício de maquinações tenebrosas contra a Lei mosaica, mas aquela esperança foi logo desfeita. Dos seus discípulos não disse Jesus uma só palavra, pois era d’Ele pessoalmente que se tratava, e não dos que O tinham seguido. Quanto à sua doutrina, contentou-se em responder: Eu ensinei nas sinagogas e no Templo diante do povo reunido, não disse nada em segredo. Para que me interrogas sobre a minha doutrina? Pergunta àqueles que me ouviram. Eles bem sabem o que ensinei, e darão testemunho da verdade.
Nada mais acertado que esta resposta, tanto assim que o velho pontífice ficou sumamente desconcertado. Mas um dos servos veio-lhe em socorro. Aproximou-se de Jesus, deu-lhe uma vigorosa bofetada e perguntou em tom furioso: É assim que falas ao pontífice? Jesus, sem deixar transparecer nenhuma emoção, respondeu àquele miserável: Se falei mal, dize-me em quê. Mas se falei bem, por que me bates? (Jo 18, 19-23). O indigno servo ficou calado, bem como o seu amo. Confuso e perplexo, Anás suspendeu bruscamente a sessão a fim de não se expor a novas humilhações, e ordenou aos soldados que levassem o preso ao tribunal de Caifás, onde se encontravam reunidos os membros do Sinédrio.

Contra todas as leis e formalidades

Aquela assembleia composta de fariseus e saduceus inimigos declarados de Jesus, de pontífices invejosos da sua glória, e de escribas que Ele mil vezes confundira perante todo o povo, não pretendia dar uma sentença justa, mas executar um projeto de vingança. Basta lembrar que em conciliábulos secretos aqueles mesmos juízes já tinham condenado Jesus três vezes, excomungado os seus partidários, e por fim decretado a sua morte. Caifás, numa daquelas reuniões, afirmara que o triunfo de Jesus arrastaria consigo a destruição da nacionalidade, portanto a sua morte se tornava uma necessidade de salvação pública (Jo 11, 50). Jesus estava condenado de antemão pelo presidente do tribunal e pelos seus conselheiros, que eram todos da mesma opinião.
Naquele processo, aqueles homens iníquos violaram as leis. Era proibido aos juízes dar audiência na véspera ou no dia de sábado, pois a execução do criminoso devia seguir-se imediatamente à sentença, e assim os preparativos do suplício levariam à violação do descanso do dia santificado. A lei proibia também, sob pena de nulidade, que se julgasse durante a noite um pleito de vida ou morte, porque as sessões deviam ser públicas, e por este motivo o tribunal funcionava só depois do sacrifício que se oferecia de manhã.
O Sinédrio passou por cima de todas as formalidades legais. Prendeu Jesus durante a festa da Páscoa, na véspera do sábado, à meia-noite, e procedeu ao julgamento uma hora depois da prisão. O ódio não podia esperar pelo nascer do sol. E mais: era preciso que o povo, ao despertar, soubesse que Jesus já estava condenado, caindo assim por terra o seu entusiasmo, ao saber que o supremo tribunal de justiça condenara o falso profeta como réu de lesa-majestade divina e de lesa-nação. 

Cristo acusado pelos fariseus 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.

