16 de maio de 2025

Centenário da canonização de uma Doutora da Igreja que iluminou o pensamento contra-revolucionário

 

 Pintura da Basílica de São Pedro, no Vaticano, lotada para a cerimônia de canonização de Santa Teresinha. 

  Caio V. Xavier da Silveira

  Fonte: Revista Catolicismo, 893, maio/2025 

Este ano marca o centenário da canonização de Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face, uma das santas mais amadas da Igreja Católica. Em meio às comemorações, é oportuno refletir sobre o significado de sua espiritualidade e sua influência sobre a vida espiritual dos católicos no mundo inteiro. Um “furacão universal de glória”, segundo Pio XI, o Papa que a canonizou.

A fotografia retrata bem a verdadeira fisionomia de Sta. Teresinha


Essa reflexão torna-se ainda mais necessária depois que se difundiu, em certos ambientes religiosos, uma verdadeira caricatura de vida espiritual, resultante de um conceito sulpiciano1 e romântico da Santa de Lisieux e da sua Pequena Via, que deforma a profundidade de sua espiritualidade em uma visão excessivamente sentimental e ingênua da fé cristã.

Imagem deturpada de Sta. Teresinha 

Essa deturpação apresenta a santidade como algo acessível sem grandes desafios, sem a necessidade de verdadeira conversão ou renúncia, reduzindo a confiança radical em Deus e o abandono à Sua vontade a uma espécie de passividade doce e conformista. Em muitos ambientes eclesiásticos, essa versão adocicada se reflete em imagens de Santa Teresinha sempre sorridente, cercada de flores e nuvens cor-de-rosa, como se sua entrega a Deus fosse isenta de sofrimentos, hesitações ou batalhas espirituais.

Esse conceito simplificado ignora o heroísmo real da Pequena Via, que não é uma caminhada fácil ou sentimental, mas um abandono total na fé, mesmo em meio à noite escura da alma e às mais trágicas provações interiores. Santa Teresinha, em seus escritos, fala de sua profunda luta espiritual, de sua confiança em Deus apesar do vazio e da aridez, e de seu desejo de ser consumida pelo amor divino em um espírito de verdadeira humildade e sacrifício.

A caricatura sulpiciana, ao contrário, tende a esvaziar essa radicalidade, transformando a santidade em algo acessível sem esforço, confundindo a infância espiritual com infantilização da fé, e reduzindo o caminho da perfeição cristã a uma ternura superficial desprovida da cruz. Essa visão empobrece o chamado universal à santidade, pois desconsidera a seriedade da luta espiritual que Santa Teresinha viveu de maneira intensa até o fim de sua vida.

 

Sacrifício grande da pequena mortificação de todos os dias

Sta. Teresinha no claustro do convento

Por isso é conveniente estudar a verdadeira fisionomia espiritual de Santa Teresinha, como ela foi corretamente interpretada pelo grande pensador e mestre espiritual contra-revolucionário Plinio Corrêa de Oliveira, que via nela não apenas um modelo de virtude pessoal, mas um farol para a luta espiritual dos católicos na época moderna2.

Seu testemunho é tanto mais expressivo e valioso quanto ele não se sentia pessoalmente atraído por essa via dos pequenos sacrifícios:

“A mim me pareceria muito mais fácil a via de Santa Teresa a Grande, do que a de Santa Teresinha do Menino Jesus. Porque Santa Teresa a Grande tinha provações tremendas, mas também tinha deslumbramentos, visões, entusiasmos etc. Santa Teresinha, não: céu plúmbeo, igual, sem graça; estradinha estreitinha, banal, pequena. Tanta aridez que as ações mais comuns custavam a ela para fazer. Ela não fugia de nada, fazia tudo, enfrentava todas essas pequenas coisas o dia inteiro, fazendo o contrário do que ela queria fazer. A mim isso abafa muito mais do que as tremendas desolações da vida de Santa Teresa, mas acompanhadas daquelas lufadas de ar em que ela se via em presença da Santíssima Trindade, daquilo, daquilo outro. Cada um é feito de um jeito. Eu confesso que tenho menos medo dessas catástrofes trágicas seguidas de grandes sóis, do que dessa uniformidade plúmbea na pequena mortificação de todos os dias.”

Porém, Dr. Plinio compreendia bem que, para além da aparente oposição entre a via de Santa Teresa e a via de Santa Teresinha, há uma profunda sintonia de fundo nas suas espiritualidades respectivas:

“É o oposto no sentido de que a misericórdia é o oposto da justiça. Não é um contrário que se choca, mas são dois caminhos numa mesma linha que se reduzem numa síntese maravilhosa. E em que, exatamente, é inteiramente coerente e compreensível que na família espiritual da grande Santa Teresa apareça a Pequena Via de Santa Teresinha do Menino Jesus.”

Por que motivo a Providência suscitou duas vias espirituais tão diferentes, como a “grande via” de Santa Teresa ou de Santo Inácio de Loyola nos Exercícios Espirituais e a Pequena Via de Santa Teresinha? — É porque cada uma delas é adaptada ao feitio das almas da respectiva época e das almas com traços semelhantes nas épocas sucessivas:

“Quando Santa Teresa de Ávila morreu, o filósofo alemão luterano e racionalista Gottfried Leibnitz, numa carta a um amigo, disse: ‘Morreu um grande homem, a freira espanhola Teresa de Jesus’. Era a impressão que ela causava aos seus contemporâneos. Uma inteligência privilegiada, muito forte, de grandes rumos. Ao par disso, uma amplitude de personalidade extraordinária e sobre essa grandeza natural enorme um derramar de graças sobrenaturais mensuráveis pela amplitude dos fenômenos místicos com que ela foi favorecida. Era, em última análise, a grandeza da personalidade humana num de seus exemplares mais privilegiados na ordem da natureza, refulgindo com as grandezas da graça, e dando uma espécie de ideia plena do que seria o tipo perfeito da religiosa-matriarca, de maneira tal que a gente quase esquece das debilidades do sexo feminino, para ver nela uma espécie de querubim que tem todas as grandezas de um ser puramente espiritual. Santa Teresa de Jesus a Grande poderia ser considerada por excelência a santa do feitio de alma das gerações antigas, dotadas de todos os recursos psíquicos necessários.

“Pelo contrário, Santa Teresinha do Menino Jesus representa de algum modo a aurora da época das gerações mais recentes. Aquela família das almas pequenas que, por assim dizer, morrem de admiração pelas almas grandes, que não as invejam, que as compreendem, que as respeitam, que procuram segui-las, mas que, no plano natural, não têm aquela plenitude de personalidade das grandes almas do passado.

