Luiz Sérgio Solimeo
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 755, Novembro/2013
No dia 19 de setembro, “Civiltà Cattolica”, a principal revista
da Companhia de Jesus, simultaneamente com outras publicações da mesma Ordem, publicou uma entrevista concedida
pelo Papa Francisco, a qual foi comentada favoravelmente pela mídia
internacional.
O impacto da entrevista sobre
a opinião pública foi enorme e deu origem a muito debate. Inúmeros setores
católicos conservadores ficaram perplexos, enquanto os secularistas — incluindo
os movimentos abortista e pró-homossexual — lhe deram um surpreendente apoio.
Causaram particularmente
escândalo as afirmações do Papa de que “não
podemos insistir somente sobre questões ligadas ao aborto, ao casamento
homossexual e ao uso dos métodos contraceptivos. Isto não é possível”. E
que “uma pastoral missionária não está
obcecada pela transmissão desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a se
impor insistentemente”.(1)
Posteriormente,
no dia 1º de outubro, o mesmo Soberano Pontífice
concedeu uma entrevista ao jornalista e político ateu Eugenio
Scalfari, fundador do jornal secularista radical “La Repubblica”.(2) [foto no topo]
O
destaque desta última entrevista foi para as afirmações do Papa de que “não
existe um Deus católico”; de que o proselitismo “é um solene disparate”
(solenne sciocchezza); de que ao encontrar um clerical, ele (o Papa) se “torna
imediatamente anticlerical”; de que cada um pode seguir a
sua concepção do bem e do mal; de que os chefes da Igreja foram com frequência narcisistas,
etc.
Não foi
empenhada a infalibilidade
É bem evidente que em tais
entrevistas o Papa não fez uso de sua prerrogativa de infalibilidade, isto é,
não falou empenhando sua suprema autoridade apostólica, nem definiu doutrinas
em matéria de fé e moral que devem ser aceitas por toda a Igreja.(3)
“Lifesitenews.com” publicou
estudo de um teólogo romano especializado em eclesiologia, que após explicar
que as entrevistas do Papa não envolvem infalibilidade, afirmou:
“Nós podemos olhar para as palavras e ações do Papa e, com espírito de
humildade e caridade, chegar à conclusão de que elas não são de nenhuma ajuda particular,
ou que são positivamente contraproducentes e mesmo perigosas. Nesse caso,
podemos ter a obrigação de nos pronunciar ou mesmo de resistir ao Papa. Eu digo
podemos: uma pessoa não tem sempre a obrigação de agir, especialmente quando
percebe que a ação não resultará em um bem, ou que ela poderia, inclusive
causar um mal maior”.(4)
O movimento
abortista agradece ao Papa
O porta-estandarte do
movimento abortista nos Estados Unidos, a National Abortion and Reproductive Rights
Action League — NARAL-Pro-Choice
America, colocou uma nota de agradecimento ao Papa em sua página do “Facebook”
com os dizeres:
“Caro Papa Francisco: Obrigado. Assinado, mulheres pró-escolha de todas
as partes. NARAL Pro-choice America”.(5)
Por seu lado, Carmen Barroso,
diretora regional da International Planned Parenthood Federation — Western
Hemisphere Region, que promove o aborto em todo o mundo, escreveu esta carta ao Editor de
“The New York Times”, publicada em 21 de setembro:
“Nós saudamos o desejo do Papa
Francisco de encontrar ‘um novo equilíbrio’ dentro da Igreja Católica e
assegurar que ela seja verdadeiramente um ‘lar para todos’.
“O reconhecimento de que a
Igreja está fora do ritmo dos tempos modernos não poderia chegar em momento
melhor: quando os líderes mundiais estão reunidos nas Nações Unidas para
discutir os parâmetros da agenda do novo desenvolvimento global e da saúde, em
que os direitos das mulheres e dos jovens devem ser priorizados. Isso significa
assegurar acesso a uma ampla educação sexual, contracepção e facilidades para o aborto seguro — necessidades às quais o
Vaticano tem se oposto com veemência.
“Nós esperamos que este seja
um passo adiante na linha de tornar as violações dos direitos reprodutivos e
sexuais uma coisa do passado.”(6)
Em uma entrevista à Rede de
televisão MSNBC, a freira
Jeannine Gramick [foto], co-fundadora do New Ways
Ministry, uma
organização oposta à doutrina católica em relação à prática
homossexual, contou que chorou de alegria ao ler a entrevista do Papa.(7)
Da mesma maneira, Marianne T.