Levado ao matadouro como um cordeiro

O Salvador compareceu na sala do pretório, diante de todo o Sinédrio. Para motivar uma sentença de condenação, tinham os juízes fantasiado uma conspiração contra a Lei mosaica e subornado testemunhas falsas, que deviam sustentar a acusação. Mas estas, por se contradizerem umas às outras, foram colhidas em flagrante delito de mentira e impostura, fato que as expunha a graves castigos. Os juízes pareciam muito embaraçados quando dois homens ali foram formular a acusação. Disse um deles: Nós o ouvimos dizer “Posso destruir o Templo de Deus e reconstruí-lo em três dias” (Mt 26, 61). O depoimento do segundo foi um tanto diferente, pois Jesus ter-se-ia expressado da seguinte forma: Eu destruirei este Templo feito por mãos de homem, e em três dias reconstruirei outro que não será feito com mãos humanas (Lc 14, 58).
Aos olhos dos judeus, esta acusação era de suma gravidade, porque o Templo simbolizava a nação, a Lei e a Religião. Mas como transformar as palavras proferidas por Jesus em atentado contra o Templo de Deus? Ele não dissera posso destruir, ou destruirei este Templo em três dias. Pelo contrário, afirmara: Destruí vós este Templo — isto equivale a dizer “Na hipótese da destruição do Templo” — e Eu o reconstruirei em três dias. A ameaça contra o Templo constituiria delito, se não fosse pura invenção das testemunhas. Por outro lado, dava-se às palavras de Jesus um sentido absolutamente alheio ao seu pensamento. As expressões de que se servira provavam claramente que falava do Templo do seu Corpo, daquele Corpo que os seus inimigos iam destruir; e que Ele, em prova do seu divino poder, ressuscitaria depois de três dias.
Depois que os acusadores acabaram de falar, apontou Caifás ao divino Mestre um olhar interrogador e intimou que respondesse. Mas Jesus permaneceu em silêncio. Erguendo-se então encolerizado, como quem se sentisse insultado, tomou Caifás a palavra: Então! Não respondes nada à acusação que estes formulam contra ti? E Jesus continuou em silêncio. Não há que responder a testemunhas falsas, cujos depoimentos nem ao menos são concordes; nem a juízes que pagaram àqueles caluniadores. E não responde à acusação de ter conspirado contra o Templo Aquele que expulsou os vendilhões desse mesmo Templo, para impedir a profanação da casa de Deus. Calando-se, provava Jesus quanto eram indignos os seus acusadores, e ao mesmo tempo dava cumprimento à profecia de David: Foi maltratado e resignou-se, não abriu a boca, como cordeiro levado ao matadouro, como ovelha emudecida nas mãos do tosquiador (Is 54, 7). 

O Sinédrio confundido pelo 
silêncio de Jesus 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena

Sem exame, condenaram à morte o Filho de Deus

Aquele silêncio não deixava de inquietar os conselheiros. Pois, se Ele tantas vezes os confundira com a sua ciência e eloquência, mas agora se recusava a responder às acusações, era porque as julgava indignas de uma instituição respeitável como o Sinédrio. Também Caifás assim o entendia, e aquela humilhação enfurecia-o ainda mais. Deixou de lado as acusações, que para nada serviam, e passou a fazer perguntas que obrigariam Jesus a acusar-se a si próprio. Exclamou em voz ameaçadora: Eu Te ordeno, pelo Deus vivo, que nos digas se Tu és o Cristo, o Filho de Deus (Mt 26, 63).
Não estava Jesus obrigado a obedecer a esta intimação, pois a Lei mosaica proibia impor juramento ao acusado, para não o colocar na alternativa de jurar falsamente ou acusar-se a si mesmo. Caifás, porém, contava com que Jesus não hesitaria em afirmar a sua divindade naquela circunstância solene. Em todo o caso, afirmando ou negando, estaria perdido do mesmo modo: se nega, será condenado como impostor e profeta falso, já que muitas vezes afirmou perante o povo que era o Cristo e igual ao Pai que está nos Céus; e se afirma, nós lhe infligimos a pena ditada pela lei contra os blasfemadores e usurpadores dos títulos divinos.
Não se enganou Caifás. Jesus, ao ver-se interpelado pelo pontífice sobre a sua personalidade divina e sobre a sua qualidade de Messias, quebrou o silêncio que tinha guardado desde o começo da sessão. Sabendo bem que os juízes esperavam apenas uma afirmação da sua boca para lhe decretar a morte, respondeu ao sumo sacerdote com soberana dignidade: Acabais de dizer quem Eu sou. Sim, Eu sou o Cristo, o Filho de Deus vivo. E agora escutai-me todos: Vereis um dia o Filho do Homem, sentado à direita de Deus, descer sobre as nuvens do Céu, para julgar todos os homens.
Caifás rasga as vestes 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
Mal tinha formulado esta empolgante declaração, quando Caifás, sem tomar um momento para examiná-la, bradou irado: Blasfemou! Bem o ouvistes. É inútil interrogar novas testemunhas (Mt 26, 64-65). E rasgou os vestidos com indignação, para protestar contra a injúria feita a Deus, conforme prescrevia a lei. Mas o criminoso contra Deus era ele, o injusto e indigno pontífice. Com que direito declarava ele que Jesus tinha blasfemado? Para conformar-se à lei, devia ouvir o parecer dos seus colegas, não impor-lhes brutalmente a sua opinião. A mais elementar equidade exigia que se examinassem seriamente as afirmações do acusado, antes de as reprovar como blasfemas. Por que motivo não seria Jesus o Messias e o Filho de Deus, segundo o texto da sua declaração? Acaso não correspondiam maravilhosamente a Jesus de Nazaré os caracteres do Messias, indicados nas Escrituras? Não tinha Ele aparecido na época anunciada por Daniel, no momento em que o cetro saía de Judá; segundo o oráculo de Jacob; na cidade de Belém, como tinha profetizado Miqueias? (Miq 5, 1-3). Não revelavam a sua divindade, da maneira mais evidente, a sua doutrina, a sua vida, os seus milagres operados durante três anos diante de todo o povo, os doentes curados, os mortos ressuscitados? Que razão havia, pois, para condená-lo por se ter proclamado Messias e Filho de Deus?
Mas Caifás, dominado pelo rancor, não quis aliviar a sua consciência. Dirigindo-se aos colegas, verdadeiramente dignos dele, bradou-lhes de novo:
Blasfemou! Que vos parece? Que pena merece?
A morte! – responderam eles (Mt 26, 66).
Friamente e sem exame, condenavam à morte o Filho de Deus. Calmo e impassível, Jesus escutou aquela sentença monstruosa. Olhava com majestade para eles, pois antevia o dia em que desceria do Céu para anular aquela sentença execrável e tratar os seus autores conforme as regras da justiça inexorável.