“Santa Teresinha, por exemplo, era muito amedrontável por natureza, tinha acessos de timidez e de inibição. Bem menina, quando a mãe a chamava ao pé da escada, ela descia aos poucos, esperando que a mãe lhe pedisse, de um modo risonho e acolhedor, para descer mais um degrau. Se a mãe a chamasse de um modo grave, severo, ela ficaria enregelada e não conseguiria descer. Então, ela dizia que esse era o modo pelo qual Deus a atraía; era a Pequena Via.

“Esta Pequena Via não poderia ter sido vivida com mais grandeza de alma, com mais largueza de horizonte, com mais plenitude de santidade do que Santa Teresinha do Menino Jesus viveu. Ela representa a mesma música grandiosa de Santa Teresa a Grande tocada num outro instrumento, em que tudo, em vez de ser grandeza, é mais delicadeza, mais suavidade. Mas, no fundo, uma grandeza, uma austeridade, uma generosidade e uma entrega a Deus tão grande que quando a gente acaba de ler a História de uma alma, a gente compreende bem que o colossal das coisas pequenas não fica abaixo do colossal das coisas grandes.”

 

Santa Teresa a Grande em êxtase

Santa Teresinha encarnava a essência do espírito contra-revolucionário

Dir-se-ia que Deus, prevendo o aparecimento de gerações sucessivamente mais frágeis — até a geração atual, que os sociólogos começam a chamar de “geração de cristal”, por causa de sua extrema fragilidade psicológica —, já foi preparando para elas uma via de santificação adaptada à sua personalidade e às circunstâncias adversas nas quais teriam que viver, por causa da destruição da família, do desaparecimento de balizas orientadoras para a existência, da erosão das relações sociais etc. fruto do avanço da Revolução anticristã. Nesse contexto psicológico e social, já emergente no início do século passado, Santa Teresinha propôs um caminho de santidade acessível a todos, que em vez das grandes mortificações valorizou os pequenos sacrifícios cotidianos, oferecendo-os a Deus com amor.

Para Plinio Corrêa de Oliveira, essa doutrina era especialmente relevante em um mundo marcado pela Revolução e pela desordem moral atual, enquanto antídoto contra o orgulho e a autossuficiência endeusados pela modernidade. Nesse aspecto, Santa Teresinha encarnava a essência do espírito contra-revolucionário: uma inocência admirativa de tudo aquilo que é superior e uma combatividade suave, mas inquebrantável.

Para Dr. Plinio, Santa Teresinha era “o protótipo da alma inocente”:

“Sente-se nela, desde pequena, admiração por tudo quanto é divino, por tudo quanto diz respeito a Deus, sumo respeito ao tratar com os superiores e com Deus, a par de suma intimidade com Deus, a ponto que mandava as noviças beijarem o crucifixo na face, algo que nunca tive a coragem de fazer. Ora, onde não entra admiração, veneração e respeito, não há verdadeiro amor. As almas incapazes de admirar são incapazes de amar.”

E, em outra oportunidade, explicou o porquê disso:

“A admiração é o elemento fundamental do amor. Admirar é considerarmos uma coisa cujo porte, cujo vulto, cuja qualidade é muito superior a nós. E nós, diante disso, termos dentro da alma um movimento que diz mais ou menos o seguinte: ‘Como tal coisa é excelente! Como ela é magnífica! Como ela é maravilhosa! Como ela é superior a mim!’”

 

 “Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perde ria o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas”

Amor teresiano à desigualdade e à hierarquia na ordem do universo


Essa capacidade de admirar da inocência favoreceu o desabrochar em Santa Teresinha de um espírito profundamente contra-revolucionário, o qual transparece na passagem de seu primeiro manuscrito autobiográfico, onde ela conta que durante muito tempo se perguntou por que Deus tinha preferências, em vez de as almas receberem um igual grau de graças. Mas que, lendo o livro da natureza, ela compreendeu que o esplendor da rosa e a alvura do lírio nada tiram do perfume da pequena violeta. “Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas”. Dá-se a mesma coisa no mundo das almas, concluiu ela: Deus “quis os grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros menores, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas, destinadas a deleitar os olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição consiste em fazer a Sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos” (Manuscrito A, folha 2, verso).


Após destacar a beleza literária e o voo metafísico desse trecho, o autor de Revolução e Contra-Revolução comentou, para um grupo de jovens discípulos, seu caráter contra-revolucionário:

“Ela levanta o problema do igualitarismo na ordem espiritual, enquanto outros o levantam na ordem temporal, onde há a mesma desigualdade que Deus pôs na ordem espiritual: Ele criou, na ordem humana, uns com muitos talentos e outros com poucos. Um tem uma voz magnífica, outro foi criado com uma voz comum e até, em virtude do pecado original, um terceiro tem uma voz fanhosa. Essa variedade de talentos projeta naturalmente uma desigualdade de caráter social, porque é natural que aquele que é muito mais capaz tenha meios para ganhar mais dinheiro, para educar seus filhos melhor do que outro, de onde então decorre uma desigualdade no ponto de partida.

“Santa Teresinha vai procurar a solução em um campo mais poético e chega a esta conclusão: O mundo das flores, tomado no seu conjunto, seria muito menos bonito se Deus, por amor à igualdade, apenas tivesse feito rosas de uma beleza suprema, mas perfeitamente iguais. Poderia haver coisa mais monótona do que um jardim com um só tipo de flor e todas iguais umas às outras? A beleza da rosa só se nos torna compreensível porque há flores diferentes e porque há rosas desiguais umas das outras. É um modo de mostrar que as coisas pequenas têm também a sua função, e que, portanto, Deus é mais perfeito criando coisas grandes e pequenas, do que criando coisas iguais. E que a criação de todo igual estaria contra a sabedoria e a bondade d’Ele.”

Esse amor à desigualdade e à hierarquia — que é o cerne do espírito contra-revolucionário — levava Santa Teresinha a fazer aplicações práticas muito subtis, nas quais se percebe a finura de seu senso de observação. No relato de sua peregrinação a Roma, junto com a família e numerosos peregrinos da diocese de Bayeux, ela conta que gostou muito de Loreto, a cidade para a qual os anjos levaram a casa de Nazaré, porque “a paz, a alegria, a pobreza reinam ali como soberanas. Tudo é simples e primitivo”. E acrescenta: “As mulheres conservaram o gracioso traje italiano e não adotaram, como as de outras cidades, a moda de Paris” (Manuscrito A, folha 59 verso).

