✅ Paulo Henrique Américo de Araújo
Durante as noites frias do Natal londrino no início do século XIX as pessoas que passavam em frente à Capela da Embaixada de Portugal costumavam ouvir os melodiosos acordes de uma encantadora canção. Por que apenas ali naquele edifício ela era ouvida? Uma simples pesquisa sobre uma das mais famosas músicas natalinas — que tanto agradava os ingleses — nos leva a narrações lendárias, conjecturas históricas e até profecias. Os moradores de Londres a chamavam de The Portuguese Hymn (o Hino Português). Nós a conhecemos melhor como Adeste Fidelis.
Para entendermos o motivo das especulações sobre a peça musical, precisamos voltar os olhos para o século XVI, quando ocorreu a triste cisão entre a nação inglesa e a Igreja Católica. Após o Rei Henrique VIII ter declarado seu divórcio com a Rainha Catarina de Aragão, contrariando assim as leis divinas e eclesiásticas, acabou por ser excomungado pelo Papa Paulo III, em 1538. A partir daí, surgiu a Igreja Anglicana, de fundo protestante, violentamente anticatólica e tendo como chefe — ou “papa” — o próprio monarca britânico.
“Aproximai-vos, fiéis, alegres e triunfantes...”
Durante séculos, os católicos ingleses viveram perseguições as mais terríveis no seu próprio país. Neste ínterim, vários movimentos se levantaram para a restauração católica na “Ilha dos Anjos”. Houve então o levante dos “jacobitas”, que buscou restabelecer no trono os príncipes católicos, herdeiros do Rei Jaime II. Este ocupara o trono durante poucos anos (1685-1688), mas por causa de sua fé católica, foi expulso pelos revoltosos protestantes. Apenas no ano de 1829, a Igreja Católica obteve liberdade no país, mas sem o restabelecimento dos príncipes católicos como soberanos.
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| Retrato de Jaime II Nicolas de Largillière (1656–1746) Museu Marítimo Nacional, Londres |
A tese falsa sobre a autoria surgiu a partir da confusão entre a capela da embaixada portuguesa e a chamada “Capela da Rainha” no Palácio de São James, ambas situadas em Londres. Dona Catarina de Bragança, princesa portuguesa, casara-se com o rei protestante Carlos II da Inglaterra em 1662. A Rainha-consorte tinha direito a praticar a religião católica apenas privadamente. Como D. Catarina era filha do Rei D. João IV, a lenda se espalhou de que dele vinha a música. Sabemos, contudo, que a canção só começou a ser ouvida na Capela da Embaixada portuguesa, muitas décadas após D. Catarina ter estado em Londres e ter ouvido, provavelmente, outras músicas em outra capela, a “sua”!
No duro período entre perseguições e tentativas de restauração católica na Inglaterra, aparece a figura de John Francis Wade . Com o fracasso do último levante “jacobita”, ocorrido em 1745, este piedoso leigo católico foi obrigado a se exilar em Douai, França.
Nesta época, a cidade de Douai era um bastião formado para combater os erros do protestantismo, possuindo inclusive uma faculdade inglesa. Os católicos ingleses ali se refugiavam desde o reinado da ímpia Rainha Isabel I. O currículo da faculdade era voltado principalmente para preservação do catolicismo na Inglaterra. Um refúgio ideal para John Wade, já que ele ensinava música para crianças, copiava cantos gregorianos e hinos diversos.
Neste ambiente de luta contra o protestantismo, Wade compôs o Adeste Fidelis. É interessante notar que ele teria composto essa música natalina com uma linguagem cifrada para a volta dos príncipes católicos ao trono inglês. Veja-se, por exemplo, a estrofe inicial da música: “Adeste fideles læti triumphantes, venite, venite in Bethlehem...”, que se traduz por “Aproximai-vos, fiéis, alegres e triunfantes, vinde, vinde a Belém...”. A palavra “fiéis” relaciona-se com os católicos ingleses. “Belém”, no uso comum dos jacobitas, significava Inglaterra!
Esperança da restauração católica
E na sequência da música, temos: “Natum videte Regem angelorum...”, isto é, “Contemplai-o, aquele que nasceu, o Rei dos Anjos”. Obviamente, o verso se refere ao Menino Deus nascido. Mas “Rei dos Anjos” pode ser entendido também por “Rei dos Anglos”, o “Rei dos Ingleses”! Desta maneira tão bela, o autor convida a todos a virem receber dois Reis: o primeiro, Nosso Senhor Jesus Cristo; e o segundo, o legítimo rei católico inglês.
Nos outros versos, há possíveis referências intencionalmente colocadas para trazer uma luz de esperança aos católicos ingleses. Nada mais adequado do que uma canção de Natal para reascender a confiança nos seus corações de que um dia a pátria voltará ao seio da Igreja verdadeira. Nesse sentido, São Domingos Sávio teve uma visão na qual profetizou a conversão da Inglaterra.
Apesar das objeções de alguns estudiosos à linguagem cifrada contida na peça musical, nada há de conclusivo que nos obrigue a descartá-la de todo. Assim, podemos mantê-la, ao menos como bastante provável.
A composição contendo a assinatura de Wade, com a letra em latim, foi publicada pela primeira vez em 1760. A mesma letra, junto com a famosa melodia, foi impressa em 1782. A partir daí, na Capela da Embaixada portuguesa — um dos poucos locais no país onde o culto católico era autorizado — o Adeste Fidelis passou a ser entoado nas noites do Natal londrino. De onde a música ser chamada inicialmente de “Hino Português”. Aliás, Wade, já no exílio, mantinha correspondência com músicos daquela embaixada.
Em 1841, o sacerdote católico inglês Frederick Oakeley traduziu o hino para seu idioma como O Come All Ye Faithful (Ó vinde todos os fieis). Esta versão se propagou pelos países de língua inglesa, onde, curiosamente, os protestantes anglicanos, aqueles que provavelmente mais apreciam a música, não têm muita noção de sua origem e de suas referências à restauração dos reis católicos jacobitas.
Há também versões do Adeste Fidelis em diversos outros idiomas. No Brasil, o frade franciscano Emílio Sheid compôs uma adaptação em português conhecida como Cristãos, vinde todos .
O Adeste Fidelis, além de ser apreciado como um simples hino popular, também é executado por grandes orquestras e corais em todo o mundo. Ele ressoa como o próprio Natal: é a salvação que chega, é o Filho da Virgem que nasce, trazendo a esperança da restauração católica para a Inglaterra e para todas as nações.
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Notas:
Cfr.https://pontosj.pt/especial/o-adeste-fideles-nao-tem-passaporte-portugues/
Cfr.https://christmasclassics.com/christmasmusic/tag/the-portuguese-hymn
Cfr. http://news.bbc.co.uk/2/hi/uk_news/england/wear/7789477.stm
Uma boa execução da versão brasileira pode ser vista em: https://youtu.be/RI64P-pz9E4
Apresentação do coral de meninos no Vaticano: https://youtu.be/va_G2ith27g
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 900, Dezembro/2025.




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