Negação de São Pedro 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.

És um dos discípulos desse homem?

Enquanto assim caminhava o julgamento no palácio dos pontífices, qual era a situação dos discípulos? Depois de terem declarado que jamais abandonariam o seu Mestre, todos se haviam esmorecido ao vê-lo deixar-se prender pelos seus inimigos, e nenhum teve coragem para O acompanhar até Jerusalém. Fugiram do jardim de Getsêmani, favorecidos pelas trevas, e entraram no sombrio vale da Geena, onde umas grutas nos rochedos ofereceram-lhes abrigo até o dia seguinte.3
Passado o primeiro momento de terror, Pedro e João resolveram seguir de longe a tropa que levava Jesus. Queriam saber o que aconteceria ao Mestre, sem se exporem a ser presos e tratados como Ele. Quando chegaram ao Monte Sião, ia Jesus comparecer diante dos juízes. João, menos comprometido que Pedro, e por outro lado conhecido como era no palácio dos pontífices, entrou primeiro, enquanto Pedro, por prudência, ficava à porta. João espreitou os grupos que estavam no interior, e não notando sinal de perigo para os dois, foi chamar Pedro e o fez entrar no pátio.
O vasto recinto quadrangular formado pelos corpos de construções do palácio era vigiado por grande número de soldados e criados. Como a noite estava fria, puseram-se em círculo à volta de um braseiro aceso no meio do pátio, a conversar sobre a expedição daquela noite. João dirigiu-se para a sala onde se encontravam reunidos os membros do Sinédrio, mas Pedro ficou aquecendo-se, à espera do resultado do julgamento.
À sua volta, Pedro só via inimigos do Mestre, pondo em ridículo o Profeta de Nazaré. Ouvia os rumores sinistros que já corriam, relativos à sentença que os juízes pronunciariam. Tinha a alma amargurada, e apesar dos seus esforços não conseguia ocultar inquietação e tristeza. A porteira do palácio que o introduzira, vendo-o assim triste e silencioso, disse aos que o rodeavam: Este também estava com Jesus, o Nazareno. Todos os olhares se voltaram para Pedro, e ela lhe disse: Não és um dos discípulos desse homem? Com esta inesperada interpelação, Pedro julgou-se perdido. Imaginou-se já preso, manietado e arrastado ao tribunal, como o seu divino Mestre, e disse: Mulher, não sabes o que dizes. Eu não conheço o homem de quem falas (Mt 27, 71; Jo 18, 17). 

