9 de outubro de 2012

Século XIX — saudades da época de bom gosto anterior à Revolução Francesa

Em continuação ao post abaixo (O refluxo da grosseria e o retorno da polidez) — a respeito do empenho revolucionário para a extinção da polidez e o esforço dos franceses, após a Revolução de 1789, para recuperar a antiga cortesia) —, transcrevo novos trechos da obra de Frédéric Rouvillois, “A HISTÓRIA DA POLIDEZ — de 1789 aos nossos dias”.
“Em seu Dicionário dos costumes do mundo, surgido durante a Restauração(*), a condessa de Genlis afirma que as boas maneiras ‘foram inteiramente abolidas em 1792 até 1800, quando algumas delas começaram a ser retomadas’.(1)

De fato, os manuais de polidez se multiplicam entre 1800 a 1814, como se fosse pretendida uma revanche contra a grosseria revolucionária e a corrupção do Diretório. No entanto, essa renovação se efetua segundo um espírito que a governanta do duque de Orleáns considera muito diferente daquele que regera os costumes antigos. [...] 

Sob o Antigo Regime, de fato, o savoir-vivre se forma e se modifica a partir de um lugar único: a corte, centro de gravidade da alta sociedade, da vida mundana e dos bons costumes, na época de Luis XIV(2); uma corte que se estende pelos ‘salões’, sob o reinado de seus dois sucessores, Luis XV e Luis XVI. [...] 

Mas para poder desempenhar o novo papel social que daí por diante lhe cabe, o savoir-vivre sofrerá uma mutação profunda. É certo que deverá ser codificado, a fim de poder ser conhecido, aplicado e difundido. Até a Revolução, as regras do savoir-vivre, transmitidas oralmente no seio das famílias, encontravam-se dispersas, nos escritos dos moralistas. Salvo raras exceções, não se fazia o esforço de reunir esses preceitos de forma ordenada e sistemática, a não ser para as crianças, às quais se destinavam a Civilidade dos costumes das crianças, de Erasmo (1526), e A civilidade pueril e honesta, de [São] Jean-Baptiste de La Salle (1713) [imagem ao lado], dois volumes tão sumários quanto frequentemente reeditados, com infinitas variantes. [...] 

Nostalgia da cortesia que dava o tom antes da Revolução Francesa 
No século XIX, ao contrário, é precisamente a mobilidade social, o surgimento e a rápida ascensão de uma classe média que vão tornar indispensável esse gênero literário. O mesmo fenômeno produz em outras partes, além da Mancha e do Atlântico, onde a criação de manuais de boas maneiras parecem ter sido, paradoxalmente, ainda mais prolífera, com uma média de cinco ou seis por ano, entre 1870 e 1914. Mas a França, a esse respeito, não está em repouso: no século XIX, publicam-se várias centenas de obras consagradas mais ou menos diretamente ao savoir-vivre, ‘códigos’, ‘manuais’, tratados completos ou abreviados, guias ou dicionários, obras inumeráveis, mas que são também muito lidas, mesmo nas camadas mais modestas da população, e reeditadas à exaustão. Uma das mais famosas, Costumes do mundo [ao lado, capa do livro], da baronesa de Stasse, publicada pela primeira vez em 1889, já estava na sua 131ª edição em 1899, dez anos após seu aparecimento, sem saturar o mercado. [...] 

A partir da década de 1860 esses manuais são geralmente redigidos por senhoras portadoras de títulos de nobreza, sendo destinado principalmente ao público feminino, pois se trata de mostrar à pequena e à média burguesia como se deve comportar em alta sociedade e o que é preciso para ‘fazer parte’ dela. [...] 

Os manuais de boas maneiras conferem ao decoro um caráter sistemático, minucioso, sofisticado, que contrasta com a flexibilidade e o tratamento da polidez pré-revolucionária. A crer nos observadores da época, essa rigidez remontaria à etiqueta constrangedora em uso na corte imperial, e ao tom ‘exagerado, enfático, empolado’(3) que, a partir daí, se disseminaria pelo conjunto da polidez francesa. Ou, contrariamente às esperanças dos nostálgicos do Antigo Regime, esta não reencontrará nem seu brilho nem sua simplicidade ingênua, aquilo que Balzac chamava de ‘a graciosa franqueza do século XVIII’. Pois a rigidez napoleônica será bem cedo substituída por um rigorismo de outro gênero, importado da Inglaterra, que marcará fundo os códigos de boas maneiras de 1830. [...] 