Duddy-Burke (“casada” com uma ex-freira), (8) diretora executiva do movimento homossexual "católico" DignityUSA, declarou: “LGBTs católicos
e seus aliados se regozijarão com a conclamação do Papa para que os líderes da
Igreja focalizem mais em ser pastores do que aplicadores de leis. Esperamos que
os bispos atendam a essa diretriz e cessem imediatamente suas campanhas anti-LGBT,
[como também] as demissões de empregados
da Igreja pelo que eles são [isto é, por serem homossexuais], os ataques às pessoas que questionam os
ensinamentos oficiais [da Igreja], e
a retórica exclusiva e crítica que muito frequentemente se ouve dos púlpitos”.
E continua: “O Papa não teve ambiguidades:
abandonem as intimidações dos púlpitos e acompanhem seu povo.”(9)
Confusão entre os católicos
Por sua vez, o Arcebispo de
Filadélfia, D. Charles Chaput [foto], na sua coluna de 25 de setembro no jornal
diocesano, diz que entre as mensagens que recebeu sobre a entrevista do Papa:
“As mais comuns eram os emails
de catequistas, de pais e de católicos comuns que se sentiam confusos pelas
manchetes da mídia sugerindo que a Igreja, de algum modo, tinha mudado seu
ensinamento numa variedade de questões morais.”
E exemplifica:
“Ouvi de uma mãe de quatro filhos — um adotado, outro deficiente desde o
nascimento — e que passou anos aconselhando jovens grávidas [a não abortarem] e
abrindo clínicas pró-vida. Ela queria saber por que o Papa parece rejeitar os
seus sacrifícios. Um padre disse que o Papa ‘implicitamente acusou de serem
obtusos seus irmãos no sacerdócio que tomam com seriedade os problemas morais’
e que ‘[se você é um padre], ser moralmente sério é mais provável que venha a ser
agora classificado publicamente como um problema.’ Um outro padre escreveu que ‘o
problema é que [o Santo Padre] torna feliz as pessoas erradas, pessoas que
nunca irão acreditar no Evangelho e continuarão a perseguir a Igreja’”. (10)
“Questões sobre as quais devemos ser incisivos”
Em uma declaração ao jornal “The Press Democrat”,
de Santa Rosa (Califórnia), o bispo dessa cidade, Dom Robert Vasa [foto], disse que não tem visto obsessão a respeito do aborto, contracepção e homossexualidade. E comentou:
“Conheço pessoas — entre as
quais certamente me incluo — que acreditam firmemente que essas são questões
culturais fundamentais sobre as quais se deve ser incisivo”. E acrescentou: “Mas eu não estou obcecado com elas. A grande maioria das coisas que escrevo
não inclui os temas da contracepção ou do divórcio e novo casamento”.
Ele se pergunta: “Há uma necessidade de se pregar sobre essas
questões?” E responde com firmeza: “Não
há dúvida”.(11)
A moral católica, conjunto de doutrinas
desconjuntadas?
Em carta publicada num boletim
católico na Internet, Germain Grisez, professor emérito de Teologia Moral no
Seminário Mount Saint Mary, de Maryland, e autor de inúmeros livros sobre a matéria, fez o seguinte comentário:
“Qual a razão de dizer que o
ministério pastoral da Igreja não pode estar obcecado com a ‘transmissão
desarticulada de uma multiplicidade de doutrinas a se impor insistentemente’? Fazer
essa afirmação sugere, infelizmente, uma caricatura dos ensinamentos dos
recentes pontificados. […] A frase é impactante. Ela repercute no nosso íntimo.
Mas se ela foi sugerida por um espírito, não foi o Espírito Santo, porque ela
confunde e engana”.(12)
“Obsessão” ou “dedicação”?
A Dra. Janet E. Smith,
professora de Teologia Moral no Seminário Maior do Sagrado Coração, em Detroit, no Michigan,
disse que se sentiu “perturbada” com
o comentário do Papa de que há uma “obsessão”
em relação ao aborto, à homossexualidade e à contracepção, porque ela passou a
maior parte de sua vida tratando dessas questões. Mas, diz que, em vez de “obsessão”, ela crê que foi a “dedicação” e o “empenho” que a levaram a tratar dessas matérias. E explica: “Ajudar as pessoas a entender por que o
aborto, a contracepção e os atos homossexuais não estão de acordo com os planos
de Deus para a felicidade humana é um meio muito efetivo de tornar as pessoas
mais próximas de Jesus e da Igreja e é por isso que passei a maior parte de
minha vida adulta evangelizando dessa maneira.”