Pedro renega o Divino Mestre

O galo canta pela primeira vez 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
Com esta negação formal, a porteira se calou. Ainda assim, vendo Pedro que era suspeito, esquivou-se o melhor que pôde e dirigiu-se precipitadamente para a porta do palácio. Eram quase duas horas, e cantou o galo a primeira vez; mas Pedro, fora de si naquele momento, não se lembrou do vaticínio de Jesus. Quando se preparava para sair, no vestíbulo outra escrava disse para os que ali estavam reunidos: Este estava também com Jesus de Nazaré. Pedro negou mais uma vez. Porém, a fim de não dar a entender que fugia, voltou atrás e colocou-se entre os soldados e a criadagem. Foi logo rodeado de curiosos, que de todos os lados o interrogavam com grande vivacidade: Com certeza tu és um deles, pois a tua maneira de falar denuncia-te (Mt 26, 69-73). Atemorizado, desta vez Pedro não se contentou em negar, mas protestou com todas as forças que não conhecia Jesus, e que não tinha nada a ver com os seus discípulos.
Deixaram-no tranquilo durante uma hora, pois toda a atenção estava concentrada no julgamento do preso. De quando em quando saíam alguns emissários do tribunal e contavam as cenas sinistras às quais acabavam de assistir. Pedro ouvia e fazia perguntas para se informar. Um dos que estavam próximo notou a sua pronúncia regional de galileu, que era muito característica, e lhe disse: Bem podes negar ser galileu e discípulo deste homem; a tua maneira de falar atraiçoa-te. Com esta observação, mais uma vez se voltaram todos os olhos para o discípulo, e um dos servos do sumo pontífice, parente daquele Malco a quem Pedro cortara a orelha, disse-lhe do seu lado: Sim, é verdade; eu bem te vi no horto de Getsêmani (Jo 18, 26).
Ouvindo isso, e lembrando-se da cutilada que dera, Pedro julgou estar já nas mãos dos esbirros. Perdeu a cabeça, e começou a jurar e a dizer imprecações, negando conhecer o Homem de quem falavam e repetindo que nada tinha a ver com Ele.
Eram três horas. Mal Pedro tinha acabado de falar, ouviu-se o segundo canto do galo, e logo ele se recordou da palavra do Mestre: Antes de o galo cantar duas vezes, ter-me-ás negado três vezes (Mc 14,72). Transtornado até o mais fundo da alma, compreendeu toda a gravidade do seu pecado. Ele, o pobre pescador do lago de Genesaré, elevado à augusta dignidade de discípulo e amigo de Jesus; ele, a pedra fundamental sobre a qual o Mestre pensava edificar a sua Igreja; ele, a testemunha e o objeto de tantos milagres, que há pouco proclamara bem alto a divindade de Jesus, acabava de O renegar covardemente, e de jurar que não O conhecia. Ele havia jurado, algumas horas antes, que O acompanharia à prisão e à morte, antes de o abandonar. E o seu querido Mestre conhecia decerto o seu crime, pois nada escapava aos seus divinos olhos. 

Vigiai e orai, para não cairdes em tentação

Este pensamento de Pedro acabou de o prostrar. Concentrado em si mesmo, não viu nem ouviu mais nada do que se dizia e passava em torno de si. Do íntimo do seu coração despedaçado pelo remorso elevava-se este brado angustioso: Senhor, tende piedade de mim, que sou um pobre pecador! Como outrora nas ondas, sentia-se Pedro sorvido pelo abismo, e pedia socorro.
De repente, as vociferações na sala onde estava sendo julgado o Mestre vieram tirá-lo dos seus pensamentos sombrios. Ouviam-se clamores — A morte! A morte! Merece a morte! Todos os olhos se voltaram para a porta do pretório, que se abriu com estrondo, e um grupo de soldados desceu para o pátio. No meio deles, sempre encadeado, apareceu Jesus com os olhos cheios de tristeza, mas com o rosto tão sereno como no momento em que se entregara aos seus inimigos. A sentença fora dada, e levavam-no agora para a prisão, onde devia passar o resto da noite.
Diante daquela cena, Pedro sentiu-se cambalear. Seus olhos acompanhavam o Mestre, seguindo atentamente todos os seus movimentos. O sinistro cortejo se dirigiu para onde ele estava, Jesus aproximou-se dele, ia passar junto dele. Pedro tinha os olhos arrasados de lágrimas, e a sua alma contrita pedia perdão. Jesus teve compaixão dele, e pôs os seus olhos no discípulo infiel. Mas o fez com tanta bondade, tanto amor temperado com tão suaves repreensões, que Pedro sentiu o coração desfalecer-lhe no peito. Desatou a soluçar e saiu às pressas, pois precisava chorar amargamente.
A algumas centenas de passos, no sombrio vale da Geena, uma gruta solitária4 acolheu a desolação de Pedro. Ele precisava chorar o seu pecado e meditar na advertência de Jesus, que a presunção o tinha impedido de compreender, mas cuja divina sabedoria essa dolorosa experiência lhe mostrava agora: Vigiai e orai para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt 26, 41). 