Comenta Dr. Plinio a esse propósito: “Ela faz sentir a adequação daquela paisagem às virtudes que a presença de uma tal relíquia como a Santa Casa deveria disseminar em torno de si. E faz um comentário de caráter essencialmente tradicionalista, mostrando como as mulheres do lugar fizeram bem em ter conservado os seus cândidos trajes de outrora, em vez de usarem a moda de Paris, que era a moda que a Revolução impunha a todos como processo para cosmopolizar o mundo e para acabar com todas as características regionais. Vocês podem calcular, através disso, quanto havia de contra-revolucionário na alma dela e quanto o espírito dela era sensível à observação das circunstâncias da vida temporal e ao princípio da correlação entre a vida temporal e a vida espiritual, de sorte que uma boa organização social favorece a prática da virtude e a santificação. A gente não pode deixar de sorrir pensando que ela mesma estava vestida do que ela chamava a moda de Paris que, naquele tempo, era uma moda decente, que respeitava o pudor, mas na qual ela via o mal muito grave do cosmopolitismo.”

 

Peregrinos chegando a Loreto para visitar a casa da Santíssima Virgem. Algumas das senhoras estão com seus trajes típicos (foto da época da viagem de Santa Teresinha)

“Santa Teresinha era a Joana d’Arc do século XIX”

Outro traço muito contra-revolucionário de sua alma era sua combatividade e espírito épico. Por trás da simplicidade estava uma alma profundamente heroica, que abraçava o sofrimento sem esmorecer. Para Santa Teresinha, a Pequena Via não era uma fuga da luta, mas uma forma sublime de travá-la.

Santa Teresinha no papel de Santa Joana d’Arc
 em uma obra de teatro no convento

Dr. Plinio comenta a esse propósito: “Ela era bem a mulher forte do Evangelho. Ela vivia da audácia como se fosse um guerreiro ou um pioneiro de todas as ousadias, mas inteiramente como mulher. Santa Teresinha era a Joana d’Arc do século XIX.”

A prova disso encontra-se nos seus escritos onde relata que ela sentia em si “a vocação de Guerreiro, de Sacerdote, de Apóstolo, de Doutor, de Mártir”, assim como sentia o desejo de realizar por Jesus todas as obras mais heroicas — “sinto na minha alma a coragem de um cruzado, de um zuavo pontifício, quereria morrer num campo de batalha pela defesa da Igreja” (Carta à Irmã Maria do Sagrado Coração, que forma parte do chamado Manuscrito B da História de uma alma).

Não menos expressiva é sua poesia “As minhas armas” — uma alegoria dos votos de pobreza, castidade e obediência, por ocasião da profissão religiosa de sua prima Soror Maria da Eucaristia —, que tem como epígrafe duas passagens bíblicas: “Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às ciladas do demônio” (Ef6, 11) e “A Esposa do Rei é terrível como um exército em ordem de batalha, ela é semelhante a um coro de música em um acampamento militar” (adaptação do Cântico dos Cânticos, 6). A poesia termina com estes versos de fogo: “Se do Guerreiro eu tenho as armas poderosas, / se o imito e luto valentemente, / como a Virgem de graças encantadoras, / também quero cantar enquanto combato. [...] Sorrindo, enfrento a metralha, / e em teus braços, ó meu Esposo Divino, / cantando, morrerei no campo de batalha, / com as armas na mão!” (Poésies, p. 221).

E ainda há esta outra passagem onde afirma: “Oh! não, eu não temeria ir à guerra. Com que alegria, por exemplo, no tempo das cruzadas, teria partido para combater os hereges. Sim! Eu não temeria levar um tiro! E eu, que desejava morrer mártir, será possível que tenha de morrer numa cama?” (Derniers entretiens, p. 302).

 

Santa Joana d’Arc no cerco de Orleans
Jules Eugène Lenepveu, (1886-1890). O Panteão, Paris.

Vida espiritual concebida como uma guerra contra si mesma

 

Dr. Plinio comenta: “Os senhores vejam a fisionomia dela. Quem é que haveria de dizer que nessa fisionomia entrava o desejo de combater como cruzado? Que ela teria tido a alegria de se revestir de ferro, da cabeça aos pés, e tomar uma lança e investir a todo galope contra o adversário, contra os sarracenos, por exemplo? Uma pessoa, boa psicóloga, diria que sim; agora, a maior parte das pessoas diria que não. Mas a gente vê quanto ela gostaria de, em vez de morrer tuberculosa numa cama, morrer num campo de batalha epicamente, morrer matando os inimigos de Deus. Esta é a alma de uma santa.”

Essa atitude combativa diante da vida não era, porém, uma veleidade romântica de uma mocinha encerrada num claustro. Ela a adotava em relação a si mesma. Nos seus escritos, Santa Teresinha comenta que, ao contrário do bem-aventurado Henrique Suso, que foi armado cavalheiro por um anjo após grandes penitências corporais que abalaram sua saúde, “o bom Deus não quis saber de mim como simples soldado, eu fui imediatamente armada cavaleiro e parti em guerra contra mim mesma, no campo espiritual, pela abnegação, pelos pequenos sacrifícios escondidos; eu encontrei a paz e a humildade nesse combate obscuro, onde a natureza não tem nenhuma ingerência” (Dernières paroles, pp. 237 e 239).

Comenta Plinio Corrêa de Oliveira: “A doutrina da Pequena Via está enunciada aí. Não as mortificações físicas terríveis, não os atos extraordinários que poucos praticam, mas uma via interior toda de sacrifícios. Pois ela nada tem de comum com a moleza. Santa Teresinha nos ensina aí que nós devemos conceber a vida espiritual como uma guerra contra nós mesmos; uma guerra conduzida sob o olhar amoroso de Deus, fazendo sempre o que há de mais perfeito — é isso o que ela entende como abnegação —, pelos pequenos sacrifícios, pelas obras escondidas que ninguém vê. A gente vencer os próprios defeitos espirituais é muito mais duro do que praticar a penitência corporal.”

E acrescenta: “Muita gente interpreta a Pequena Via como sendo uma perpétua inércia, um perpétuo descer de um raio de luz sobre a gente, que nos ilumina e depois nós não temos mais nada que fazer. Isto é completamente errado. A pequena via supõe a atitude militante de nossa alma contra os nossos defeitos, contra as tentações que nós sofremos, e isso ainda que se trate de uma santa.”

 


“Chuva de rosas”: prenúncio de uma nova etapa da humanidade

Por esses traços marcantes de sua espiritualidade, Santa Teresinha pode ser considerada como uma santa para a era do Reino de Maria. Há um grande paralelo entre a pequena via e a escravidão a Nossa Senhora ensinada por São Luís Maria Grignion de Montfort, pois ambos os caminhos levam à mesma realidade: a entrega total a Deus por meio da humildade e do amor filial.

A contínua peregrinação das relíquias de
Santa Teresinha é causa de inúmeras graças,
que confirmam sua promessa de que
após sua morte faria cair
sobre o mundo uma chuva de rosas.

