17 de agosto de 2012

“Diz-me como falas e dir-te-ei quem és”


Após termos visto, no post anterior, alguns trechos da introdução do livro A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias, de Fréderic Rouvillois (Professor de Direito Público na Universidade de Paris-V, grande colecionador de tratados de savoir-vivre), continuamos hoje com a postagem de alguns excertos do primeiro capítulo da obra. 

Antes, porém, faço um comentário... (uma ameaça?!). Não se preocupe, dileto leitor, serei breve... 
Na introdução do livro, o Prof. Rouvillois demonstrou como a história da polidez teve seus pontos altos e baixos na França. O ilustre autor não tem essa opinião, mas, de fato, um dos pontos mais elevados da polidez se deu no “Ancien Régime”, época do esplendor da “douceur de vivre” (a “doçura de viver” herdada da Cristandade medieval), do charme, da elegância, da cortesia que pairavam sobre a França até a eclosão da Revolução de 1789. O ponto mais baixo foi, sem dúvida, o período da Revolução Francesa, época da grosseria generalizada, na qual o povo francês passou pelo pesadelo. 


A Rainha Maria Antonieta é guilhotinada
Durante tal época, dominada pelas ideias revolucionárias, as boas maneiras foram odiadas, condenadas, e seus representantes guilhotinados. Proscreveram-se até as saudações respeitosas que pudessem lembrar o século de Luís XIV. Tudo em nome do igualitarismo, segundo o qual não se pode saudar de modo diferente um do outro, pois todos são iguais, todos são “citoyens” (cidadãos). Se a distinção está proibida, é o estabelecimento da descortesia e da vulgaridade no trato social. 

A propósito, encerro meu comentário com esta frase lapidar de Plinio Corrêa de Oliveira: 
“A Revolução Francesa foi satânica porque ela cometeu sacrilégios, entronizou a deusa razão, etc. Mas não só por isso. Foi satânica porque consistiu numa explosão de ódio contra o bem, representado pela pompa, pela graça, pela cortesia, que brilharam naquele tempo”. 

Passamos então à transcrição de trechos selecionados do Capítulo I da obra “A HISTÓRIA DA POLIDEZ — De 1789 aos nossos dias: 

“‘As boas maneiras’, declarou no fim do século XVIII o especialista em direito público inglês Edmund Burke, ‘são mais importantes que as leis e é a elas que as leis em grande parte se subordinam’.(1) Em muitos aspectos, essa observação, que resume a filosofia do Antigo Regime,(2) esclarece em negativo as razões, as finalidades, mas também a virulência da ofensiva da Revolução Francesa contra os bons costumes. 

Se os revolucionários entram em confronto com a polidez, tal como é praticada na época, isso se dá ao mesmo tempo em oposição ao Antigo Regime e em nome dos próprios princípios da Revolução. [...] 

Era dos "sans-culottes": Morte da linguagem polida 
Sans-culotte (1789)
“É exatamente isso que os revolucionários reclamam: ir ao encontro da igualdade e da fraternidade, das quais eles pretendem extrair os fundamentos do novo regime e da humanidade regenerada. A polidez contra a igualdade republicana: tal é o complô denunciado por Hébert, redator do jornal Le Père Duchesne, reportando-se às palavras de um contra-revolucionário disfarçado: ‘Todos os indigentes, que nós teríamos posto de joelhos diante de um brasão, nos falam hoje com o chapéu enfiado na cabeça. Não há mais classes nem distinções; o cidadão que vende água em potes e cidadão banqueiro estão na mesma linha; é, ao contrário, uma honra não ter terras nem posses, e não se obtém nenhuma consideração se não se for o que se chama um verdadeiro sans-culotte’.(3)(4) [...] 

“Dos ângulos históricos, sociais e morais, a polidez parece intimamente ligado ao Antigo Regime. Por isso os elementos mais radicais da Revolução Francesa, que pouco a pouco ganham terreno, se aproximam do poder depois de 10 de agosto de 1792, e, tomando-o de assalto, enfim, depois de maio de 1793, com a eliminação dos girondinos, vão se empenhar em reverter os usos e as regras — sancionando, dentre os que lhes permaneceram fiéis, os que de imediato não lhes pareceram politicamente suspeitos. 