 Adivinha, Cristo, quem te bateu!

Adivinha Cristo quem te bateu! 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena
Depois de terem condenado Jesus à morte, separaram-se os membros do Supremo Conselho. Mas, como aquele julgamento noturno constituía uma gravíssima ilegalidade, convieram todos em reunir-se às cinco horas, para ditar a sentença com todas as formalidades. Não porque a consciência deles protestasse contra o seu monstruoso modo de proceder, mas urgia dissimular as iniquidades demasiado revoltantes a fim de melhor enganar o povo, e sobretudo para não dar ao governador romano pretexto para lhes anular a sentença.
Das três às cinco da manhã, foi Jesus encerrado pelos guardas num lúgubre recinto, que servia de prisão aos condenados. Com ele entrou um bando de soldados e criados. Durante essas duas longas horas, julgaram aqueles bandidos que tudo lhes era permitido contra aquele a quem Caifás tratara de blasfemo em plena sessão do Sinédrio, e a quem um servo impunemente esbofeteara diante dos juízes. Prodigalizaram insultos e desprezos, nomes odiosíssimos, e não se envergonharam de lhe cuspir no rosto. Exasperados pela invencível paciência de Jesus, e impelidos pelo demônio, deram-lhe pontapés e murros, atirando-o de um lado para outro, como uma bola entre as mãos dos jogadores. Para variar o divertimento e pôr em ridículo os títulos de Messias e Filho de Deus, que Jesus se atribuía, vendaram-lhe os olhos e o esbofetearam; e depois, tirando-lhe a venda, gritavam com escárnio: Adivinha, Cristo, quem te bateu! E lançavam-lhe ainda as piores blasfêmias.
Aceitando esses ultrajes, cumpria Jesus a profecia de Isaías: Não desviei o meu rosto dos que me ultrajavam e me cuspiam (Is 50, 6). Os seus olhos ensanguentados pousavam naqueles esbirros, sem exprimir nenhum sentimento de indignação, e dos seus lábios torturados não saíam queixas nem murmúrios. Com a sua calma soberana, estava à espera da hora em que se abrisse aquela caverna de feras. 

Vós dizeis bem, Eu sou o Filho de Deus

Aceitando esses ultrajes, 
cumpria Jesus a profecia de Isaías: 
Não desviei o meu rosto dos 
que me ultrajavam e me cuspiam (Is 50, 6). 
(La Maestà, detalhe) 
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. 
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
Pelas cinco horas, os guardas foram avisados de que os juízes estavam de novo à espera da sua vítima. Com os cabelos desalinhados, o rosto coberto de sangue e saliva, as mãos bem atadas, Jesus foi reconduzido ao tribunal. Salvo Nicodemos e José de Arimateia, que recusaram ter voz naquele processo, os outros membros do Sinédrio encontravam-se todos reunidos. Aquele aparato solene tinha o objetivo de encobrir as ilegalidades do julgamento noturno, fazer esquecer os falsos testemunhos e os furores do juiz. Cegos pela ânsia de acabar com este caso, passavam mais uma vez por cima da lei, que proibia aos juízes dar audiência em dia de festa, na véspera de sábado e antes do sacrifício da manhã.
Naquela audiência já não se tratava de acusações mal definidas, de palavras equívocas, de testemunhas mais ou menos seguras. O Supremo Conselho queria condenar Jesus unicamente porque Ele se dizia o Messias prometido a Israel. Segundo alegavam, Jesus não aceitava as tradições que os fariseus acrescentaram à Lei de Moisés, não tinha estudado nas escolas dos doutores, não tinha envergadura para fundar um reino judaico sobre as ruínas do império romano. Portanto, era um falso Messias, um impostor que merecia a morte. Por isso, quando Jesus compareceu perante a assembleia, o presidente só lhe pediu uma simples declaração: Declara-nos se Tu és o Messias! Jesus respondeu-lhe: Por que me perguntais? Se disser que sou o Messias, vós não me crereis. E se Eu vos dirigir perguntas, com o fim de vos fazer ver a verdade, vós não me respondereis nem me soltareis.
Isto equivalia a dizer claramente aos membros do Conselho: Não vejo em vós juízes que buscam a verdade, mas esbirros decididos a proferir uma sentença de morte. Jesus desvendou assim diante deles a criminosa deslealdade, fitou-os de frente e acrescentou, em tom pleno de majestade: Depois que tiverdes dado a morte ao Filho do Homem, ficai sabendo que Ele se sentará à direita de Deus onipotente (Lc 22, 67-69).
Ao ouvir esta palavra, ergueram todos a cabeça, pois uma simples criatura não se senta à direita de Deus onipotente.
Tu és então o Filho de Deus? – bradaram-lhe de todos os lados.
Vós dizeis bem. Eu sou o Filho de Deus.
Esperavam apenas esta afirmação solene, para desatar os seus furores. Mal o ouviram, bradaram todos em coro: Ele mesmo acaba de se acusar. Não precisamos de mais testemunhos! Merece a morte! (Lc 22, 70-71). E condenaram-no ao último suplício, como culpado de lesa-nação, por ter usurpado o título de Messias; e de lesa-majestade divina, por ter ousado chamar-se Filho de Deus. Consideraram-se então obrigados a levar o condenado ao pretório do governador romano, a fim de que a sentença fosse ratificada e executada naquele mesmo dia. 
Judas recebe as 30 moedas (La Maestà, detalhe) – Duccio di Buoninsegna, séc. XIV. Museo dell’Opera del Duomo, Siena.

