30 de novembro de 2025

Introdução histórica ao esquema preparatório sobre a Bem-aventurada Virgem Maria

 


Corredentora e Medianeira Universal de todas as graças. Dois títulos de glória da Virgem Maria. Dois dogmas que os fiéis aguardam!

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 900, Dezembro/2025

O século XIX e o início do século XX assistiram a um extraordinário florescimento da devoção mariana e dos estudos teológicos sobre Nossa Senhora. Tal impulso foi estimulado pela proclamação do dogma da Imaculada Conceição (1854), pelas aparições de Lourdes (1858) e de Fátima (1917), e pela redescoberta do Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem de São Luís Maria Grignion de Montfort.

Esses acontecimentos reacenderam na Igreja o desejo ardente de que fosse proclamado um novo dogma, reconhecendo o papel eminente da Mãe de Deus na obra da Redenção.

Cardeal Désiré-Joseph Mercier,
arcebispo de Malines-Bruxelas
Já em 1913, o Cardeal Désiré-Joseph Mercier, arcebispo de Malines-Bruxelas, juntamente com todo o episcopado belga, dirigiu a São Pio X um pedido de definição dogmática sobre a Mediação Universal da Santíssima Virgem Maria na distribuição das graças.

A eclosão da Primeira Guerra Mundial e o falecimento do Pontífice interromperam, porém, essa iniciativa. Renovado o pedido sob o pontificado de Pio XI, este concedeu em 1922 à Igreja da Bélgica o privilégio de celebrar a Missa e o Ofício em honra de Maria Medianeira.

Mais tarde, Pio XII — que via na crescente devoção à Mãe de Deus “o mais encorajador sinal dos tempos” — proclamou o dogma da Assunção de Nossa Senhora (1950), o que suscitou novos e numerosos pedidos à Santa Sé para a definição dos dogmas da Corredenção e da Mediação Universal. Entretanto, a morte do Papa interrompeu o curso dessas esperanças.

Quando João XXIII convocou o Concílio Vaticano II, o então Secretário de Estado, Cardeal Domenico Tardini, enviou a todos os bispos, superiores religiosos e universidades católicas um questionário, pedindo-lhes que manifestassem seus vota (desejos) sobre os temas a tratar na futura assembleia. A maioria dos prelados expressou o anseio por uma reforma moderada da Igreja, fiel à tradição, pela condenação dos erros modernos — sobretudo o comunismo — e, de modo particular, por novas definições doutrinais relativas à Santíssima Virgem Maria.

Os bispos italianos, majoritários no episcopado mundial, solicitaram que o Concílio proclamasse o dogma da “Mediação Universal da Bem-aventurada Virgem Maria”, pedido que encontrou eco também em parte significativa do episcopado francês. No Brasil, segundo o Pe. José Oscar Beozzo, o pedido mais frequente nos vota dos bispos era justamente o de que o Concílio definisse a doutrina ou o dogma da Mediação Universal de Nossa Senhora.

Atendendo a essa expectativa, a Comissão Preparatória criou um grupo de trabalho encarregado de redigir um esquema conciliar sobre a Beatíssima Virgem Maria. O texto foi elaborado principalmente por dois eminentes mariólogos: o Pe. Carlo Balić, presidente da Pontifícia Academia Mariana Internacional, e o Pe. Gabriele Maria Roschini, fundador e reitor da Pontifícia Faculdade Teológica Marianum. O esquema, intitulado Schema Constitutionis Dogmaticae de Beata Maria Virgine Matre Ecclesiae, empregava explicitamente o termo “Corredentora”. Uma subcomissão, contudo, suprimiu a expressão na versão final, ainda que reconhecendo ser “em si mesma veríssima”, por temor de interpretações desfavoráveis por parte dos “irmãos separados”.

A possibilidade de aprovação do texto encontrou forte resistência nos meios teológicos progressistas. O dominicano Yves Congar registrou em seu diário que “o drama que acompanhou toda [sua] vida” era “a necessidade de lutar contra uma mariologia que não procede da Revelação, mas que tem o apoio de textos pontifícios”. O jovem Pe. René Laurentin, por sua vez, afirmava ser necessário “purificar” a exaltação mariana então predominante. Essa corrente “minimalista”, como a denominou o Pe. Roschini, tendia a reduzir o papel de Maria, identificando-a com a própria Igreja e considerando-a apenas prima inter pares, “a primeira entre iguais”, dentro do Corpo Místico de Cristo.

Nossa Senhora da Misericórdia
Bonanat Zaortiga, o Velho (1430)
 Museu Nacional de Arte
 da Catalunha, Espanha.
O Schema de Beata Maria Virgine Mater Ecclesiae foi enviado aos Padres conciliares em maio de 1963, entre a primeira e a segunda sessões conciliares. Em uma reunião de episcopados da Alemanha, Áustria, Bélgica, Holanda e Suíça, o jesuíta Karl Rahner criticou o documento, alegando que suas afirmações “não eram suficientemente desenvolvidas” e poderiam causar “um mal incalculável do ponto de vista ecumênico”. O “bispo” luterano Dibelius havia declarado pouco antes que a doutrina católica sobre Maria constituía um dos maiores obstáculos ao ecumenismo. Rahner, portanto, propôs que o esquema marial fosse reduzido e incorporado como um simples capítulo final da constituição dogmática sobre a Igreja.