Nesse sentido, em suas reflexões, Dr. Plinio enxergava em Santa Teresinha uma santa profética, que anunciava um novo tempo para a Igreja, em que o mundo será restaurado segundo os desígnios divinos. A santa carmelita de Lisieux, com sua confiança absoluta na Providência e seu amor à Virgem Santíssima, prefigurava essa nova ordem espiritual. A sua “chuva de rosas” pode ser interpretada como um prenúncio de uma nova etapa da humanidade, onde o amor de Deus e a santidade serão, por obra da graça e a rogos de Maria, de maior quilate que nas eras anteriores. Os Apóstolos dos Últimos Tempos — que segundo São Luís Grignion serão, em relação aos santos do passado, como carvalhos ao lado de ervinhas — alcançarão esse grau altíssimo de virtude por serem, em grande parte, almas da Pequena Via, chegando ao extremo da dedicação através do amor e dos pequenos sacrifícios, com base no lema de Santa Teresinha: ‘Para o amor nada é impossível’.”

Essa dimensão profética de sua via espiritual transparece sobretudo no seu oferecimento como vítima do amor misericordioso. O seu fundamento encontra-se numa das passagens mais conhecidas da História de minha alma, no manuscrito B, redigido a pedido de sua irmã Maria, justamente após ela exprimir seu desejo de ser missionária, cruzado, mártir:

“A caridade deu-me a chave de minha vocação. Compreendi que, se a Igreja tinha um corpo composto de diferentes membros, não lhe faltava o mais necessário, o mais nobre de todos. Compreendi que a Igreja tinha um coração e que esse coração era ardente de amor. Compreendi que só o amor fazia agir os membros da Igreja, e que se o amor viesse a se extinguir, os apóstolos não anunciariam mais o Evangelho, os mártires recusariam derramar o sangue. Compreendi que o amor encerra todas as vocações, que o amor é tudo, abraça todos os tempos e todos os lugares. Numa palavra, ele é eterno. No excesso de minha alegria delirante, exclamei então: Ó Jesus, meu amor, encontrei enfim minha vocação. Minha vocação é o amor. Sim, encontrei [meu] lugar na Igreja. E esse lugar, ó meu Deus, fostes Vós que me destes. No coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor! Assim serei tudo, assim será realizado o meu sonho.”

Comenta Dr. Plinio: “Ela entendeu que, trabalhando, rezando, agindo para que aumentasse o grau de caridade na Igreja Católica, seria como que uma prodigiosa nascente de vida dentro da Igreja: os profetas seriam fiéis, os doutores seriam lúcidos, os apóstolos seriam infatigáveis, os guerreiros seriam indomáveis, e na Igreja tudo começaria a se mover com renovada intensidade. E, então, ela entendeu que deveria morrer vítima de amor. Vítima pelo amor misericordioso, para que os outros também amassem, de maneira tal que, por essa retonificação do amor dentro da Igreja, todas as vocações se realizassem.

“O holocausto ao amor misericordioso que Santa Teresinha fez tem muita relação com as graças de conversão de que fala São Luís Grignion de Montfort na sua Oração Abrasada. Porque ela mesma anunciou que ia espalhar pelo mundo uma chuva de rosas e vê-se que ela intuía que, em razão do holocausto que ela ia oferecer, haveria uma nova postura do espírito humano em relação ao amor de Deus. Na história do amor dos homens a Deus haveria uma modificação, haveria um capítulo novo que seria aberto pelo sacrifício dela, o qual abriria a Pequena Via e por esta forma mudaria a atitude tíbia da humanidade em relação a Deus.”

 

Santa Teresinha morta (1897)

“Santa Teresinha foi uma precursora do Reino de Maria”

No fim de sua curta vida, Santa Teresinha tinha muito claro qual seria seu papel futuro: “Eu sinto que vou entrar no descanso... Mas, acima de tudo, sinto que vai começar a minha missão, a minha missão de fazer com que o bom Deus seja amado como eu O amo, de dar às almas a minha pequena via. Quero passar meu céu fazendo bem na terra até o fim do mundo” (Dernières paroles, pp. 166-167).

“A marcha progressiva do amor misericordioso no mundo”, comentou Dr. Plinio, “é uma marcha que deverá ser feita a partir do caminho aberto por ela. A Pequena Via acaba sendo a via pela qual as almas pequenas de uma humanidade decadente serão colhidas pela misericórdia e levadas à santidade. Santa Teresinha foi uma precursora do Reino de Maria, porque exatamente o reino das pequenas almas é o Reino de Maria”.

A Basílica de São Pedro com sua fachada toda decorada e iluminada na noite da canonização de Santa Teresinha


Todos os comentários acima adquirem ainda maior relevo quando se toma em consideração que em 1997 Santa Teresinha do Menino Jesus foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa João Paulo II, o que representa o máximo reconhecimento da profundidade espiritual e teológica de sua Pequena Via. Embora tenha vivido uma vida breve e sem nenhuma produção acadêmica, sua doutrina sobre o amor, a humildade e a confiança total em Deus terá uma influência profunda na espiritualidade católica até o fim dos tempos. De outro lado, sua elevação a Doutora confirma que a santidade e a sabedoria não estão necessariamente vinculadas a grandes tratados teológicos, mas podem manifestar-se na simplicidade de uma vida entregue inteiramente ao amor divino.

No centenário de sua canonização, peçamos a Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face que, no meio das trevas contemporâneas, continue a iluminar os caminhos da Igreja e dos fiéis, para que sua Pequena Via, longe de ser considerada um chamado à passividade, seja verdadeiramente a estrada de uma batalha espiritual que exige coragem, confiança e entrega. Assim, sua mensagem será a resposta providencial para os desafios do mundo moderno.

Que neste jubileu de sua canonização possamos renovar nossa devoção a ela e seguir seus passos com o mesmo ardor e esperança que animaram Plinio Corrêa de Oliveira.

Santa Teresinha do Menino Jesus, rogai por nós!

Santuário construído para Sta. Teresinha em Lisieux
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Notas:

1.       Espiritualidade e estilo artístico associados ao Seminário de São Sulpício e às lojas de artigos religiosos que funcionavam em seu entorno, em Paris, caracterizados por um tom devocional sentimental, com ênfase na ternura e na afabilidade da vida cristã.

2.       Todos os textos citados neste artigo são extraídos da apostila “Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face”, compilada pelo Sr. Enrique Loaiza a partir de artigos de Plinio Corrêa de Oliveira nos jornais O Legionário e Catolicismo, assim como de palestras aos seus discípulos. Eles foram ligeiramente adaptados para a linguagem escrita.

