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Coroação do Papa Pio VI — Antonio Poggioli (1795–1830). Metropolitan Museum of Art, Nova York |
“Nas fileiras católicas, não faltou infelizmente quem tivesse a audácia de propor à Santa Sé que, para conciliar melhor as simpatias das massas, o Papado se ‘democratizasse’ e o Pontífice Romano renunciasse às manifestações exteriores e solenes de seu supremo poder”
O artigo que segue foi publicado há 86
anos, mas agora vem à tona a propósito do novo pontificado que se iniciou em 8
de maio com o Papa Leão XIV.
O texto é de Plinio Corrêa de Oliveira (Legionário, 12-3-1939). Ele expõe duas questões que se tornaram candentes no noticiário sobre a morte de Francisco e a eleição de Leão XIV, sobretudo no que tange ao “espetáculo grandioso das cerimônias do Vaticano”.
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O ósculo dos pés na Basílica de São Pedro, em Roma — Antoinette Cécile Hortense (1784-1845). Museu do Louvre, Paris. |
REX PACIFICUS
Plinio Corrêa de Oliveira
No dia em que se desenrolam em Roma as cerimônias faustosas da coroação do novo Pontífice, deve ser grato aos corações católicos meditar atentamente as circunstâncias dentro das quais essa solenidade se realiza.
No século passado, em que o liberalismo político grassava pela Europa inteira, agravado por uma monomania democrática vizinha do delírio, as grandes solenidades pontifícias se desenrolavam não raramente sob o olhar hostil e a censura surda de grandes setores da opinião pública. Evidentemente, durante toda a vida da Igreja, nunca faltou a esta o amor de filhos dedicados e entusiastas.
Entretanto, é incontestável que, no século passado, os fulgores
dessas belas provas de amor alternavam sombriamente com o rancor igualitário
daqueles que, na faina de destruir toda a ordem religiosa, política e social,
não suportavam o espetáculo grandioso das cerimônias do Vaticano.
Os argumentos não faltavam para servir de pretexto a tanto rancor. O primeiro deles, já antigo, era da autoria de Judas Iscariotes: por que gastar tanto dinheiro, em lugar de dar aos pobres? O outro, de sabor mais acentuadamente luterano: não haverá idolatria em se prestar a um homem tantas provas de sumo respeito? Finalmente, a blasfêmia anarquista não deixava de se fazer ouvir neste triste concerto: quando chegará o dia feliz em que enforcaremos o último Papa nas tripas do último rei?
A Santa Sé nunca deu atenção a tais rancores. Com uma sublime e desassombrada energia, ela continuou a manter intacto seu magnífico e suntuoso cerimonial, que outra coisa não é senão a afirmação, através de cerimônias perceptíveis pelos sentidos, do princípio da autoridade, de que o Papa é o mais alto e mais sagrado representante na Terra.
Nas fileiras católicas, não faltou infelizmente quem tivesse a audácia de propor à Santa Sé que, para conciliar melhor as simpatias das massas, e vencer mais facilmente a revolução social que se fazia prenunciar de modo sinistro, o Papado se "democratizasse" e o Pontífice Romano renunciasse às manifestações exteriores e solenes de seu supremo poder.
A
Igreja, entretanto, nunca deu ouvidos a essa falaciosa proposta. Não é de seu
feitio transigir com o erro, ou procurar entabular com ele um duelo de
subtilezas e astúcias.
Quando o princípio de autoridade periclitava no mundo inteiro, pondo em risco a autoridade de todos os monarcas e chefes de Estado, não era o Vigário de Cristo, do qual provém toda a autoridade, que tomaria ares de pactuar com a revolução. A missão da Igreja não consiste em se adaptar aos séculos, mas de adaptá-los a si própria. Ela nunca baixará até os erros dos homens, mas elevará a humanidade até si.
Por
isso, enquanto as monarquias ruíam fragorosamente, as repúblicas se dissolviam
na anarquia das crises sociais, e as mais antigas dentre as cortes
sobreviventes se democratizavam a olhos vistos, o Vaticano conservou intacto
seu grandioso cerimonial.
Vem, agora, o outro aspecto da questão.
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Comício nazista em Nuremberg, em 1934 |
Um
verdadeiro vendaval político-social foi a consequência da pregação das
doutrinas liberais. Esse vendaval suscitou a tendência geral para uma
consolidação de autoridade. Todos os povos, outrora minados pela febre da
liberdade, se sentem hoje trabalhados por uma intensa propaganda a favor da
consolidação do Poder público, com preterição ou até supressão dos mais
sagrados direitos da pessoa humana.
Os novos césares, como o exige a natureza das doutrinas que pregam, sentem a necessidade de confirmar sua autoridade com os sinais exteriores do poder, desenvolvidos através de imponentes cerimônias cívicas. E, com isso, todo um cerimonial político renasce em nossos dias, que bem poderia ser chamado a liturgia faustosa dos novos ídolos que as massas levantam acima de si mesmas para lhes prestar adoração.