O maldito traidor, Judas Iscariotis

Durante aquela noite tenebrosa, andava um homem sombrio e silencioso em torno do palácio do pontífice, procurando saber as peripécias do espantoso drama que se desenrolava no pretório de Caifás. Era Judas, o traidor que vendera e entregara o seu divino Mestre por trinta moedas de prata. Depois da prisão de Jesus no Jardim das Oliveiras, a vergonha e o remorso invadiram-lhe a consciência, não cessando de o atormentar. O demônio dissimulara a enormidade do seu crime; mas, uma vez cometida a traição, pôs-lhe diante dos olhos toda a monstruosidade do que fizera.
Caim, por ter matado seu irmão, foi amaldiçoado por Deus, e o sangue de Abel clama e clamará eternamente vingança contra o assassino. Mas o inocente Abel era apenas um homem, ao passo que Jesus era o Filho de Deus. ‘Judas, o sangue do Filho de Deus será derramado, e eternamente clamará vingança contra ti!’ — assim lhe falava o demônio. E a alma de Judas fechava-se como a de Caim, insensível ao amor e ao arrependimento, para dar entrada ao desespero e ao ódio a Deus!
Judas sentia pesar e remorso, 
mas o Sinédrio não os tinha 
e lançava toda a culpa sobre ele. 
Judas atirou aos pés dos sacerdotes 
as trinta moedas de prata 
e saiu do Templo, sem saber 
para onde dirigir os seus passos.
Imerso na turba, o traidor encontrava-se à porta do palácio quando ela foi aberta para dar passagem aos soldados que conduziam Jesus ao pretório do governador romano. Soube ele, por este indício, que a vítima da sua traição já estava condenada. O mais espantoso desespero penetrou-lhe o íntimo da alma. Alguns sacerdotes que saíam do Conselho dirigiam-se ao Templo, para o sacrifício da manhã. Seguiu-os, levando as moedas de prata com que eles lhe pagaram a traição. Mal chegaram ao lugar santo, apresentou-se diante deles e disse-lhes com uma voz que o horror tornava trêmula: Pequei, entregando-vos o sangue do Justo (Mt 27, 4). E estendeu-lhes a mão com a bolsa dos trinta dinheiros, que lhe queimavam os dedos.
Ao proclamar ele mesmo a inocência do seu Mestre, restituindo o preço do crime, talvez Judas esperasse abrandar aqueles homens e fazê-los intervir em favor do condenado, arrancando-o assim à morte. Mas tinha diante de si corações mais duros que o dele, e mais insensíveis aos remorsos. Responderam-lhe encolhendo os ombros, com zombarias indignas: Se entregaste o sangue inocente, isso é lá contigo. O que temos nós a ver com o caso? Tu és o único responsável. Judas sentia pesar e remorso, mas o Sinédrio não os tinha e lançava toda a culpa sobre ele. Judas atirou aos pés dos sacerdotes as trinta moedas de prata e saiu do Templo, sem saber para onde dirigir os seus passos. 