12 de maio de 2025

NÃO CEDER, RESISTIR E VENCER


Putin ameaça Ocidente com seu armamento nuclear

“Preparai-vos, sede corajosos e estai prontos desde a manhã para o combate a essas nações que estão unidas para nos arruinar, a nós e tudo o que possuímos de sagrado; porquanto melhor é para nós morrer na guerra do que ver os males do nosso povo e das nossas coisas santas. Que se faça somente a vontade de Deus!” (Como disse Judas Macabeu – 1 Mac. III, 58-60). 


  Paulo Roberto Campos 

Catolicismo publicou, em de março de 1985, o prefácio redigido por Plinio Corrêa de Oliveira para a edição norte-americana da obra As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia, de Antonio Augusto Borelli Machado.[1]

Resolvemos reproduzi-lo para nossos leitores, pois, além de ser extraordinário, levanta um tema de suprema atualidade tendo em vista o que analistas internacionais têm advertido de estarmos às vésperas da eclosão de uma Terceira Guerra Mundial. 

Não sem razão, vários governos europeus têm pedido à população que se prepare para um próximo conflito global; têm publicado manuais de sobrevivência e recomendado o estoque de itens essenciais — como comida, água, lanterna, apito, canivete, rádio a pilha, remédios etc. — para se manter nos primeiros dias da eventual guerra. 

Devastador ataque de mísseis russos na cidade ucraniana de Sumy

O sonho dos líderes comunistas russos: a restauração da URSS 

Logo após um devastador ataque de mísseis russos na cidade ucraniana de Sumy (24-3-25), o Secretário-Geral da OTAN, Mark Rutte, alertou que “a Rússia poderia lançar um ataque em grande escala contra a Europa até 2030”. Disse também que, com a crescente cooperação militar entre Rússia, China, Coreia do Norte e Irã, especialistas temem que o mundo possa estar se aproximando de uma Terceira Guerra Mundial. 
“De acordo com uma pesquisa divulgada pela ‘Ifop Fiducial’, houve uma evolução no temor sobre um novo conflito mundial, no qual 92% dos franceses estão preocupados com o risco de uma guerra” (The Economic Times, 28-3-25).[2]
Sem falar dos conflitos no Oriente Médio e da disputa entre a China vermelha e Taiwan, a possibilidade de uma Terceira Guerra Mundial cresce sobretudo se a Rússia de Putin continuar com seu plano militar de subjugar a Ucrânia e depois outros países do leste europeu. Ele pretende realizar o sonho de líderes comunistas russos de restaurar o poder da ex-União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), principalmente entre 1922 e 1991 — desde Lênin até Gorbachev. 

Em razão do conflito Rússia X Ucrânia — notadamente após a eleição do novo presidente norte-americano, que tenta a qualquer custo um cessar-fogo, mas com grande vantagem para os russos —, tem-se comentado muito que seria melhor a Ucrânia “russificada” do que morta, ou seja, capitular... 

Infelizmente, essa mentalidade capitulacionista está contagiando até mesmo certas hostes que se consideram de direita... Dizem eles que os ucranianos deveriam baixar as armas e entregar parte de seu território ao ditador Putin, a fim de se evitar uma hecatombe e se alcançar a paz. Ledo engano! O urso marxista russo não se contentará com uma parte do país invadido, mas desejará abocanhá-lo inteiro e depois partir para a conquista de outras nações, primeiro daquelas que outrora estiveram dominadas pela URSS — num total de 15 países que foram satélites dela, a começar pela Polônia. 

Motivo que levou Donald Franciszek Tusk, primeiro-ministro polonês, a planejar, juntamente com o ministro da Defesa, o treinamento militar para todos os homens, a fim deixá-los prontos para a guerra e aumentar seu exército, passando dos atuais 200 mil soldados para se chegar a 500 mil, incluindo os reservistas. Tusk alertou que a Ucrânia foi invadida pela Rússia e se livrou de seu próprio arsenal nuclear, mas que hoje “está claro que estaríamos mais seguros se tivéssemos nosso próprio arsenal nuclear”. E o geral dos poloneses passaram a apoiar esse plano devido à decisão de Donald Trump de suspender a ajuda militar dos EUA à Ucrânia (BBC, 7-3-35).[3] 



“Os homens combaterão e Deus lhes dará a vitória” 

O autor [foto acima] do prefácio em foco, o qual é muito oportuno, especialmente para os presentes dias, denuncia a mentalidade entreguista de muitos que, postos frente à alternativa do famoso slogan “Better red than dead or better dead than red?”[4], optam pela primeira, dizendo que melhor é ficar vermelho (comunista) do que morrer. Ou será melhor morrer heroicamente em defesa da honra; em defesa de nosso país, evitando que ele seja dominado e desonrado por um regime comunista? 

De fato, frente à alternativa “Red or dead”, é preferível ser morto a se tornar comunista, mas há nela algo de equivocado. Para quem tem Fé, a resposta é: viver na graça de Deus, resistir e vencer tal regime. Para quem ama os valores morais e está disposto a lutar por eles, a resposta já nos foi anunciada por Santa Joana d’Arc: “Os homens combaterão e Deus lhes dará a vitória”. Nesse mesmo sentido, encorajou Santa Teresinha: “É preciso partir para salvar a Pátria, guardar sua fé, e conservar sua honra”

De modo especial, frente a tal alternativa, a resposta é: Fátima. Exatamente 108 anos atrás, Nossa Senhora alertou que a Rússia — se não houvesse a conversão da humanidade a Deus — espalharia seus erros pelo mundo “promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfar”

Não ocorreu a conversão — pelo contrário, a humanidade se afastou ainda mais de Deus. Como castigo divino, pode a Rússia provocar a eclosão de uma nova guerra mundial, que poderá ser até uma catastrófica guerra atômica, mas o regime comunista não vencerá. Em 1917, a Santíssima Virgem nos assegurou que os erros espalhados pelo sistema comunista em todos os países serão esmagados, assim como Ela esmaga a cabeça da serpente infernal. 