Interessante
é notar, a esse propósito, o ambiente que cerca essa nova e estranha liturgia
política. Duas notas a caracterizam: força e domínio. Atente-se para uma
cerimônia nazista. Em algum imenso estádio da Alemanha, comprime-se uma
multidão incontável, que se torna cada vez mais densa porque os ônibus e os
trens despejam ondas humanas sempre mais numerosas. Para encher o tempo, inúmeros
alto-falantes transmitem a voz de um locutor.
Do
que fala ele? Da luta do partido nazista, de suas vitórias passadas, dos
inimigos que esmagou, esmaga e esmagará. Quando, ao cabo de uma longa série de
injúrias e de ameaças, o locutor se cala para tomar fôlego, a multidão entoa
cânticos guerreiros. Refletores deslumbrantes erguem para o céu colunas
verticais. Uma tribuna imensa, composta de blocos graníticos pesados e brutais,
se ergue no centro de tudo isso. De repente, estrugem gritos e urros de entusiasmo.
É o “Führer” que chega.
As
canções guerreiras redobram. Os canhões estrugem. A multidão ulula como um mar
enfurecido. O “Führer” começa a falar: do outro lado das fronteiras,
Chamberlain treme de medo, apoiado em seu guarda-chuva; Daladier prefere fingir
que não ouve, para não ter de brigar (como os meninos bem educados, quando
passam perto dos moleques na rua e ouve seus insultos, fingindo não notar
nada). Mussolini presta atenção: é tão bonito; quem sabe se ele conseguirá
fazer igual! Roosevelt não entende bem como é que, tendo ele tantos milhões de
dólares, Hitler não é amigo dos Estados Unidos. E os povos fracos da Terra
tremem.
Exéquias do Papa Pio XI
Para
completar o quadro, seria suficiente que uma legião de demônios aparecesse no
céu, vociferando em gritos agrestes: glória ao novo messias, a opressão, na
terra, para os povos que não têm canhões! E o mundo inteiro aplaude ou treme;
mas, quer aplaudindo, quer tremendo, secretamente admira!
É
sob o signo dessa dura liturgia do ódio e da guerra, do sangue e da luta, que o
mundo curva a cabeça em atitude respeitosa e admirativa. Nessas grandes festas
públicas, não há outro gáudio senão o do orgulho exacerbado e do ódio
satisfeito.
Não são propriamente festas, esses tremendos “sabbats” cívicos. São bacanais em que as multidões não se embriagam mais, como no tempo dos césares, com o vinho capitoso e subtil das plantações itálicas, mas com o licor espiritual grosseiro, de um patriotismo levado até à loucura.
Enquanto
isso, morre para o mundo e nasce placidamente para o Céu o Papa Pio XI. Sua
morte não anunciada pelo troar dos canhões, mas pelo som paternal e suave dos
sinos de São Pedro, que repercutem de campanário em campanário, até os extremos
da China ou da Groenlândia.
Nenhum Departamento de Propaganda engaiola as multidões para levá-las à força para Roma. Mas Roma se enche de uma multidão que faria babar de inveja o Ministério da Propaganda da Alemanha [do período nazista], e muitas repartições congêneres de outros países. Não há desfiles marciais de soldados, nem desenrolar de tropas agressivas. Apenas a gendarmerie pontifícia, que contém e policia paternalmente a multidão pacífica e enlutada.
Anuncia-se,
depois, o novo Papa. Uma multidão aguarda seu nome. Outras multidões afluem de
todas as ruas e de todos os becos de Roma, para saber quem foi o eleito. Todo o
mundo aplaude. Mas, ainda aí, não há outro eco senão o das sonoras e musicais
trombetas de prata dos arautos, as harmonias graves dos sinos da Cidade Eterna,
e os vivas da multidão.
Pio XII abençoa a multidão reunida
na Praça de São Pedro.
Não, o Vaticano não é a caserna em que o gado humano é arregimentado para a carnificina, mas a casa suntuosa, porém acolhedora, do Pai comum, que é o lar espiritual de todos os povos da Terra, que ali ombreiam uns com os outros, numa alegria despreocupada e pacífica, de que só o Vaticano, hoje em dia, é teatro.
Pio XII sendo levado na
Sede Gestatória
no dia de sua coroação.
Finalmente, anuncia-se a coroação do Papa. Nenhuma cerimônia, no mundo inteiro, é mais majestosa. Nenhuma, porém, é ao mesmo tempo mais pacífica, mais serena, mais familiar. O povo não treme diante de um ídolo, mas delira de contentamento diante de um Pai. O povo não se ajoelha diante de um algoz, mas beija reverente os pés daquele que é uma branca e suave figura. E na majestade de seu porte, a Santidade e a Majestade suprema do Criador.
E,
no menor Estado do mundo, que é o Vaticano, uma das maiores multidões que a
Itália — mesmo a fascista — tenha jamais contemplado, celebra, à sombra do
Vigário de Cristo, ao mesmo tempo a mais pacífica e a mais jubilosa das
cerimônias deste sinistro século de lutas e de guerras.
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