É sob o reinado do rei burguês, Luis Felipe, que a França vai saturar-se da polidez à inglesa, que corresponde perfeitamente às expectativas, às necessidades e às estratégias da nova classe dominante. E essa influência inglesa será tão determinante que a Revolução de Julho vai acompanhar por muitos anos ‘o exílio interior’ da alta aristocracia legitimista do bairro de Saint-Germain, que depois da Restauração dava o tom, desempenhando o papel de mantenedor oficioso da antiga cortesia francesa. [...] 

Funções sociais do decoro no vestuário 
‘Dentre todos os hábitos do savoir-vivre, ignorar os que dizem respeito ao toucador e à indumentária denota a máxima vulgaridade’,(4) A etiqueta íntima declara gravemente madame d´Alq, no início da Terceira República.(5) Essa ideia, expressa ao longo de todo o século, brota praticamente da evidência: ‘As funções sociais do decoro no vestuário’, explica a esse propósito o historiador Philippe Perrot, ‘revestem uma importância particular por sua natureza imediatamente visível. Essas leis permitem, antes mesmo de qualquer palavra ou gesto, identificar de imediato o contraventor mais ou menos ignorante e remetê-lo ao lugar que merece’(6) — ou constatar, ao contrário, que a pessoa com quem cruzamos conhece os costumes do savoir-vivre e os pratica corretamente. ‘Assim como uma só palavra basta para trair uma origem, para revelar um passado ou um presente equivoco’, observa Éliane de Sérieul, sob o Segundo Império, ‘da mesma forma não é preciso senão uma renda desajustada, um babado, uma pena, um bracelete e, sobretudo, um par de brincos ou qualquer outro ornamento ambicioso para determinar uma condição social ou propiciar uma classificação aos olhos do homem ou da mulher providos de tato. Certas afetações na maneira de se vestir são falhas de elegância, assim como certas locuções são incompatíveis com a distinção de linguagem’.(7) [...] 

‘Usar uma indumentária em harmonia não só consigo mesmo, com seu caráter, humor, idade, fisionomia, tez, cor de olhos e cabelos, mas também com suas posses e com o lugar que ocupa no mundo, com os eventos e as horas do dia, com as épocas do ano, com os espaços a percorrer, eis aí’, nota Philippe Perrot, ‘um dos primeiros arcanos do decoro no vestuário’.(8) [...] 

Função do chapéu — ao mesmo tempo ornamento e escudo 
Assim como as luvas, e pelas mesmas razões, claramente simbólicas, o chapéu é, no século XIX, um acessório essencial da indumentária feminina, e um dos mais reveladores. E ele de fato corresponde à imagem da mulher, tal como esta é representada pela burguesia dominante: um ser moralmente superior aos homens, mas fisicamente inferior, um bibelô precioso e frágil, que deve ser protegido contra as ameaças sem número que a cercam. 

Daí a função do chapéu, ao mesmo tempo ornamento e escudo. A mulher deve conservar essa proteção, enquanto existir uma ‘ameaça’, por mais virtual ou teórica que seja.

Por isso, estima a baronesa Staffe, é sinal de incivilidade aparecer sem chapéu onde se corre o risco de encontrar, a qualquer momento, algum desconhecido, de quem se ignora o próprio nome.(9) 
Luvas, bengala, gravata — no século XIX, epicentro do decoro masculino 
No século XIX, o vestuário masculino interessa bem menos aos manuais de boas maneiras, às revistas ou às crônicas da moda do que o das mulheres. Depois da Restauração(*), concebido sobre o modelo inglês, o traje do homem tende cada vez mais à uniformidade e à austeridade, contrastando nesse aspecto com a diversidade, a profusão e a suntuosidade dos vestuários femininos. Para o homem de sociedade e o burguês, o século XIX é o século do traje preto e do chapéu alto. 

No entanto, essa simplicidade não deixa de estar igualmente submetida a seus códigos — pois cada hora do dia se caracteriza por um vestuário particular, cada acessório é objeto de regulamentações minuciosas, quer se trate de luvas, bengala ou gravata — epicentro do decoro masculino no vestuário. [...] 

Gravata — influência política, física e moral, suas formas, cores e espécies 
A gravata, escreve Balzac, ‘esparge como que um perfume raro em toda a indumentária’, estando ‘para esta assim como a trufa está para o jantar’. Ela constitui o acessório decisivo, numa época em que estes adquirem uma importância inédita. 