A conclusão que se tira do extraordinário prefácio de Plinio Corrêa de Oliveira é que, vistos os acontecimentos à luz da profética Mensagem de Fátima, não é melhor fazer um acordo, ceder para não perder uma pretensa paz — aceitando ou vivendo num regime comunista — do que morrer; o melhor é rejeitá-lo, não ceder, e lutar para vencer o comunismo ateu e sanguinário, na certeza de que a vitória final será da Santíssima Virgem, pelo poder que Deus lhe concedeu. Só assim se alcançará a verdadeira paz — “a paz de Cristo no Reino de Cristo. Especificamente a paz de Maria no Reino de Maria”
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Notas: 
1. A primeira versão dessa obra foi publicada em Catolicismo, nº 197, maio/1967, por ocasião do cinquentenário das aparições, sob o título “Simples relato do que se passou em Fátima, quando Nossa Senhora apareceu”. Com base nos manuscritos da Irmã Lúcia, dados a lume em 1973, o trabalho foi inteiramente revisto e ampliado. Foi assim estampado de novo em Catolicismo, nº 295, julho/1975, com aprovação eclesiástica. Essa obra já ultrapassou a tiragem de cinco milhões de exemplares, somando 250 edições em 15 línguas.
2.https://abrir.link/iNlmS 
3.https://www.bbc.com/portuguese/articles/cewknk8y4jvo 
4."Melhor morto do que vermelho" e o inverso "melhor vermelho do que morto” são slogans — creditados ao Conde Bertrand Russell, intelectual britânico — que se disseminaram durante a Guerra Fria, ganhando força nos Estados Unidos no final da década de 1950, em meio a debates sobre anticomunismo e desarmamento nuclear. 


A grande alternativa de nosso tempo – dead? or red? – na perspectiva da mensagem de Fátima 


✅  Plinio Corrêa de Oliveira 

O livro As aparições e a mensagem de Fátima conforme os manuscritos da Irmã Lúcia sai agora em edição norte-americana. Publicado no ano de 1967 no Brasil, onde alcançou 19 edições, a obra circulou também em Portugal (em edição local), bem como no mundo hispânico (através de 14 edições em idioma castelhano) e na Itália (quatro edições). Transpôs ele igualmente os umbrais do mundo anglo-saxônico, onde foi transcrito nas revistas Crusade for a Christian Civilization de Nova York e “TFP Newsletter” de Johannesburg. Auguro acolhida também excelente para a presente edição. 

Com efeito, a obra do eng. Antonio Augusto Borelli Machado está baseada em uma investigação muito ampla de fontes, e em uma análise penetrante das mesmas. Com os dados assim obtidos e selecionados, ela constitui uma compilação inteligente, ágil e vitoriosa de tudo quanto integra realmente a Mensagem de Fátima. E, a par disso, apresenta uma interpretação a um tempo arguta e prudente, de vários aspectos dela. 

Quiseram o autor e a Editora que eu precedesse de um prefácio a presente edição.

Acedendo ao amável convite, pareceu-me que nada poderia interessar tanto ao homem contemporâneo — e notadamente ao leitor norte-americano — quanto relacionar o conteúdo da Mensagem com os problemas da paz e da guerra considerados do ponto de vista da cruel alternativa: — Better red than dead? – Better dead than red? 

É o que experimentarei fazer a seguir. 

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Para uma grande maioria de nossos contemporâneos, é inteiramente claro que essa é a alternativa fundamental ante a qual todos nos encontramos. 

A Mensagem de Fátima nos proporciona conhecer com clareza sobrenatural a solução da Providência para essas perguntas angustiantes. 

Em 1917, meses antes de o comunismo ascender ao poder na Rússia, e 28 anos antes de a primeira bomba atômica explodir em Hiroshima, a Mensagem de Nossa Senhora transmitida ao mundo por meio dos três pastorezinhos da Cova da Iria contém os elementos de uma resposta cristalina a essas graves interrogações. 

De um lado, a Mensagem fala a respeito dos "erros da Rússia" — o comunismo — e indica o meio pelo qual a expansão deste pode ser evitada. Com efeito, o comunismo, ela o aponta como o grande castigo ao qual a humanidade está exposta em razão do declínio religioso e moral dos povos. Ele aparece, portanto, claramente, como um flagelo da Providência para castigar os povos, e especialmente os do Ocidente. E tal flagelo os homens podem evitá-lo se se emendarem da irreligião e da imoralidade em que se acham atolados, e voltarem à profissão da verdadeira Fé, e retornarem à prática efetiva da Moral cristã. 

Em termos mais precisos, para que fosse cumprida a vontade de Nossa Senhora, não bastaria — segundo a Mensagem — um grande número de conversões pessoais. Era necessário que as várias nações, cada qual como um todo, notadamente as do Ocidente — a seu modo ele também tão devastado pela irreligião e pela imoralidade — voltassem à profissão da verdadeira Fé e à prática dos preceitos morais perenes do Evangelho. 

A Mensagem não se limita, pois, a apontar o perigo, mas indica o modo de obviá-lo. Este modo não é morrer, muito menos aceitar de ficar comunista. Ele consiste em seguir a vontade de Deus, em atender a Mensagem da Mãe d’Ele e de todos nós. 

Entre essas condições — é preciso não esquecer — está a Consagração da Rússia ao Imaculado Coração de Maria, nos termos em que Nossa Senhora a pediu. 

Porém a Mensagem ainda vai mais longe. Ela adverte de que se isto não for feito, a Justiça de Deus não mais reterá o castigo iminente: “Se atenderem a meus pedidos, a Rússia se converterá e terão paz; se não, espalhará seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à Igreja; os bons serão martirizados, o Santo Padre terá muito que sofrer, várias nações serão aniquiladas; por fim, o meu Imaculado Coração triunfará.” 

Os três pastorinhos: Lúcia, Francisco e Jacinta


Importa notar que a Mensagem não afirma que, cumprido quanto a Rainha do Céu e da Terra deseja para aplacar a cólera de Deus, o flagelo do comunismo será afastado do mundo sem luta, pelo menos incruenta. Ela deixa ver, isto sim, intervenções admiráveis da Providência nos acontecimentos humanos que assegurem a vitória sobre o flagelo comunista. 

Mas, ao mesmo tempo, deixa aberta a porta para a hipótese de que os homens tenham que dar seu contributo nessa luta, participando eles mesmos, heroicamente, dos grandes prélios nos quais a ajuda soberana e decisiva da Virgem alcançará a vitória. 

Com efeito, a Mensagem exclui a hipótese de uma vitória definitiva do comunismo: se os homens atenderem ao apelo da Virgem, o comunismo será vencido sem castigo para eles; se não atenderem a esse apelo, o comunismo flagelará os homens, mas também acabará vencido. 

Em uma ou outra hipótese, a vitória será da Mãe de Deus.

Qual a relação entre esta autêntica conversão da Rússia e a extinção do flagelo comunista? — É evidente. Está no Kremlin o principal foco de propaganda comunista no mundo. A conversão da Rússia traria consigo a paralisação dessa força.

Convém notar que, na perspectiva de Fátima, não são principalmente os armamentos, por mais poderosos que sejam, que evitarão o castigo. A dissuasão eventualmente alcançada pelo armamentismo das nações do Ocidente pode ser um meio legítimo e necessário para prevenir a guerra e, portanto, para alcançar o prolongamento da paz. 