Pensam do mesmo modo as
legiões de lutadores pela vida, os educadores dos métodos naturais de
planejamento familiar e de abstinência sexual, e aqueles que se dedicam em
organizações como Coragem, que ajudam
pessoas com tendências homossexuais a viverem castamente e que se sacrificam
por amor a Deus e à Igreja. A Dra. Janet diz que pode haver um ou outro
exagero, mas que ela nunca se deparou com um deles na vida real.(13)
“Movimentos pró-vida atirados
aos lobos”
Por sua vez, a Dra. Mônica
Migliorino Miller [foto], professora
de Teologia na Madonna University, de Michigan, e
diretora do Citizen’s for a Pro-life
Society (Cidadãos por uma Sociedade Pró-Vida), expressou muito bem a
frustração do movimento pró-vida com as declarações do Papa:
“Eu não estou afirmando que o Papa quis deliberadamente desaprovar, deslegitimar
ou desacreditar o trabalho dos movimentos pró-vida. Mas há suficiente
ambiguidade em sua declaração, feita ademais num certo tom — que, infelizmente,
essas são as consequências de sua entrevista. Estou certa de não ser o único líder
ativista pró-vida que tem a sensação de ter sido deixado em uma posição difícil
na tarefa, já de si difícil, de lutar pelo fim do aborto legalizado — certamente
não somente pela entrevista do Papa — mas, naturalmente, pelo modo como os militantes
pró-vida, deliberadamente ou não, foram atirados aos lobos. “Eu me pergunto
se o Papa Francisco está inteiramente consciente do tamanho da injustiça que significa
o aborto. Eu não estou certa de que ele leva suficientemente em conta o quanto
custa aos ativistas pró-vida salvar bebês do aborto. Faço aqui uma analogia
sobre as consequências concretas das afirmações do Papa — seria como se o Papa
Pio XII tivesse dito a Oskar Schindler: “pare de estar obcecado com o Holocausto
dos judeus”.
Mas, como a maioria do
movimento pró-vida, a Dra. Miller não desanimou:
“Mas — apesar de tudo — das
declarações ambíguas e perturbadoras do Papa e da zoeira da mídia, isto
representa apenas uma coisa a mais que Deus nos pede para sofrer por Ele.
Portanto, NÃO nos desencorajemos! Façamos nosso trabalho salvador. Isto é o que
Deus nos pede e devemos ser seus fiéis servos. Em frente, meus amigos.”(14)
“Cobertura” para
os políticos católicos
O Pe. Michael P. Orsi [foto], pesquisador
associado de Direito e
Religião na Ave Maria School of Law, assinala que a
afirmação do Papa Francisco em sua entrevista – de que ele é “um filho leal da Igreja” – “não é
suficiente para mitigar o estrago que suas palavras causaram no movimento
pró-vida e naqueles que estão procurando defender o casamento como sendo entre
um homem e uma mulher. Suas palavras efetivamente deram uma arma para aqueles
que querem reprimi-los”.
Do mesmo modo, diz ele, “as reflexões do Papa providenciaram uma
cobertura para os políticos católicos que apoiam as leis abortistas liberais e
a legalização do casamento homossexual. Eles podem agora argumentar que, a
exemplo do Papa, estão ocupados com questões mais graves, como a pobreza e a
preocupação com os pobres”.(15)
N.S. Jesus Cristo com tiara papal |
“Cristo o chefe da Igreja”
Deixamos de transcrever aqui
os comentários a respeito da entrevista do Papa ao jornal “La Repubblica” porque alongariam por demais este
artigo. Só chamamos a atenção para a dubiedade da afirmação do Papa Francisco
ao ateu Scalfari de que “não existe um
Deus católico, existe Deus”. Como ensina São Paulo, “Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador”
(Ef 5,23). Portanto, a união de Cristo, o Verbo Encarnado, com a sua Igreja é
tal, que não se pode separar, pura e simplesmente, Deus de Sua Igreja.