Nos debates conciliares, o Cardeal Josef Frings, de Colônia, sustentou essa proposta. Ele foi apoiado pelo Cardeal Raúl Silva Henríquez, de Santiago do Chile, em nome de 44 bispos latino-americanos, alegando que a devoção mariana popular na região excedia os limites da fé cristã. Em sentido contrário, o Cardeal Benjamín de Arriba y Castro, arcebispo de Tarragona, falando por 60 bispos espanhóis, defendeu a manutenção de um esquema separado, dada a importância de Maria Santíssima na economia da Redenção.

Diante do grande número de Padres conciliares inscritos para se pronunciar, o Papa João XXIII ordenou que a Comissão Teológica escolhesse um único porta-voz de cada corrente de opinião, a fim de apresentar sinteticamente, diante da aula conciliar, os fundamentos de cada posição. O Cardeal Rufino Santos, de Manila, resumiu magistralmente o argumento favorável ao esquema separado, afirmando que a Virgem é o primeiro e principal membro da Igreja, mas, ao mesmo tempo, está acima dela, intra Christum et Ecclesiam, como ensinou São Bernardo. A fusão dos esquemas, advertiu, seria interpretada pelos fiéis como uma diminuição da devoção mariana. O Cardeal Franz König, de Viena, respondeu que a devoção a Maria necessitava de “purificação”, para evitar exageros e obstáculos ao ecumenismo.

Cinco dias depois, a assembleia votou: 1.114 bispos a favor da fusão, 1.074 contrários — uma diferença mínima, mas suficiente para que o texto marial fosse incorporado ao De Ecclesia.

Uma comissão revisora reformulou o escrito. Seu presidente, o belga Mons. Gérard Philips, propôs a Paulo VI manter o título “Medianeira” no texto, porém sem maior desenvolvimento doutrinal, como gesto conciliador para com os que haviam votado contra a fusão. Apesar dessa concessão, houve protestos: o bispo de Granada, em nome de 80 prelados espanhóis, lamentou que a comissão tivesse reescrito inteiramente o documento, em vez de apenas adaptá-lo. Os bispos poloneses, por outro lado, pediram que o capítulo sobre Nossa Senhora fosse colocado não ao final, mas em segundo lugar, para sublinhar sua posição singular junto a Cristo.

Apesar das resistências, prevaleceu a versão “minimalista”. Foram suprimidas as expressões “Corredentora” e “Medianeira de todas as graças”, restando apenasa frase: “a Beatíssima Virgem Maria é invocada na Igreja sob os títulos de Advogada, Auxiliadora e Medianeira”. Paulo VI, no entanto, corrigiu parcialmente essa omissão ao proclamar solenemente, no encerramento da terceira sessão conciliar, Maria Santíssima como Mãe da Igreja — gesto que provocou protestos irados dos Padres e expertos conciliares progressistas, que o acusaram de “voltar-se contra o Concílio”.

Cardeal Rufino Santos
O antigo Schema de Beata Maria Virgine Mater Ecclesiae foi arquivado, e o texto reduzido inserido no último capítulo da Lumen Gentium. Como previra o Cardeal Rufino Santos, essa solução teve o efeito de diminuir a centralidade da devoção mariana na vida da Igreja e de esfriar a piedade da maioria dos fiéis. Contudo, o amor dos verdadeiros devotos da Santíssima Virgem não se extinguiu. Nas décadas seguintes, cresceu o movimento em favor da proclamação de um quinto dogma mariano — o da Corredenção e Mediação Universal. A associação Vox Populi Mariae Mediatrici recolheu, nos últimos 30 anos, o apoio de cerca de 700 bispos e cardeais, além de oito milhões de fiéis, que pedem incansavelmente à Santa Sé a definição solene desse papel único de Nossa Senhora na economia da salvação.

A publicação da recente Nota doutrinal sobre alguns títulos marianos referidos à cooperação de Maria na obra da Salvação — que, em oposição explícita ao Magistério ordinário universal dos Papas e doutores da Igreja, julga “sempre inoportuno” o título de Corredentora e arriscado o de Medianeira de todas as graças — não será suficiente para esfriar o ardor nem abalar a firme resolução dos fiéis de continuar a manifestar aos Pastores da Igreja os próprios anseios (CIC, cân. 212 §2) e de exprimir, com filial liberdade, a própria opinião sobre tudo o que diz respeito ao bem da Igreja (§3).

É nesse mesmo espírito de fidelidade à Tradição e de amor à Santíssima Virgem que Catolicismo apresenta a seguir [publicaremos amanhã] aos seus leitores a íntegra do esquema preparatório que foi rejeitado pela maioria do Padres conciliares, testemunho luminoso da mais elevada e autêntica expressão da Mariologia imediatamente anterior ao Concílio Vaticano II.

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