Assim morrem os que vendem Jesus e a Igreja

O demônio tira a alma de Judas 
Giovanni Canavesio, 1491. 
Chapelle Notre-Dame des des Fontaines,
La Brigue, França.
Do Monte Moriá, colina do Templo, desceu Judas ao vale de Josafat. Aí andou pelo meio dos sepulcros, passou junto do túmulo de Absalão (esse filho maldito que voltara as armas contra o seu pai) e lançou um olhar para aquele Monte das Oliveiras, ao pé do qual Jesus pouco antes lhe dissera: Amigo, com um beijo entregas o Filho do Homem! Uma voz interior, a voz de Satanás, gritava-lhe sempre: Maldito! Maldito! Entrou logo no vale da Geena, imagem do inferno do qual toma o nome. Abrandou o passo e subiu a vertente escarpada que espreita para o Monte Sião. Estava sozinho no campo de um oleiro, e pela última vez fixou o olhar em Jerusalém. Desatando o cinto, enforcou-se numa árvore e morreu desesperado.
O cadáver do traidor foi encontrado ao pé da árvore. O laço se havia rompido, caindo seu corpo no chão e rebentando-se suas entranhas, que ficaram espalhadas pela terra. Foi enterrado no campo do oleiro. Como os sacerdotes não queriam incluir no tesouro do Templo as trinta moedas de prata, por serem preço de sangue, compraram com aquela quantia o campo do oleiro onde Judas se enforcara, destinando-o à sepultura dos prosélitos estrangeiros. Aquele campo chama-se ainda hoje Haceldama, isto é, preço de sangue. Deste modo se cumpriu a profecia de Jeremias: Receberam os trinta dinheiros de prata, preço d´Aquele que foi posto à venda, e os deram pelo campo de um oleiro, conforme dispôs o Senhor (Zac 11, 12-13; Jer 19, 1 ss; Mt 27, 3-10).
Assim foi a morte do novo Caim, assim morrem os que, à imitação de Judas, vendem Jesus e a Igreja por algumas moedas de prata. O seu espírito extinto já não crê na misericórdia do Deus a quem atraiçoaram, o seu coração endurecido fica insensível ao amor, a sua alma desesperada cai no abismo, onde ecoará aquela palavra de Jesus a Judas: Ai daquele por quem o Filho do Homem for traído! Melhor lhe seria que não tivesse nascido (Mc 14, 21).

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Notas:
1.       Pe. Augustin Berthe, C.SS.R., nasceu a 15 de agosto de 1830, em Merville, diocese de Cambrai (França). Faleceu em Roma em 22 de novembro de 1907. Ordenado sacerdote em 1854, tornou-se grande missionário e pregador da sua Congregação. Foi professor de Retórica, reitor de diversas casas redentoristas na França e consultor geral da Congregação em Roma. Escreveu numerosos artigos e livros traduzidos para diversas línguas, com tiragens muito elevadas.
2.       Esta particularidade da Paixão do Salvador é conhecida pela tradição. Ainda hoje se mostra, junto à ponte do Cedron, uma pedra de bom tamanho na qual Nosso Senhor, ao cair, deixou a impressão dos seus joelhos, pés e mãos. A Igreja concedeu indulgências aos peregrinos que se ajoelham naquela pedra do Cedron, que se tornou uma das estações da Via do Cativeiro, nome do caminho que seguiu Jesus desde o horto de Getsêmani até o palácio de Pilatos.
3.       Uma daquelas grutas chama-se ainda Retiro dos Apóstolos, lugar onde se refugiaram oito apóstolos depois da prisão do Salvador, segundo a tradição.
4.       Ainda hoje, os peregrinos que descem o monte Sião visitam a Gruta do Arrependimento de São Pedro. Segundo uma tradição, depois que saiu do palácio de Caifás, naquela gruta Pedro chorou amargamente (Lc 22, 62). Até o século XII, ela estava encerrada dentro de uma igreja que tinha o nome de S. Pedro em Galicanto (canto do galo). Esta igreja não existe mais.