Ancien Régime: estilo polido
Fixados esses objetivos, não surpreende que tal ofensiva se manifeste, em primeiro lugar, nas relações sociais — e em particular na esfera da linguagem e da fala. A esse respeito, pode-se mencionar, com certeza, o gosto pronunciado de certos autores e certos jornais, dos primeiros anos da Revolução, pela grosseria e pela trivialidade. Trata-se, para eles, de chocar o que é designado, com menosprezo, por ‘gente honesta’, ‘gente de bom-tom’, ou ainda ‘gente como deveria ser’. Chocando-os, fica demonstrado, sem grande esforço, o seu fervor revolucionário. É assim que Hébert, redator de Père Duchesne, o jornal favorito dos exaltados, ornamenta seus artigos de inverossímeis ladainha de blasfêmias e torpezas, como ‘b...’, ‘f...’, ‘J... F...’, ‘pé no traseiro’, ‘capeta’, expressões das quais se prevalece como se fosse um alvará de civismo — o que não impedirá, de resto, que ele venha a ser preso, acusado de complô, e executado em 24 de março de 1794. 


Revolução Francesa: estilo deselegante
Por outro lado, dirigindo-se a um moderado como Camille Desmoulins, Hébert recrimina o uso da ‘linguagem dos afetados [entre os quais ele se inclui], nos sentimentos assim como no amaneirado’. Para ele, tudo se liga: as maneiras revelam os sentimentos, as ideias, as convicções profundas, e aquele que se comporta ou se expressa como aristocrata certamente está muito próximo de ser um deles; é preciso, pois, advertir ‘que ele cuide com atenção da gravata fatal’.(5) Mais claramente, ele merece a guilhotina. [...] 

“A língua francesa, declara o autor, um tal ‘C*** B***, Homem livre’, deve ser regenerada pela Revolução, pois, ‘Não basta que uma língua seja rica em vocabulário, é preciso ainda [...] que, com as falsas ideias, ela não privilegie imagens continuas de servidão e abjeção’.(6) Tal é o caso da língua francesa, que depois da época feudal se tornaria ao mesmo tempo mais polida e ‘menos verdadeira’. Essa corrupção se manifesta, de saída, prossegue C*** B***, pelo ‘absurdo e ridículo uso de chamar [o superior] vós em vez de tu’, maneira incontestavelmente ‘feudal’ de se exprimir; o que haverá de mais humilhante, com efeito, do que ser chamado de tu por alguém a quem se deve tratar por vós

A mesma “igualdade” reivindicada, posteriormente, na Revolução Comunista
Essa corrupção do ‘jargão polido’ se traduz, em seguida, pelo uso dos termos cavalheiro, senhor, madame, que igualmente atestam o carácter não igualitário das relações sociais. Ora, esse estado da língua francesa é ‘uma das principais causas do nosso embrutecimento e da nossa servidão’. Eis porque o autor propõe ‘a todos os bons cidadãos, a todos os amigos da liberdade e da igualdade’, sacrificar ‘de pronto, um uso prejudicial aos eternos princípios da verdade’. Restabelecendo ‘a língua pura e simples da natureza’, pretende C*** B***, proibindo o tratamento vós, substituindo os termos senhor, madame por cidadão ou cidadã, dirigindo-se a cada um pelo seu patriotismo, ‘logo recuperaremos nossos verdadeiros direitos e restabeleceremos a igualdade’. Como se as coisas e as palavras estivessem tão inextricavelmente atadas umas às outras, que bastaria silenciar estas últimas para fazer desaparecer aquelas. 


Ancien Régime: opção preferencial pelo charme
A ofensiva emana de ‘gente delicada e bem educada’,(7) e em particular de uma jovem aristocrata, conquistada pelos ideais republicanos, a senhorita de Kéralio, filha de um acadêmico, de quem Michelet insinua que ela própria não respeitava o tratamento tu que exigia dos outros.(8) O que não impede o Mercure national de dar eco imediato aos clubes políticos, às sociedades fraternais e às repartições de Paris, onde desde o ano seguinte o termo cidadão é substituído por senhor. Quanto ao tratamento tu, este pouco a pouco é imposto pela rua. No dia 4 de dezembro de 1792, tendo um orador observado que ‘a palavra vós era contra o direito de igualdade’, a assembleia geral dos sans-culottes de Paris proclama o banimento desse ‘resto de feudalismo’, e exige o tu ‘como a verdadeira palavra digna de homens livres’,(9) No mesmo momento, a sociedade popular de Sceaux declara que, doravante, seus membros ‘usarão o tratamento de irmãos, usarão o tu e se chamarão cidadãos, abjurando solenemente a palavra senhor’. 


