Após termos visto, no post anterior, alguns trechos da introdução do livro A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias, de Fréderic Rouvillois (Professor de Direito Público na Universidade de Paris-V, grande colecionador de tratados de savoir-vivre), continuamos hoje com a postagem de alguns excertos do primeiro capítulo da obra.
Antes, porém, faço um comentário... (uma ameaça?!). Não se preocupe, dileto leitor, serei breve...
Na introdução do livro, o Prof. Rouvillois demonstrou como a história da polidez teve seus pontos altos e baixos na França. O ilustre autor não tem essa opinião, mas, de fato, um dos pontos mais elevados da polidez se deu no “Ancien Régime”, época do esplendor da “douceur de vivre” (a “doçura de viver” herdada da Cristandade medieval), do charme, da elegância, da cortesia que pairavam sobre a França até a eclosão da Revolução de 1789. O ponto mais baixo foi, sem dúvida, o período da Revolução Francesa, época da grosseria generalizada, na qual o povo francês passou pelo pesadelo.
A Rainha Maria Antonieta é guilhotinada |
A propósito, encerro meu comentário com esta frase lapidar de Plinio Corrêa de Oliveira:
“A Revolução Francesa foi satânica porque ela cometeu sacrilégios, entronizou a deusa razão, etc. Mas não só por isso. Foi satânica porque consistiu numa explosão de ódio contra o bem, representado pela pompa, pela graça, pela cortesia, que brilharam naquele tempo”.
Passamos então à transcrição de trechos selecionados do Capítulo I da obra “A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias:
“‘As boas maneiras’, declarou no fim do século XVIII o especialista em direito público inglês Edmund Burke, ‘são mais importantes que as leis e é a elas que as leis em grande parte se subordinam’.(1) Em muitos aspectos, essa observação, que resume a filosofia do Antigo Regime,(2) esclarece em negativo as razões, as finalidades, mas também a virulência da ofensiva da Revolução Francesa contra os bons costumes.
Se os revolucionários entram em confronto com a polidez, tal como é praticada na época, isso se dá ao mesmo tempo em oposição ao Antigo Regime e em nome dos próprios princípios da Revolução. [...]
Era dos "sans-culottes": Morte da linguagem polida
Sans-culotte (1789) |
“Dos ângulos históricos, sociais e morais, a polidez parece intimamente ligado ao Antigo Regime. Por isso os elementos mais radicais da Revolução Francesa, que pouco a pouco ganham terreno, se aproximam do poder depois de 10 de agosto de 1792, e, tomando-o de assalto, enfim, depois de maio de 1793, com a eliminação dos girondinos, vão se empenhar em reverter os usos e as regras — sancionando, dentre os que lhes permaneceram fiéis, os que de imediato não lhes pareceram politicamente suspeitos.
Ancien Régime: estilo polido |
Revolução Francesa: estilo deselegante |
“A língua francesa, declara o autor, um tal ‘C*** B***, Homem livre’, deve ser regenerada pela Revolução, pois, ‘Não basta que uma língua seja rica em vocabulário, é preciso ainda [...] que, com as falsas ideias, ela não privilegie imagens continuas de servidão e abjeção’.(6) Tal é o caso da língua francesa, que depois da época feudal se tornaria ao mesmo tempo mais polida e ‘menos verdadeira’. Essa corrupção se manifesta, de saída, prossegue C*** B***, pelo ‘absurdo e ridículo uso de chamar [o superior] vós em vez de tu’, maneira incontestavelmente ‘feudal’ de se exprimir; o que haverá de mais humilhante, com efeito, do que ser chamado de tu por alguém a quem se deve tratar por vós?
A mesma “igualdade” reivindicada, posteriormente, na Revolução Comunista
Essa corrupção do ‘jargão polido’ se traduz, em seguida, pelo uso dos termos cavalheiro, senhor, madame, que igualmente atestam o carácter não igualitário das relações sociais. Ora, esse estado da língua francesa é ‘uma das principais causas do nosso embrutecimento e da nossa servidão’. Eis porque o autor propõe ‘a todos os bons cidadãos, a todos os amigos da liberdade e da igualdade’, sacrificar ‘de pronto, um uso prejudicial aos eternos princípios da verdade’. Restabelecendo ‘a língua pura e simples da natureza’, pretende C*** B***, proibindo o tratamento vós, substituindo os termos senhor, madame por cidadão ou cidadã, dirigindo-se a cada um pelo seu patriotismo, ‘logo recuperaremos nossos verdadeiros direitos e restabeleceremos a igualdade’. Como se as coisas e as palavras estivessem tão inextricavelmente atadas umas às outras, que bastaria silenciar estas últimas para fazer desaparecer aquelas.
Ancien Régime: opção preferencial pelo charme |
Revolução Francesa: opção preferencial pelo grosseiro |
Revolucionários confabulavam no Café Procope. No centro, Voltaire com o braço levantado |
Esse ‘erro malfadado’, devido à força do hábito ou à fadiga, teria terminado muito mal para o aturdido garçom, se os acusadores ultrapassassem ‘os honestos limites de todos os bons republicanos’ e não tivessem sido instados a sair do café, ‘o que eles fizeram, lamentando-se’.(12)
A história não nos diz se o porteiro, que tinha colocado sobre a porta do escrivão Guinguené uma placa com os dizeres ‘Aqui se honra o título de cidadão e usa-se o tratamento tu. Fecha a porta, s´il vous plait’ [se fazeis o favor],(13) teve a mesma sorte do garçom do Procope...
