14 de novembro de 2014

A remoção de um grande Cardeal

Cardeal Mindszenty preso pelos comunistas húngaros


Roberto de Mattei
Corrispondenza Romana, nº 1365, 12 novembre 2014 
[Tradução de Hélio Dias Viana]

O Papa, enquanto supremo Pastor da Igreja universal, tem o pleno direito de remover de seu cargo um bispo ou um cardeal, mesmo insigne. Ficou célebre o caso do cardeal Louis Billot (1846-1931), um dos maiores teólogos do século XX, que em 13 de setembro de 1927 entregou o barrete cardinalício nas mãos de Pio XI, com o qual havia entrado em colisão sobre o caso da Action Française, e que terminou sua vida como simples jesuíta, na casa de sua Ordem em Galloro. 


Um outro caso famoso é o do Cardeal Jósef Mindszenty,[foto] removido por Paulo VI do cargo de Arcebispo de Esztergom e Primaz da Hungria pela sua oposição à Ostpolitik vaticana. Muitos outros bispos foram destituídos nos últimos anos por envolvimento em escândalos financeiros ou morais. Mas se ninguém pode negar ao Sumo Pontífice o direito de demitir qualquer prelado pelas razões que ele julgar mais oportunas, ninguém pode também tolher aos fiéis o direito que lhes assiste como seres racionais, antes ainda do que como batizados, de se interrogarem sobre as razões dessas destituições, sobretudo se as mesmas não forem declaradas explicitamente.

Isso explica a consternação de muitos católicos com a notícia,
formalmente comunicada pela Sala de Imprensa do Vaticano em 8 de novembro, da transferência do Cardeal Raymond Leo Burke [foto] de seu cargo de Prefeito da Signatura Apostólica para o de Patrono da Ordem de Malta. Com efeito, quando a transferência, como neste caso, concerne um cardeal ainda relativamente jovem (66 anos) e oriundo de um posto da máxima importância para outro puramente honorífico, sem sequer respeitar o questionável princípio promoveatur ut amoveatur [promover para remover], trata-se evidentemente de um castigo público. E, neste caso, é lícito perguntar-se quais são as acusações contra o prelado em questão. 

O Cardeal Burke desempenhou de fato muito bem seu cargo de Prefeito da Suprema Signatura Apostólica e é estimado por todos como um proeminente canonista e homem de profunda vida interior, tendo sido recentemente definido por Bento XVI como um “grande cardeal”. Do quê ele é culpado?

Os observadores do Vaticano das mais diversas tendências responderam com clareza a essa pergunta. O Cardeal Burke teria sido acusado de ser “muito conservador” e de estar em desacordo com o Papa Francisco. Após a malfadada exposição introdutória do Cardeal Kasper no Consistório de 20 de fevereiro de 2014, o cardeal americano promoveu a publicação de um livro em que cinco influentes purpurados e outros estudiosos expressaram suas respeitosas reservas em relação à nova linha vaticana, aberta à hipótese da concessão da comunhão aos divorciados recasados e do reconhecimento das uniões de fato. 

As apreensões dos cardeais se viram confirmadas pelo Sínodo de outubro, quando as teses mais arriscadas em termos de ortodoxia foram de fato recolhidas na relatio post disceptationem que antecedeu o relatório final. A única razão plausível é que o Papa tenha oferecido em uma bandeja a cabeça do Cardeal Burke ao Cardeal Kasper, e através deste ao Cardeal Karl Lehmann, ex-presidente da Conferência Episcopal Alemã. Com efeito, é sabido por todos, pelo menos na Alemanha, que quem ainda está puxando as cordas da dissidência alemã contra Roma é o próprio Lehmann, antigo discípulo de Karl Rahner. O padre Ralph Wiltgen, em seu livro O Reno se lança no Tibre, trouxe à luz o papel de Rahner no Concílio Vaticano II, a partir do momento em que as conferências episcopais passaram a desempenhar um papel determinante. 

As Conferências Episcopais eram de fato dominadas por seus peritos em teologia e, uma vez que a mais poderosa delas era a alemã, foi decisivo o papel de seu principal teólogo, o jesuíta Karl Rahner. O padre Wiltgen o resume de forma contundente, ao descrever a força do lobby progressista coligado naquilo que ele chama de Aliança Europeia: “A posição dos bispos de língua alemã sendo regularmente adotada pela aliança europeia, e a posição da aliança sendo, o mais das vezes, adotada pelo Concílio, bastava que um teólogo fizesse sua opinião ser adotada pelos bispos de língua alemã para que o Concílio as fizesse suas. Ora, tal teólogo existia: era o Padre Karl Rahner S.J.”. 