Contudo, a expansão do comunismo é descrita por Nossa Senhora como uma punição que resulta dos pecados dos homens. E esta punição não será evitada se os homens não se converterem. 

Pode ocorrer — isto sim — que um dos meios pelos quais o castigo desabe sobre os homens impenitentes venha a ser um anti-armamentismo incondicional, de caráter puramente emocional, e, portanto, imprevidente, que estimule toda sorte de agressões e de ataques de um adversário cada vez mais armado. 

Entretanto — note-se bem — o modo preferido pela Providência para fazer cessar o flagelo comunista, de nenhum modo é uma guerra. Esse modo consiste na emenda dos homens, no cumprimento do que a Mensagem pede e na conversão da Rússia. 

Pode ser que a Providência queira servir-se de uma guerra para preparar as condições para uma conversão da Rússia. Porém, isto não está declarado na Mensagem. Em todo caso, a simples vitória militar sobre a Rússia não resolverá o problema, nem afastará os homens da alternativa “red” – “dead”. A Providência quer ir mais longe. Ela quer converter a Rússia.

Nem a Providência precisa de uma guerra para a conversão da Rússia. Na hipótese de uma conversão do Ocidente, parece mais provável que a Providência prefira levar isto a cabo por meios pacíficos, persuasivos, religiosos. Evidentemente, o que a Mensagem promete é a conversão da Rússia à Religião Católica, com a consequente posição firmemente anticomunista que a Hierarquia católica tomava compactamente ao tempo em que a Mensagem de Fátima foi dada aos homens. 

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Qual a relação entre esta autêntica conversão da Rússia e a extinção do flagelo comunista? — É evidente. Está no Kremlin o principal foco de propaganda comunista no mundo. A conversão da Rússia traria consigo a paralisação dessa força. 

Ademais, uma Rússia convertida se abriria pronta e inteiramente para o Ocidente. Seria então possível a todos os homens conhecer muito mais objetiva e profundamente do que agora o abismo de males, de natureza espiritual e temporal, em que estas muitas e longas décadas de aplicação do regime comunista lançaram a infeliz Rússia e seus satélites. O que abriria muito mais os olhos dos povos do Ocidente para o que há de falso na propaganda comunista, imunizando-os contra ela. 

Por fim, e mais uma vez, insisto em que, na perspectiva de Fátima, a conversão da Rússia tem como condição prévia uma conversão do Ocidente. Dessa conversão sincera e profunda, como obviamente a Santíssima Virgem a deseja, resultará que o Ocidente será, já de si, totalmente refratário ao comunismo. 

Fátima não nos fala da China, do Vietnã, do Cambodge, nem da desdita dos demais povos sob jugo comunista. Mas é óbvio que Nossa Senhora, a qual tão admiravelmente terá protegido sem guerra um Ocidente convertido, não permitirá que essas grandes e desditosas nações fiquem à margem da efusão de graças que converterão o Ocidente e a Rússia com seus satélites (pois estes não terão condições de se manterem em regime comunista dentro de uma Europa convertida). 

Também para os demais povos, para as nações não mencionadas nas revelações de Fátima, a virtude da esperança cristã nos proporciona — eu diria que nos impõe — a certeza de que lhes propiciará os meios de romperem seus grilhões, bem como de conhecerem e praticarem a verdadeira Fé. 

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É bem de ver que essas várias considerações despertarão em certos espíritos uma atitude de ceticismo e de desdém. 

Os homens sem Fé — e seus irmãos, isto é, os que têm pouca Fé — sorrirão diante do que lhes parecerá uma simplificação desconcertante, e até infantil, dos problemas hodiernos, que empurram o Ocidente para o comunismo e eventualmente para a guerra. Procurar a solução deles na cândida Mensagem anunciada por três pastorezinhos analfabetos, lhes parecerá ridículo. Mais talvez do que isso, demencial. 

Não nego a complexidade inextricável dos problemas contemporâneos. Penso, pelo contrário, que essa complexidade é tal, que eles me parecem insolúveis por mão humana. 

E isso tanto mais quanto a intervenção dos homens sem Fé, ou de pouca Fé, nas pesquisas e debates destinados a resolver tais problemas, os complica ainda mais. 

Superficialidade? — Ela me parece presente. Não, porém, em nosso campo, mas precisamente no dos céticos. 

Com efeito, vejo-os engajados em uma concepção o mais das vezes profundamente ignorante, e sempre apriorística e superficial, do que seja a religião, do papel dela na vida das sociedades, dos homens e dos indivíduos, e na avaliação das potencialidades e virtualidades dela, fortíssimas e insubstituíveis, para a solução dos problemas que os céticos procuram em vão resolver. 

Não está aqui a ocasião adequada para explanar ainda mais este amplíssimo assunto. 

Não resisto, porém, ao desejo de fazer ver a eventuais leitores céticos algo dessas insubstituíveis possibilidades da religião, de pôr ao alcance deles como que um buraco de fechadura através do qual divisem algo desse vastíssimo horizonte. 
Santo Agostinho traça o perfil da sociedade verdadeiramente cristã — a Cidade de Deus — e dos benefícios que daí resultam para o Estado: imagine-se — escreve ele — “um exército constituído de soldados como os forma a doutrina de Jesus Cristo, governadores, maridos, esposos, pais, filhos, mestres, servos, reis, juízes, contribuintes, cobradores de impostos como os quer a doutrina cristã! E ousem ainda [os pagãos] dizer que essa doutrina é oposta aos interesses do Estado! Pelo contrário, cumpre-lhes reconhecer sem hesitação que ela é uma grande salvaguarda para o Estado quando fielmente observada” (Epist. 138 al. 5 ad Marcellinum, cap. II, n.º 15). 
A doutrina católica mostra que, pelo infeliz dinamismo da natureza humana decaída em consequência do pecado original, como da operação do demônio e de seus agentes terrenos na medida em que o homem se afasta da Fé, tende a um modo de ser e de agir oposto ao que a Fé ensina. Quanto maior a distância, tanto maiores as transgressões. Algo como a lei de Newton. A experiência aliás o confirma. E de modo muito particular em nossos dias. 

Qual a escola política, social ou econômica que poderia evitar, sem o auxílio da Religião, a explosão final de uma sociedade que, impelida pelo próprio dinamismo da descrença e da corrupção, chegasse à transgressão total dos princípios em que se funda a Cidade de Deus descrita por Santo Agostinho? 

Sem que os homens voltem a esses princípios salvíficos, não há como evitar — para os indivíduos e para as sociedades — uma deterioração global, de natureza e proporções indefiníveis, mas tanto mais temíveis quanto maior duração e profundidade tenha o processo de degenerescência. 