Revolução Francesa: opção preferencial  pelo grosseiro
A radicalização da Revolução vai confirmar essa tendência. Após a eliminação dos girondinos, hostis a tais familiaridades, os sans-culottes tentam impor legalmente a proibição do tratamento vós. Na altura do 10º Brumário do ano II (20 de outubro de 1793), uma representação parlamentar das sociedades populares de Paris declara à Convenção que ‘muitos males resultam ainda desse abuso praticado pela arrogância dos perversos e pela adulação; sob o pretexto do respeito, ele afasta os princípios das virtudes fraternais’. A representação reclama, portanto, uma lei que garanta a reforma desses vícios. E, como essa regra parece essencial, pleiteia que ela seja sancionada sem restrições: é preciso que os refratários ao tratamento tu sejam declarados suspeitos, já que ‘favorecem, dessa forma, a arrogância que serve de pretexto à desigualdade’.(10) É sempre a mesma ideia: diz-me como falas, dir-te-ei quem és; deixa-me ensinar-te como se fala e, sejas quem fores, tu te tornarás um verdadeiro republicano... [...] 


Revolucionários confabulavam no Café Procope. No centro, Voltaire com o braço levantado
“Afinal, nenhuma lei será adotada. Mas, no fundo, isso já não é mais necessário: adotado pelo todo-poderoso comitê de saúde pública, o tratamento tu se torna, daí por diante, oficiosamente obrigatório, e sua prática se generaliza tanto na sociedade como nas forças armadas(11) ou no âmbito da administração. Quanto aos contraventores, se evitam a pena capital que os radicais lhes destinavam, não escapam a alguma sanção, longe disso. No dia de Natal de 1793, no Procope [no famoso Café Procope, restaurante fundado em 1694 em Paris, reuniam-se revolucionários de 1789 para confabularem (desenho acima)], na rua da Anciènne-Comédie, um garçom, mal informado do recente triunfo da Fraternidade, tem a ‘deplorável’ ideia de tratar por vós a dois cidadãos que ele estava prestes a servir; estes se enfurecem, o afrontam, temendo que os tomassem como suspeitos de cumplicidade: ‘Eles, o chamaram escravo’, relata um agente secreto do ministério do Interior que assiste à cena. ‘e o injuriaram de forma revoltante, enquanto o garçom, um senhor idoso, se desculpava, repreendia-se pelo uso do vós e repetia tu, e ti. Eles agitaram todo o café, dizendo que o patriotismo os empenhava em guiar todos os cidadãos segundo os bons princípios’. 

Esse ‘erro malfadado’, devido à força do hábito ou à fadiga, teria terminado muito mal para o aturdido garçom, se os acusadores ultrapassassem ‘os honestos limites de todos os bons republicanos’ e não tivessem sido instados a sair do café, ‘o que eles fizeram, lamentando-se’.(12) 

A história não nos diz se o porteiro, que tinha colocado sobre a porta do escrivão Guinguené uma placa com os dizeres ‘Aqui se honra o título de cidadão e usa-se o tratamento tu. Fecha a porta, s´il vous plait’ [se fazeis o favor],(13) teve a mesma sorte do garçom do Procope... 

Na província, as coisas vão por vezes ainda mais longe que em Paris. Testemunha-o uma deliberação tomada no 24º Brumário do ano II (14 de novembro de 1793) pelo comitê revolucionário do distrito de Tarn, que por si só resume toda a questão: 
‘O Comitê revolucionário, Considerando que é da essência de sua instituição contribuir com todo o seu poder para a anulação dos abusos do antigo regime; Considerando que os princípios eternos da igualdade não podem admitir que um cidadão diga vós a outro cidadão que lhe responde por tu; [...] Artigo 1º — A palavra vós nos pronomes e nos verbos, quando se trate de um só indivíduo, está, deste momento em diante, banida da língua dos franceses livres e deve ser substituída, em todos os casos, pelas palavras tu ou ti. (14) [...] 
“Ao mesmo tempo, interdito similar atinge os termos senhor e senhora. Desde 22 de setembro de 1792, o dia seguinte à abolição da monarquia, Charlier proclama na Convenção que ‘assim como a Revolução atinge completamente as coisas, é preciso que ela atinja também as palavras. O título cidadão é o único que deve ser utilizado em todos os atos antes designados por vós. A palavra senhor ou seu não deve mais ser uma qualificação em uso’.(15) [...] 

Cidadãos... Camaradas... Companheiros... 
O termo cidadão é adotado, em substituição a senhor, até no repertório dramático. No dia 26 de abril de 1794, todos os diretores de teatro recebem ordem oficial de fazer desaparecer, das peças que encenarem, as palavras e os títulos interditos, substituindo-os por termos ‘civicamente corretos’. Estes se apressam a corrigir os textos, até mesmo de autores antigos e prestigiados... 

