25 de dezembro de 2024

O MARAVILHOSO ESPLENDOR DAS CERIMÔNIAS NATALINAS DE OUTRORA

 

O precioso escrínio de cristal que abriga as tábuas da manjedoura na qual nasceu Jesus. Essa sagrada relíquia pode ser venerada na “Cripta da Natividade”, também conhecida como “Cripta de Belém”, sob o altar-mor da Basílica de Santa Maria Maior, em Roma.

A sublimidade dos costumes de Natal da Santa Igreja Católica Apostólica Romana que tanto atraíam os fiéis do mundo inteiro

 

Fonte: Revista Catolicismo, dezembro/2024

Visitando Roma num abençoado dia 25 de dezembro de 1841, Mons. Jean-Joseph Gaume1, escritor francês, católico contra-revolucionário, ficou extasiado com a magnificência das cerimônias natalinas que teve a graça de presenciar nas Basílicas de São Pedro e de Santa Maria Maior.

Na primeira basílica, o Monsenhor assistiu, por exemplo, a Missa Pontifical da Noite de Natal e o tradicional costume da bênção da espada e da armadura, símbolos da disposição do católico de lutar por Deus, pela Igreja e pela ordem na sociedade; na segunda, ele pôde contemplar o próprio Presépio no qual nasceu o Menino Jesus. Esse verdadeiro e eternamente venerável Presépio, do qual podemos dizer que foi o berço da civilização cristã, fica exposto nessa monumental basílica na chamada “Cripta de Belém”.

Os atos solenes que tanto empolgaram Mons. Gaume, infelizmente se desvaneceram em nosso século, muitos deles até mesmo se extinguiram. Tudo causado pelo sinistro processo de “autodemolição da Igreja”, acelerado sobretudo a partir do Concílio Vaticano II. Com isso, a pompa praticamente desapareceu dos ambientes da Santa Igreja, bem como do mundo.

Em nome de uma demagógica defesa dos pobres — mais propriamente de uma pobreza miserabilista, tipo comunismo cubano —, “teólogos da libertação” como que excomungaram o esplendor que irradiava da Igreja e que tanto atraía os fiéis do mundo inteiro, inclusive os mais pobres, justamente aqueles que lotavam as igrejas para se encantarem com a suntuosidade das cerimônias católicas, como aquelas que se realizavam na Semana Santa, em Corpus Christi, no Natal etc.

Nós, pobres mortais do triste e apagado século XXI, neste mundo neopagão, no qual fomos privados da graça de assistir às cerimônias de outrora, poderemos sentir seus perfumes lendo a narração que o autor fez das que ele presenciou na Cidade Eterna em meados do século XIX, durante o glorioso Pontificado do grande Papa Pio IX.

As saudades de coisas católicas de um tempo que não conhecemos, poderão antecipar os planos de Deus para a restauração da Cristandade de um modo nunca visto na História. Entre outras razões, este é o objetivo que almejamos com a transcrição2 que nas páginas seguintes oferecemos aos nossos leitores neste Natal de 2024.

Redação de Catolicismo


1. Mons. Jean-Joseph Gaume (1802–1879) foi um teólogo francês, autor numerosos livros tratando de teologia, história e educação. Cavaleiro da Ordem Reformada de São Silvestre, membro da Academia da Religião Católica de Roma, Doutor em teologia da Universidade de Praga, membro de diversas sociedades de eruditos, vigário-geral da Diocese de Nevers, vigário-geral honorário de várias dioceses, recebeu do Papa Pio IX, em 1854, o título de Protonotário Apostólico.

2. As Três Romas, Diário d´uma viagem à Itália, Mons. Jean-Joseph Gaume, Porto, Tipografia de Francisco Pereira d´Azevedo, 1857, tomo primeiro, pp. 297 a 313.


MONUMENTAIS E BELAS TRADIÇÕES DE NATAL

 

O belo dia de Natal, dia que eu tanto havia desejado ver em Roma, se mostrou tal qual eu gosto dele para estar em harmonia com a festa.

Na França e nos países do Norte, quero que ele seja muito frio, muito glacial; que as estrelas cintilem no azul do firmamento; que a neve estale debaixo dos pés, a fim de excitar nos corações a mais terna, a mais viva compaixão do Infante divino que tirita e chora sobre a palha, no seu berço exposto aos quatro ventos.

Em Roma e nos países quentes, na falta de gelo e neve, quero um nevoeiro mais ou menos espesso, mais ou menos penetrante, e chuva mais ou menos fria, mais ou menos abundante: fomos servidos como desejávamos.

Às oito horas estávamos no Vaticano. Seja-me permitido dizê-lo em elogio da nossa curiosidade, nós fomos dos primeiros. Ora, naquele dia, está combinado que não se vai a São Pedro para rezar, mas para contemplar; a menos que contemplar não seja também rezar, o que eu creria de boamente, ao menos para o católico respeitoso que assiste às cerimônias papais. Seja o que for, nós nos pusemos a contemplar. O primeiro objeto que nos chamou a atenção foram os alabardeiros do Papa, uma companhia dos quais entrou pouco depois de nós e foi tomar posição defronte do altar da Confissão de São Pedro, a fim de guardar o recinto reservado. Nada mais pitoresco e gracioso que o seu uniforme: calções pretos, vermelhos ou amarelos; couraça redonda da Idade Média, com braçais articulados; gargantilha em volta do pescoço, capacete redondo de aço, coroado de um penacho vermelho; largo talabarte amarelo, e longa alabarda à antiga; dir-se-ia a ressurreição dos tempos cavalheirescos.