Na província, as coisas vão por vezes ainda mais longe que em Paris. Testemunha-o uma deliberação tomada no 24º Brumário do ano II (14 de novembro de 1793) pelo comitê revolucionário do distrito de Tarn, que por si só resume toda a questão:
‘O Comitê revolucionário, Considerando que é da essência de sua instituição contribuir com todo o seu poder para a anulação dos abusos do antigo regime; Considerando que os princípios eternos da igualdade não podem admitir que um cidadão diga vós a outro cidadão que lhe responde por tu; [...] Artigo 1º — A palavra vós nos pronomes e nos verbos, quando se trate de um só indivíduo, está, deste momento em diante, banida da língua dos franceses livres e deve ser substituída, em todos os casos, pelas palavras tu ou ti. (14) [...]“Ao mesmo tempo, interdito similar atinge os termos senhor e senhora. Desde 22 de setembro de 1792, o dia seguinte à abolição da monarquia, Charlier proclama na Convenção que ‘assim como a Revolução atinge completamente as coisas, é preciso que ela atinja também as palavras. O título cidadão é o único que deve ser utilizado em todos os atos antes designados por vós. A palavra senhor ou seu não deve mais ser uma qualificação em uso’.(15) [...]
Cidadãos... Camaradas... Companheiros...
O termo cidadão é adotado, em substituição a senhor, até no repertório dramático. No dia 26 de abril de 1794, todos os diretores de teatro recebem ordem oficial de fazer desaparecer, das peças que encenarem, as palavras e os títulos interditos, substituindo-os por termos ‘civicamente corretos’. Estes se apressam a corrigir os textos, até mesmo de autores antigos e prestigiados...
A essa caça às palavras interditas se espalha por toda parte, até nas instâncias mais inadequadas, como em igrejas, escolas ou faculdades, pois ‘não se trata’, declara Robespierre, ‘de formar senhores, mas cidadãos’.(16)
Os que ainda ousam pronunciar os termos antigos são objetos de suspeição, tal como os que persistem em praticar o tratamento vós: assim, no dia 24 de janeiro de 1794 (5 do pluvioso do ano II), o Comitê Revolucionário dos Trezentos coloca um velho comerciante de madeiras, Jean-Baptiste Gentil, sob a suspeita de tolerar em seus domínios o uso das palavras interditas: ‘Ele conservou um espírito de grandeza’,(17) garantem seus acusadores; é portanto, um mau cidadão, um contra-revolucionário em potencial, que é necessário punir, na medida do seu crime. Da mesma forma, no sexto mês do calendário republicano no ano II, um comerciante de tabaco, de 68 anos de idade, é expulso da Sociedade Popular do Bom Conselho, da qual ele havia sido, até então, um membro pontual e devotado, por haver inadvertidamente chamado de senhor o seu presidente...(18)
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Notas:
1. Citado por J.F.Kasson, Les Bonnes Manières,savoir-vivre et société aux États-Unis, Belin, 1993, p. 83.
2. Ancien Régime: Período histórico iniciado com o Renascimento (no final do período medieval) e que se estende do até a Revolução Francesa (1789).
3. Le Père Duchesne, reedição EDHIS, 1969, t. VII, no 201, 1792, p. 5.
4. Sans-culotte: Significa literalmente “sem calção”, designação pejorativa dada aos homens do povo, adeptos fanáticos da Revolução Francesa, que trajavam calças longas, comuns, em vez dos convencionais calções bufantes, na altura dos joelhos.
5. Citado por L.Gallois, Histoire de sjournaux et des journalistes de la Révolution française, Bureaux da la Sociéte de l´industrie fraternelle, 1845, t. I, p. 565.
6. C*** B***, “Sur l´influence des mots et le pouvoir de l´usage”, Le Mercure national, 14 de dezembro de 1790, pp. 1813-1814.
7. F.A.Aulard, “Le tutoiement”, art. cit. p. 482.
8. J. Michelet, Les Femmes de la Révolution, A. Delahays, 1855, p. 191.
9. A. Soboul, Les Sans-Culottes parisiens en l´na II. Mouvement populaire et gouvernement révolucionnaire, 2 juin 1793-9 Thermidor na II, Clavreuil, 1958, p. 655.
10. Le Moniteu, citado por A. Soboul, Les Sans-Culottes, Le Seuil, “Points”, 1979, p. 215.
11. Cf. Ph. Wolff, Vous, une histoire internationale du vouvoiment, Toulouse, Signes du monde, 1993, p. 213.
12. Relatório do agente, citado por P. Caron, Paris pendant la Terreur, op. cit., t. I, 1910, p. 409.
13. Citado por A. de Baecque, F. Mélonio, Lumières et Liberté, Le Seuil, p. 2004. p. 205.
14. Citado por J. Robiquet, La Vie quotidienne au temps de la Révolution, Librairie Hachette, 1938, pp. 64-65.
15. Citado por F. Brunot, Histoire de la langue française, Armand Colin, 1937, t. IX, 2ª parte, p. 683
16. M. Robespierre, Textes choisis, op. cit., t. III, p. 175. 17. A. Soboul, Les Sans-Culottes, op. cit., p. 408. 18. Ibid., p. 701.
17. A. Soboul, Les Sans-Culottes, op.
cit., p. 408.
18.
Ibid., p. 701.
2 comentários:
Comunistas não conseguem sequer ser originais.Sempre atacando a cortesia,a educação e a civilidade e incentivando,melhor,idolatrando a vulgaridade a grosseria e a estupidez.
Como as coisas avançaram no sentido da igualdade!!
Hoje o tu, o você estão generalizados. Mas se exige algo muito mais radical: é a ideologia de gênero que se quer implantar, exigindo a extinção da diferenciação entre homem e mulher!...
A Revolução maior caminhou muito em relação à segunda Revolução (francesa). E aqui estamos, enquanto não houver uma intervenção da Providência.
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