26 de novembro de 2025

QUIS UT VIRGO?

 

A Virgem do Apocalipse – Miguel Cabrera (1695-1768). Museu Nacional de Arte, Cidade de México. 

  ✅  Roberto de Mattei
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 900, Dezembro/2025


Em 16 de outubro de 1793 ocorreu aquele que foi o mais repugnante crime da Revolução Francesa: a execução da rainha Maria Antonieta da França, após um processo-farsa perante o Tribunal Revolucionário. Plinio Corrêa de Oliveira escreveu sobre Maria Antonieta: 
“Há certas almas que só se tornam grandes quando as rajadas da desgraça as atingem. Maria Antonieta, que foi fútil como princesa e imperdoavelmente frívola em sua vida como rainha, foi transformada de maneira surpreendente pelo turbilhão de sangue e miséria que assolou a França”; e o historiador observa, tomado de respeito, “que da rainha nasceu uma mártir e da boneca, uma heroína”. 
Maria Antonieta aos 15 anos
 Joseph Ducreux (1735–1802)
Palácio de Versalhes.
Em 21 de janeiro foi guilhotinado o Rei da França, Luís XVI. O Papa Pio VI, em seu discurso Quare lacrymae, de 17 de junho de 1793, reconheceu o sacrifício do soberano como “uma morte devido ao ódio à religião católica”, atribuindo-lhe “a glória do martírio”. A mesma glória, poderíamos dizer, coube a Maria Antonieta, culpada apenas de ter representado — por sua própria presença — o princípio da realeza cristã diante do ódio da Revolução. 

O escritor britânico Edmund Burke (1729-1797), em uma das mais belas passagens de suas Reflexões sobre a Revolução Francesa (1791), escreve: 
“Já se passaram dezesseis ou dezessete anos desde que vi pela primeira vez a Rainha da França, então Delfina, em Versalhes, e certamente nunca uma visão mais encantadora visitou esta terra, que ela parecia apenas tocar. Eu a vi quando ela surgiu no horizonte, adornando e alegrando aquela esfera sublime na qual acabara de começar a se mover, brilhante como a estrela da manhã, cheia de vida, esplendor e alegria. Oh! Que revolução! E que coração eu deveria ter para contemplar aquela ascensão e aquela queda sem emoção! [...] Eu nunca sonhei em viver para ver tal desastre lhe acontecer em uma nação de homens tão galantes, em uma nação de homens de honra e cavalheirismo. Em minha imaginação, vi dez mil espadas desembainhadas repentinamente para vingar até mesmo um olhar que ameaçasse insultá-la. Mas a era da cavalaria acabou. Chegou a era dos sofistas, economistas e contabilistas; e a glória da Europa extinguiu-se para sempre” (Reflexões sobre a Revolução na França, trad. It. Ideazione, Roma 1998, pp. 98-99). 
Maria Antonieta
conduzida ao suplício
François Flameng (1856–1923).
Museu da Revolução Francesa,
Paris.
Hoje, dois séculos depois, as palavras do escritor britânico vêm à mente diante de um evento de gravidade muito maior. Em 4 de novembro de 2025, na casa generalícia dos jesuítas, foi apresentada a Mater Populi Fidelis, uma “nota doutrinal” do Dicastério para a Doutrina da Fé, chefiado pelo Cardeal Víctor Manuel Fernández. 

O documento compreende 80 parágrafos, dedicados à “compreensão correta dos títulos marianos”, que pretendem esclarecer “em que sentido certas expressões referentes à Virgem Maria são aceitáveis ou não”, colocando-a “na devida relação com Cristo, o único Mediador e Redentor”. 

É com profunda tristeza que lemos este texto que, por trás de seu tom melodioso, esconde um conteúdo venenoso. Em uma hora histórica de confusão, quando todas as esperanças das almas fervorosas se voltam para a Santíssima Virgem Maria, o Dicastério para a Fé procura despojá-la dos títulos de Corredentora e Medianeira universal de todas as graças, reduzindo-a a uma mulher como qualquer outra: “mãe do povo fiel”, “mãe dos crentes”, “mãe de Jesus”, “companheira da Igreja”, como se a Mãe de Deus pudesse ser confinada a uma categoria humana, despojando-a de seu mistério sobrenatural. É difícil não ler nestas páginas a concretização da deriva mariológica pós-conciliar que, em nome do “meio-termo”, escolheu um minimalismo que degrada a figura da Santíssima Virgem Maria. 

Execução de Maria Antonieta,
 16 de outubro de 1793
Gravura, Biblioteca Nacional
da França
Maria Antonieta representava a realeza terrena, um reflexo da realeza divina, mas frágil como tudo o que é humano: seu trono desmoronou sob a fúria da Revolução. Maria Santíssima, porém, é a Rainha universal — não por direito humano, mas pela graça divina. Seu trono não está em um palácio, mas no coração de Deus.

“O Altíssimo — diz São Luís Maria Grignion de Montfort — desceu perfeita e divinamente através da humilde Maria até nós, sem perder nada de sua divindade e santidade. E é por meio de Maria que os pequeninos devem ascender perfeita e divinamente ao Altíssimo, sem temer nada” (Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, n. 157). 

Os homens podem tentar “decapitá-la”, reduzindo-a a uma mera mulher, mas Maria permanece Mãe de Deus, Imaculada, Sempre Virgem, Assunta ao Céu, Rainha do Céu e da Terra, Corredentora e Medianeira Universal de todas as graças, porque, como explica São Bernardino de Siena: “Toda graça concedida aos homens procede de uma causa tríplice: de Deus passa para Cristo, de Cristo passa para a Virgem, da Virgem nos é dada” (Serm. VI in festis B.M.V., a. 1, c. 2). 

São Miguel Arcanjo na Visão do Apocalipse – Miguel Cabrera (1695-1768). Museu da Basílica de Guadalupe, Cidade de México.



Por esta razão, segundo Santo Agostinho, citado por Santo Afonso de Ligório, tudo o que dizemos em louvor de Maria é sempre pouco comparado ao que Ela merece por sua exaltada dignidade como Mãe de Deus (As Glórias de Maria, vol. I, Redentoristi, Roma 1936, p. 162). 

Edmund Burke lamentou que não houvesse dez mil espadas prontas para defender a Rainha Maria Antonieta “contra um único olhar que a ameaçasse com insulto”. Estamos convencidos de que hoje existe no mundo um punhado de sacerdotes e leigos, nobres e corajosos de espírito, prontos para empunhar a espada de dois gumes da Verdade para proclamar todos os privilégios de Maria e clamar, aos pés de seu trono: “Quis ut Virgo?” (Quem como a Virgem?). 

Sobre eles recairão as graças necessárias para a luta nestes tempos tempestuosos. E talvez, como sempre acontece na História quando se tenta obscurecer a luz, o documento do Dicastério da Fé que busca minimizar a Bem-Aventurada Virgem Maria confirme inadvertidamente sua imensa grandeza.

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