 

Tradições da Santa, Una e Imortal Igreja

Este espetáculo tão novo serviu de tema às seguintes reflexões: Vede como Roma é essencialmente conservadora! Percorram-se todos os Estados da Europa, em nenhuma parte se encontrará, a não ser talvez no pó dos museus, este traje de um tempo que já não existe. Só a cidade eterna o conserva e expõe à luz do dia como uma página de história que cada qual pode ler. Mais de uma vez, sem dúvida, os viajantes almiscarados do século passado deviam de sorrir à vista deste imutável e gótico uniforme; mas o inteligente artista da nossa época o admira e estuda, em tanto que o cristão abençoa o pensamento que preside à sua conservação.

Este pensamento romano manifesta-se por toda a parte, assim nas pequenas coisas como nas grandes. Essas Ordens religiosas, cujos filhos póstumos percorrem as ruas e ruínas da cidade pontifical, tais, por exemplo, como os Trinitários e os cavaleiros de Malta, que são aos olhos do observador, senão a tradução viva do mesmo pensamento? Parece-vos que a lei devora sancionar uma supressão já operada de fato: o vosso zelo vos desvaira. Como Deus, Roma cria e conserva, mas não destrói; guarda todas estas ordens caducas como as relíquias de um passado venerável, como os anéis da cadeia tradicional. Verdade é que o Trinitário já não irá a Tunes levar o resgate dos cativos, porém resgatará outros prisioneiros, os do pecado; trabalhará no ministério das almas. Do mesmo modo, o cavaleiro de Malta já não desembainhará a sua gloriosa espada contra o maometismo, mas desempenhará junto do chefe da cristandade nobres funções, no enquanto os perigos da fé ou os interesses da humanidade não o chamam a novos combates.

O mesmo espírito de conservação se manifesta nos monumentos da Antiguidade. Se a Áustria, a França, a Inglaterra, a Rússia, ou qualquer outro povo fosse senhor de Roma por 50 anos, é muito de recear que tudo ali fosse transtornado. O gênio de cada povo, a atividade de uns, a incúria dos outros, as colisões políticas, o espírito mercantil e industrial comprometeria rapidamente a existência da maior parte das ruínas monumentais. Sob a guarda da Igreja não tem elas nada a temer. O mais cativo, o mais inteligente gênio da conservação vela por elas; e Roma é sempre um incomparável museu onde os costumes e as coisas de todos os tempos, cuidadosamente conservados, são oferecidos ao estudo e à admiração do mundo inteiro.

Daqui nasce involuntariamente uma reflexão mais alta: não se deve duvidar; este espírito de conservação é evidentemente providencial, e a Igreja que o manifesta parece dizer a seus filhos: “Se eu emprego tantos cuidados em salvar do olvido e da destruição usos e monumentos de um interesse secundário, qual pensais que deve ser a minha solicitude para conservar intacto o depósito sagrado da fé? Confiai na vossa Mãe; ela nada deixará perecer do vosso divino patrimônio”.

 

O Grande Cerco de Malta por Charles-Philippe Larivière (1798-1876). Sala das Cruzadas, Versalhes. No centro, com a espada na mão, o heroico Grão-Mestre da Ordem de Malta, Jean Parisot de la Valette

Na Igreja, a beleza dos mistérios que nos atraem

O tempo havia fugido, eram mais de nove horas; a Basílica de São Pedro tinha-se enchido de uma multidão imensa, quando um tiro de peça anunciou a partida do Santo Padre. Saindo dos seus quartos, o augusto ancião desceu, pela escada interior do palácio, a uma capela lateral da Igreja. Brevemente se viu, dominando todas as cabeças, com pálio brilhante de ouro e seda, depois dois largos leques da maior beleza, gloriosa recordação da magnificência imperial; e debaixo desse pálio, assentado na Sedia gestatória [troneto portátil utilizado para levar os Papas], resplandecente de ouro e púrpura, o Vigário de Jesus Cristo, com a tiara na cabeça, glorioso emblema da sua tripla dignidade de Pai, Rei e Pontífice.1 Caminhava majestosamente, levado aos ombros dos oficiais da sua casa, com vestidos de cerimônia vermelhos.

O sacro Colégio abria a marcha, a guarda nobre formava a ala e seguia o cortejo que veio parar diante de nós, por trás do altar da Confissão de São Pedro. Depois de ter deposto a tiara e feito uma breve adoração ao pé do altar, o Sumo Pontífice subiu a um trono colocado à direita, entoou Terça, tomou a mitra c se assentou. Por que sucede a mitra à tiara?