Que os homens ou as nações menos afetadas por essa deterioração queiram defender-se contra os cometimentos dos homens e das nações mais afetadas, que para isso se armem em uma atitude vigilante, suasória, amiga da paz, mas em atitude também pronta à legítima defesa vigorosa e vitoriosa: nada mais justo. 

Porém, tais homens, tais nações não conseguirão estancar só por isso os fermentos de destruição postos em suas entranhas pelo neopaganismo moderno que ingeriram. 

Esta é uma afirmação implícita em toda a Mensagem de Fátima. 

Diante desta consideração, percebe-se melhor um aspecto dos castigos: é seu caráter saneador, regenerador e reordenativo. Intervindo ao longo de um infindável processo de degradação tanto individual quanto coletivo, o qual expõe aos maiores riscos a salvação de incontáveis almas, o castigo altera a situação, abre os olhos dos homens para a gravidade de seus pecados, os eleva até as altas paragens da contrição e da emenda. E, por fim, lhes dá a verdadeira paz. 

Quantos perecerão, infelizmente. Mas terão melhores condições para morrer na graça de Deus, como escreveu São Pedro sobre os que morreram durante o dilúvio (cfr 1 Pt. III, 20). 

Morrer: oh! dor. Mas as almas nobres sabem que a morte não é necessariamente o mal maior. Disse-o Judas Macabeu: “Melhor é para nós morrer na guerra do que ver os males do nosso povo e das nossas coisas santas” (1 Mac. III, 59). 

Em termos atuais, é preferível morrer a ficar vermelho. 

Mas melhor ainda é viver. Sim, viver da vida sobrenatural da graça nesta Terra, para depois viver eternamente na glória de Deus. 

A conversão da Rússia depende da conversão sincera e profunda do Ocidente


Essas últimas são considerações de bom senso, facilmente acessíveis aos espíritos desprevenidos e equitativos. 

Encontrarão elas algum fundamento na Mensagem? — Não me parece. 

Esta narra o que fará Deus para punir os pecados de uma humanidade tenazmente impenitente ao longo das décadas em que a Mensagem reboou pelo mundo sem converter os homens. Mais especificamente, sem converter os católicos, pois é com as orações deles, suas penitências e sua emenda de vida que a Virgem Santíssima conta de modo todo especial para obter do Divino Filho a suspensão dos efeitos de sua cólera, e o advento do Reino d’Ela. A mensagem nada diz do que a Providência fará em favor dos justos — dos que optaram pela fidelidade às promessas de Nossa Senhora — durante os dias terríveis da punição, nem o que nessa ocasião deseja deles. 

Bem entendido, não aludo aqui senão à parte pública da Mensagem. Nenhuma conjectura conheço absolutamente inquestionável sobre o que realmente contém a parte secreta da Mensagem, a qual só a Santa Sé conhece... [N.B.: Lembrando que este prefácio foi redigido em 1985]. 

Seja-me lícito externar aqui quanto deixa tristes e perplexos incontáveis fiéis, dos mais devotos dentre os “fatimitas”, em vista da eventualidade de que os homens possam não conhecer esta parte ainda não revelada, mesmo quando ela poderia presumivelmente dar alento aos justos e contrição aos extraviados. 

Com efeito, não é fácil compreender como a Mãe de Misericórdia, tão empenhada em ajudar por meio da Mensagem a todos os homens, não tenha tido uma particular palavra de afeto, de estímulo e de esperança para aqueles a quem Ela reservou a árdua e gloriosa missão de se Lhe conservarem fiéis nesta terrível conjuntura. 

Nada impede admitir que essas palavras se encontrem na parte ainda não revelada do Segredo de Fátima. 


Essa consideração final me desviou do curso da exposição que vinha seguindo. Pouco resta a dizer sobre ela. 

Continuando a aprofundar a hipótese da impenitência dos homens e do castigo, o contexto da Mensagem nos induz a pensar que, se tal se der, os castigos serão pelo menos de duas ordens: guerras — e pensamos que entre essas se devem incluir não só os conflitos entre os povos, mas também as guerras civis de facção contra facção dentro de um mesmo povo — e cataclismos ocorridos na própria natureza. 

Essas guerras internas terão caráter ideológico? Constituirão uma luta entre fiéis e infiéis de todo gênero: hereges ou cismáticos, larvados ou declarados, grupos ou correntes de profissão não cristã, ateus etc.? Ou serão guerras sem conotação ideológica pelo menos oficial (como o conflito franco-prussiano de 1870, ou a I Guerra Mundial)? 

A distinção entre guerras e cataclismos parecia muito clara em 1917, quando a Mensagem foi comunicada aos homens. Pois se afigurava então impossível que os homens provocassem cataclismos, os quais pareciam claramente destinados a resultar de meros atos da Providência, atuando de modo justiceiro sobre os vários elementos da natureza. 

Na realidade, essa distinção continua válida, mas desde que se lhe faça a ressalva de que, com a dissociação do átomo, o homem adquiriu a possibilidade de provocar cataclismos de proporções incalculáveis. Sem que, ao mesmo tempo, tenha adquirido o poder de frear esses cataclismos. 

Em consequência, a catástrofe atômica, provocada eventualmente por uma guerra filha do pecado, produziria só por si os castigos cósmicos que a Mensagem deixa entrever. Mas é possível também que aos efeitos da hecatombe atômica se juntem outras perturbações naturais ordenadas por Deus. 

Uma observação final ainda está por ser apresentada. 

Dentro da perspectiva fatimita, a verdadeira garantia contra catástrofes que assolem a humanidade está muito menos (e, em certa perspectiva, de todo não está...) em medidas de desarmamento, tratados de paz etc., do que na conversão dos homens. 

Ou seja, se estes não se converterem, os castigos virão, por mais que os homens se esforcem por evitá-los com meios outros que não essa conversão. 

Pelo contrário, se se emendarem, não só Deus afastará deles a plenitude de sua cólera vingadora, como haverá entre eles todas as condições próprias a promover uma paz verdadeira e durável. A paz de Cristo no Reino de Cristo. Especificamente a paz de Maria no Reino de Maria. 

Dentro da perspectiva fatimita, a verdadeira garantia contra catástrofes que assolem a humanidade está muito menos (e, em certa perspectiva, de todo não está...) em medidas de desarmamento, tratados de paz etc., do que na conversão dos homens.


Espero que essas várias reflexões, relacionando com a Mensagem de Fátima problemas de atualidade suprema, ajudem o leitor a tirar todo o proveito da compilação fatimita, da mais flagrante oportunidade, que o eng. Antonio Augusto Borelli Machado nos apresenta em seu estudo, já tão conhecido no Brasil e no mundo ibero-americano, e que merece sê-lo também no mundo inteiro.
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Fonte: Revista Catolicismo, 893, maio/2025