Cinquenta anos após o Concílio Vaticano II, a sombra de Rahner ainda perdura na Igreja Católica, exprimindo-se, por exemplo, nas posições pró-homossexuais de alguns dos discípulos mais jovens dos cardeais Lehmann e Kasper, como o cardeal-arcebispo de Munique, Dom Reinhard Marx, e o arcebispo de Chieti, Dom Bruno Forte. 

O Papa Francisco se pronunciou contra duas tendências, a do progressismo e a do tradicionalismo, embora sem esclarecer qual é o conteúdo desses dois rótulos. Mas se, de palavra, ele se distancia desses dois pólos que se enfrentam hoje na Igreja, na verdade toda a sua compreensão é reservada ao “progressismo”, enquanto o machado se abate sobre o que ele chama de “tradicionalismo”. A destituição do Cardeal Burke tem um significado exemplar análogo à destruição em curso dos Franciscanos da Imaculada. 

Muitos observadores têm atribuído ao Cardeal Braz de Aviz o projeto de dissolução do Instituto, mas agora ficou evidente para todos que o Papa Francisco compartilha inteiramente a decisão. Não se trata da questão da Missa tradicional, que nem o Cardeal Burke nem os Franciscanos da Imaculada celebram regularmente, mas de sua atitude de inconformidade com a política eclesiástica hoje dominante. 

Por outro lado, o Papa entreteve-se longamente com os representantes dos chamados “Movimentos sociais”, de orientação ultramarxista, que se reuniram em Roma de 27 a 29 de outubro,(*) e em julho passado nomeou consultor do Conselho Pontifício para a Cultura um sacerdote abertamente heterodoxo, o padre Pablo d’Ors. Cabe perguntar-se quais serão as consequências desta política, tendo presente dois conceitos: o princípio filosófico da heterogênese dos fins, segundo o qual determinadas ações produzem efeitos contrários às intenções, e o princípio teológico da ação da Providência na História, pelo qual, conforme as palavras de São Paulo, “omnia cooperantur in bonum” (Rom. 8:28). Nos desígnios de Deus, tudo coopera para o bem. 

O caso do Cardeal Burke e caso o dos Franciscanos da Imaculada, como, em um nível diferente, o caso da Fraternidade São Pio X, são apenas os sintomas de um mal-estar difuso que fazem realmente a Igreja parecer como um barco à deriva. Mas, ainda que esses indicadores desaparecessem, ou seja, que a Fraternidade São Pio X não existisse, que os Franciscanos da Imaculada fossem dissolvidos ou “reeducados” e o Cardeal Burke reduzido ao silêncio, a crise da Igreja não deixaria por isso de ser ainda mais grave. O Senhor prometeu que a Barca de Pedro jamais afundará, não graças à habilidade do timoneiro, mas pela Divina assistência à Igreja, que vive, pode-se dizer, entre as tempestades, sem jamais deixar-se submergir pelas ondas (Mt 8: 23-27 ; Mc 4, 35-41; Lc 8: 22-25). 

Os fiéis católicos não estão desencorajados: cerram fileiras, voltam seus olhos para o Magistério contínuo e imutável da Igreja, que coincide com a Tradição, buscam força nos Sacramentos, continuam a rezar e a agir, na convicção de que, na História da Igreja como na vida dos homens, o Senhor intervém apenas quando tudo parece perdido. O que se pede de nós não é uma inação resignada, mas uma luta confiante na certeza da vitória. 


Cardeal Mindszenty com Paulo VI,
que obteve o que o regime comunista
da Hungria não tinha conseguido.
Face ao Cardeal Burke, e já prevendo as novas provações que certamente virão para ele, gostaríamos de repetir aqui as palavras com as quais, em 10 de fevereiro de 1974, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira se referiu ao martírio espiritual infligido por Paulo VI ao Cardeal Mindszenty, quando “as mãos mais sagradas da terra abalaram a coluna e a atiraram, partida, ao chão”. E concluiu: “Se o Arcebispo caiu ao perder a sua diocese, cresceu até as estrelas a figura moral do Bom Pastor que dá a vida pelas suas ovelhas”.


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(*) Nota do editor deste Blog: A respeito do 

Encontro Mundial de Movimentos Populares no Vaticano

recomendo com empenho a leitura da esplêndida reportagem de autoria de Nelson Ramos Barretto, publicada no site da "Agência Boa Imprensa" (ABIM). com o título:

Tentativa de ressuscitar grupos revolucionários?

2 comentários:

NEREU AUGUSTO TADEU DE GANTER PEPLOW disse...

Esse tipo de situação inevitavelmente me lembra o que li na Epístola de São Malaquias, assim como das promessas: "As portas do inferno não prevalecerão contra ela" e "por fim, meu Imaculado Coração triunfará."

Anônimo disse...

Até quando, Senhor?