Chamem-te malfeitor, não contradizes;
Sendo tu dos Profetas a certeza,
Dizem que quem te fere profetizes.
Rim-se de ti; tu choras a crueza
Que sobre eles virá a gente dura,
Por quem tu vens ao mundo, te despreza.
O teu rosto, de cuja formosura
Se veste o Céu e o Sol resplandecente,
Diante de que muda está a Natura.
Com cruas bofetadas da vil gente,
De precioso sangue está banhado,
Cuspido, arrepelado cruelmente.
Aquele corpo tenro e delicado,
Sobre todos os Santos sacrossanto,
De açoutes rigorosos flagelado;
Depois, coberto mal de um pobre manto,
Que se pegava às carnes magoadas,
Para dobrar-lhe as dores outro tanto.
Magoavam-no as chagas não curadas,
Um tormento causando-lhe, excessivo,
Ao despir pelas mãos cruéis e iradas.
As santíssimas barbas de Deus vivo,
De resplendor ornadas lhe arrancavam,
Para desempenhar Adão cativo.
Com cordas pelas ruas o levavam,
Levando sobre os ombros o troféu
Das vitórias que as almas alcançavam.
Ó tu que passas, homem Cireneu,
Ajuda um pouco este Homem verdadeiro,
Que agora como humano enfraqueceu!
Olha que o corpo, aflito do marteiro
E dos longos jejuns debilitado,
Não pode já co´o peso do madeiro.
Ó não enfraqueçais, Deus encarnado!
Essas quedas, que tanto vos magoam,
Suportai, Cavaleiro sublimado!
Que aquelas altas vozes que lá soam,
Padres são que estão no Limbo escuro,
Que já de louro e palma vos coroam.
Todos vos bradam, que subais ao muro
Da cidade infernal, e que arvoreis
Em cima essa bandeira, mui seguro.
Ó Santos Padres, não vos apresseis,
Que muito mais a Deus que a vós custaram
Essas duras prisões em que jazeis!
Aquelas mãos, que o mundo edificaram,
Aqueles pés, que pisam as estrelas,
Com duríssimos pregos se encravaram.
Mas qual será a pessoa que as querelas
Da angustiada Virgem contemplasse
Que não se mova à dor e à mágoa delas?
E que dos olhos seus não estilasse
Tanta cópia de lágrimas ardentes
Que carreiras no rosto sinalasse?
Ó quem lhe vira os olhos refulgentes
Convertendo-se em fontes e regando
Aquelas belas faces excelentes!
Quem a ouvira com vozes ir tocando
As estrelas, a quem responde o Céu,
Co´os acentos dos Anjos retumbando!
Quem vira quando o puro rosto ergueu
A ver o Filho, que na Cruz pendia,
Donde a nossa saúde descendeu!
Que mágoas tão chorosas que diria!
Que palavras tão míseras e tristes
Para o Céu, para a gente espalharia!
Pois, ó pura e Santíssima Maria,
Que, enfim, sentistes esta magoa, quanto
A grave causa dela o requeria.
Dessa Fonte sagrada e peito santo
Me alcançai uma gota, com que lave
A culpa, que me agrava e pesa tanto.
Do licor salutífero e suave
Me abrangei, com que mate a sede dura
Deste mundo tão cego, torpe e grave.
Assim, Senhora, toda a criatura
Que vive e viverá, que não conhece
A Lei do vosso Filho, a abrace pura;
O falsíssimo herege, que carece
Da graça, e com danado e falso espírito
Perturba a Santa Igreja, que floresce;
O povo pertinaz, no antigo rito,
Que só o desterro seu, que tanto dura,
Lhe diz que é pena igual ao seu delito;
O torpe Ismaelita, que mistura
As leis, e com preceitos viciosos
Na terra estende a seita falsa, impura;
Os idólatras maus, supersticiosos,
Vários de opiniões e de costume,
Levados de conceitos fabulosos;
As mais remotas gentes, onde o lume
Da nossa fé não chega, nem que tenham
Religião alguma se presume;
Assi todos, enfim, Senhora, venham
A confessar um só Deus crucificado,
E por nenhum respeito se detenham.
E dum e doutro vício já deixado,
O Seu nome co´o vosso, neste dia,
Seja por todo mundo celebrado
E respondam os Céus: JESUS, MARIA.
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Luís Vaz de
Camões (1524 - 1580)
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