De casaca ou de casaco longo, só um olho de fato bem treinado distingue, ao primeiro golpe, o duque de um funcionário de cartório. São, pois, outros signos que vão indicar as diferenças: as bengalas (particularmente perto do fim do século), as luvas, certamente, mas antes de mais nada e acima de tudo as gravatas, como declara, ainda, Balzac, em um artigo publicado em junho de 1830: ‘Da gravata, considerada em si mesma e em suas relações com a sociedade e os indivíduos’. ‘Sob o Antigo Regime, cada classe da sociedade tinha sua vestimenta; reconhecia-se pela roupa o senhor, o burguês, o artesão. Então, a gravata [...] era só um complemento necessário, de forro mais ou menos rico, mas não merecedor de consideração, assim como sem importância pessoal. Enfim os franceses se tornaram todos iguais em seus direitos, bem como em sua indumentária, e a diferença no forro ou no corte dos trajes não distinguia mais as condições. Como então ser reconhecido em meio a essa uniformidade? Por qual signo exterior distinguir o nível de cada indivíduo? A partir daí, destinava-se à gravata um novo destino: desde então, ela nasceu para a vida pública, adquiriu importância social, pois foi chamada a restabelecer as nuanças, inteiramente apagadas, na indumentária; ela se tornou o critério que permite reconhecer o homem como deve ser e o homem sem educação’(10) 

Acessório por excelência, a gravata, no entanto, esteve sujeita, da Revolução ao início do século XX, a variações muito rápidas.(11) 

Vergonha dos revolucionários, que descobrem o pescoço ou substituem esse símbolo aristocrático por um pano qualquer, amarrado como um lenço; reaparecendo depois do Terror, particularmente entre os jovens extravagantes, que viram aí uma forma de manifesto contra-revolucionário; é sob a Restauração, na época em que Balzac publica sua Fisiologia da Indumentária, que a gravata conhece seu momento de glória. É então que se publica, para uso dos homens elegantes, um Tratado geral das gravatas consideradas em sua origem, sua influência política, física e moral, suas formas, suas cores e suas espécies (1823), Seguida, em 1927, por uma Arte de colocar a gravata de todas as maneiras conhecidas e usuais, ensinada e demonstrada, em dezesseis lições, pelo barão Émile de L´Empesé. [...]

Mas as coisas mudam depois de 1830 e do advento da Monarquia de Julho, dominada pelas elites burguesas mais ativas, que já não dispõem de tanto lazer nem das motivações necessárias, havia pouco, ao rito complexo da gravata. Eis a razão pela qual esta se simplifica, até mesmo em seu volume, assim como também seu papel social tende a se reduzir.

Nem precisaria ser dito, no entanto, que seu uso permanece obrigatório, desde a adolescência, praticamente em todos os momentos do dia.

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Notas: 
(*) Período transcorrido de 1814 a 1830, em que se pretendeu, após a queda de Napoleão, o restabelecimento dos princípios monárquicos que vigoraram no regime anterior à Revolução Francesa. 
1. Dictionnaire des usages du monde, Mongie-Ainé, 1818, t. I, p. 75. 
2. N. Élias, La Société de Cour, Flammarion, 1985, pp. 63-64. 
3. La Politesse qui régnait à l´ancienne Cour de France comparée au ton de la Cour de Bonaparte, Renand, 1814, p. 7. 
4. Mme d´Alq, Le Savoir-Vivre en toutes les circonstances de l´vie, librairie de la famille, François Ebhardt, 24ª ed., 1879, p. 209. 
5. Governo republicano da França, de 1870 até a invasão dos nazistas, em 1840, quando passa a ser governo de Vichy. Foi a mais longa república deste a Revolução Francesa de 1789. (N.T.) 
6. Ph. Perrot, Les Dessus et les Dessous de la burgeoisie, une histoire du vétement au XIXe siècle, Bruxelas, Complexe, 1984, p. 169. 
7. Le Diable rose, nº 4, t. 3, 20 de julho de 1862. 
8. Ph. Perrot, Les Dessus et les Dessous de la burgeoisie, une histoire du vétement au XIXe siècle, op. cit., pp. 172-173. 
9. Agenda de la baronne Staffe, 1897, Havard, 1897, p. 51. 
10. H. de Balzac, Physiologie de la toilette, Oeuvres diverses, p. 47. 
11. Ph. Perrot, Les Dessus et les Dessous de la burgeoisie, une histoire du vétement au XIXe siècle, op. cit., pp. 208 e ss.

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