Fidelidade à
Igreja
Em tempos de extrema confusão
como o nosso, no qual domina a sede de novidades, devemos nos lembrar da
exortação do Apóstolo São Paulo: “permanecer firmes, mantendo as tradições
que nos foram ensinadas” (2Tes 2,14).
Peçamos a Nossa Senhora a graça de termos uma constante fidelidade à
Igreja, Una, Santa, Católica, Apostólica, Romana, a única verdadeira Igreja de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
_______________
Notas:
1. Íntegra da
entrevista do Papa Francisco à ‘Civiltà Cattolica’, in “Brotéria”,
Julho de 2013, Vol. 1.
2. Il Papa
a Scalfari: così cambierò la Chiesa — "Giovani senza lavoro, uno dei mali
del mondo", in “La Repubblica”, 01 ottobre 2013.
3. Cf. Denzinger, Enchiridion
Symbolorum, 1839. Ver Arnaldo Vidigal Xavier da Silveira, Qual a autoridade doutrinária dos documentos
pontifícios e conciliares?, in Catolicismo,
nº 202, outubro de 1967.
4.
A definition of infallibility in light of the Pope
Francis interviews, in
“Lifesitenews,com”; ver também Plinio Corrêa de Oliveira, A política de
distensão do Vaticano com os governos comunistas — Para a TFP: omitir-se? ou
resistir? In “Folha de S. Paulo”, 10 de abril de 1974, http://www.pliniocorreadeoliveira.info/MAN%20-%201974-04-08_Resistencia.htm#.Uk9IsFPimos
6.
“The New York Times”, September 21, 2013.
7.
Emma Margolin, Progressive Catholics hail Pope Francis’
position on social issues, in MSNBC — NewNation with Tamron Hall,
09/19/2013.
8.
Cf. 15 Years in the Lives of a Catholic Lesbian
Couple, in "The Huffington Post" — Gay Voices, 09/19/2013.
9.
Pope's
Comments Signal New Direction for Catholic Church — LGBT Catholics Welcome
Pastoral Tone and Substance, in DignityUSA, September
19, 2013.
10.
POPE FRANCIS AND ‘THE INTERVIEW’
— Weekly Column by Archbishop Charles J. Chaput, O.F.M. Cap., September 25,
2013.
11. Catholics
diverge on pope's message, By MARTIN
ESPINOZA, “The Press Democrat”, September 20, 2013.
12. Letter
#90: Editorial on Pope’s Interview,
September
29.
13.
Janet E.
Smith, Are We Obsessed? In “First
Things”, September 25, 2013.
14. Unpacking
the Pope’s PR Debacle — What Happened and What It Means for Pro-Lifers A
Critique of the Pope’s America Interview,
By Monica Migliorino Miller, in “Citizens for a Pro-Life Society”.
15. The pope’s
blurred red lines, By Michael P. Orsi, in
“The Washington Times”, September 26, 2013.
2 comentários:
Gostei muito deste artigo e o encaminhei a conhecidos. Era exatamente o que eu estava sentido, mas não conseguia dizer.
Um Papa não pode dar declarações como qualquer um de nós, simples mortais, pois a palavra dele tem uma ressonância universal e são analisadas pelos inimigos da Igreja para utilizá-las contra a própria Igreja. Por isso, o papa deve pensar várias vezes antes de dar uma declaração, não deve ficar fazendo gracejos, falando de alegre.
Foi por isso que no Ilinois foi aprovado o casamento homossexual. Obteve-se a maioria dos votos porque muitos parlamentares alegaram que se o próprio papa não condenou o homossexualismo, quem são eles para não aprová-lo. As frases soltas pelo papa e publicadas pela imprensa fora do contexto foram, infelizmente, decisivas para aprovação de uma lei tão oposta ao ensinamento do Evangelho.
De quem é então a culpa? Só Deus para julgar. Mas Santa Tereza de Jesus de Ávila, num de seus versos escreveu:
À morte ninguém escapa,
Nem pobre,
Nem rei,
Nem papa.
Poderíamos dizer que ao julgamento de Deus também ninguém escapa. Nem papa escapa.
Deus tenha misericórdia de sua Igreja, do Mundo e de Nós.
Certamente devido a estas reações que aconteceram contra as declarações do Papa ao jornal La República, a entrevista dele a este jornal foi retirada dos sites do Vaticano!!!
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