A essa caça às palavras interditas se espalha por toda parte, até nas instâncias mais inadequadas, como em igrejas, escolas ou faculdades, pois ‘não se trata’, declara Robespierre, ‘de formar senhores, mas cidadãos’.(16) 

Os que ainda ousam pronunciar os termos antigos são objetos de suspeição, tal como os que persistem em praticar o tratamento vós: assim, no dia 24 de janeiro de 1794 (5 do pluvioso do ano II), o Comitê Revolucionário dos Trezentos coloca um velho comerciante de madeiras, Jean-Baptiste Gentil, sob a suspeita de tolerar em seus domínios o uso das palavras interditas: ‘Ele conservou um espírito de grandeza’,(17) garantem seus acusadores; é portanto, um mau cidadão, um contra-revolucionário em potencial, que é necessário punir, na medida do seu crime. Da mesma forma, no sexto mês do calendário republicano no ano II, um comerciante de tabaco, de 68 anos de idade, é expulso da Sociedade Popular do Bom Conselho, da qual ele havia sido, até então, um membro pontual e devotado, por haver inadvertidamente chamado de senhor o seu presidente...(18) 
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Notas: 
1. Citado por J.F.Kasson, Les Bonnes Manières,savoir-vivre et société aux États-Unis, Belin, 1993, p. 83. 
2. Ancien Régime: Período histórico iniciado com o Renascimento (no final do período medieval) e que se estende do até a Revolução Francesa (1789). 
3. Le Père Duchesne, reedição EDHIS, 1969, t. VII, no 201, 1792, p. 5. 
4. Sans-culotte: Significa literalmente “sem calção”, designação pejorativa dada aos homens do povo, adeptos fanáticos da Revolução Francesa, que trajavam calças longas, comuns, em vez dos convencionais calções bufantes, na altura dos joelhos. 
5. Citado por L.Gallois, Histoire de sjournaux et des journalistes de la Révolution française, Bureaux da la Sociéte de l´industrie fraternelle, 1845, t. I, p. 565. 
6. C*** B***, “Sur l´influence des mots et le pouvoir de l´usage”, Le Mercure national, 14 de dezembro de 1790, pp. 1813-1814. 
7. F.A.Aulard, “Le tutoiement”, art. cit. p. 482. 
8. J. Michelet, Les Femmes de la Révolution, A. Delahays, 1855, p. 191. 
9. A. Soboul, Les Sans-Culottes parisiens en l´na II. Mouvement populaire et gouvernement révolucionnaire, 2 juin 1793-9 Thermidor na II, Clavreuil, 1958, p. 655. 
10. Le Moniteu, citado por A. Soboul, Les Sans-Culottes, Le Seuil, “Points”, 1979, p. 215. 
11. Cf. Ph. Wolff, Vous, une histoire internationale du vouvoiment, Toulouse, Signes du monde, 1993, p. 213. 
12. Relatório do agente, citado por P. Caron, Paris pendant la Terreur, op. cit., t. I, 1910, p. 409. 
13. Citado por A. de Baecque, F. Mélonio, Lumières et Liberté, Le Seuil, p. 2004. p. 205. 
14. Citado por J. Robiquet, La Vie quotidienne au temps de la Révolution, Librairie Hachette, 1938, pp. 64-65. 
15. Citado por F. Brunot, Histoire de la langue française, Armand Colin, 1937, t. IX, 2ª parte, p. 683 
16. M. Robespierre, Textes choisis, op. cit., t. III, p. 175. 17. A. Soboul, Les Sans-Culottes, op. cit., p. 408. 18. Ibid., p. 701.
17. A. Soboul, Les Sans-Culottes, op. cit., p. 408.
18. Ibid., p. 701.

2 comentários:

Oswaldo David disse...

Comunistas não conseguem sequer ser originais.Sempre atacando a cortesia,a educação e a civilidade e incentivando,melhor,idolatrando a vulgaridade a grosseria e a estupidez.

Santos disse...

Como as coisas avançaram no sentido da igualdade!!
Hoje o tu, o você estão generalizados. Mas se exige algo muito mais radical: é a ideologia de gênero que se quer implantar, exigindo a extinção da diferenciação entre homem e mulher!...
A Revolução maior caminhou muito em relação à segunda Revolução (francesa). E aqui estamos, enquanto não houver uma intervenção da Providência.