Esta misteriosa troca principiou para mim uma longa série de enigmas cuja solução muito me atormentou o espírito. Compreendi bem depressa que se o Santo Padre era Rei sobre a Sedia gestatoria, no altar não era mais que Pontífice, e a substituição da mitra à tiara explicou-se por si mesma. Porém dois novos hieróglifos me embaraçaram mui diversamente, um que eu via, e outro que não via. O Santo Padre, o Bispo dos bispos, não trazia bacilo; debalde procurei, mas este atributo distintivo do cargo pastoral não figurava de modo algum entre as insígnias; por que é isto? Primeiro enigma.

Dois prelados domésticos, que precediam o Santo Padre, traziam, um, uma soberba espada de punho de ouro, stocco; outro, um chapéu ducal, cimeiro, de veludo carmesim, forrado de arminho, ornado de pérolas e cercado de um cordão de ouro com uma pomba no meio, símbolo do Espírito Santo; a espada e o chapéu foram depostos no canto do altar, onde se conservaram durante a Missa: por que é tudo isto? Segundo enigma.

Procurei em torno de mim algum Édipo capaz de me explicar estes dois mistérios: os meus esforços não tiveram bom êxito. A Missa começou, continuou, acabou; e aquele chapéu, aquela espada, aquele báculo, não me saíram da cabeça. Confesso a minha distração; para a expiar, condenei-me a longas investigações sobre a causa que a produzira, e a fim de poupar a mesma pena àqueles que viessem depois de mim, vou dar a explicação dos dois enigmas.

 

Em nome de São Pedro, uma ressurreição


Relíquia de São Materno
(tesouro da Basílica de Nossa Senhora,
 em Liège, Bélgica)

O pontificado de São Pedro em Roma durou 25 anos. Posto que as nossas histórias galicanas não nos dizem coisa alguma dos trabalhos do Apóstolo durante esta longa permanência, sabe-se muito bem que ele não esteve de braços cruzados. Os antigos monumentos, os arquivos e as tradições das Igrejas da Itália nos falam a cada instante das viagens do pescador Galileu, dos missionários que ele enviou a todas as partes da Península e até além dos Alpes; tais, por exemplo, como São Fronte, à Aquitânia, e São Materno, à Germânia.
2 Com este último, partiram para Trèves Santo Eucherio e São Valério, todos três discípulos do Príncipe dos Apóstolos. Ao cabo de 40 dias Materno morreu. Um dos seus companheiros de apostolado voltou a Roma a dar essa nova a São Pedro, e rogar-lhe enviasse um novo obreiro em lugar do defunto. O Apostolo contentou-se com lhe dizer: “Pegai o meu bastão, tocai com ele o morto e lhe direis da minha parte: Levantai-vos e pregai”. À ordem daquele cuja única sombra curava os doentes, operou-se o milagre: Materno saiu cheio de vida da sepultura, continuou a sua missão e veio a ser o segundo bispo de Trèves. Em memória eterna deste milagre, os sucessores de São Pedro não trazem bordão pastoral, exceto na diocese de Trèves, quando ali se acham.

Este fato, que nada tem de surpreendente quando se conhece o miraculoso poder dos Apóstolos e a necessidade dos prodígios para acreditar a fé nascente, repousa além disso em ilustres autoridades. Citarei só duas; o Papa Inocêncio III, e São Tomás de Aquino — o primeiro foi o maior homem do seu século, o segundo, a razão mais sã e forte da Idade Média.3 Feliz com a minha descoberta, admirei de novo o espírito de conservação que faz a glória particular da Igreja de Roma, e bendisse minha mãe por nos haver guardado, num dos seus usos, a recordação dos fatos miraculosos realizados em torno do nosso berço.

 

Tradição de Natal: o Papa abençoava uma espada e uma armadura


O Papa Pio VIII (1829-1830),
 na Sedia Gestatoria, na Basílica de São Pedro
— Emile Jean Horace Vernet (1829).
 Palácio de Versalhes, França.
 
Mas o que significava a espada e o chapéu ducal? A explicação deste novo enigma veio ainda rematar num tributo de admiração e reconhecimento. Nos séculos mais remotos, quando teve lugar a encarnação do cristianismo nas nações europeias, o direito da força houve de regular-se pelo direito moral. Instrumento de paixões pessoais, de opressão pública e de iniquidade no mundo idólatra, tornou-se a espada, nas mãos dos príncipes e dos guerreiros cristãos, uma arma destinada a proteger a verdade, a equidade, e a ordem social. Esta nova missão do ferro foi incessantemente recordada àqueles que Deus encarregava de a desempenharem. E eis que na mesma noite em que o Menino Deus veio despedaçar todas as tiranias, o seu Vigário abençoa uma armadura que envia ao imperador, ao rei, ao príncipe, ao guerreiro que combateu valorosamente ou que deve combater os inimigos da verdade, da justiça e da paz do mundo. No século XVI, Sixto IV chamava já a este eloquente uso, um costume vindo dos Santos Padres; e de fato, os séculos anteriores tinham visto Urbano VI dar a armadura sagrada a Fortiguerra, presidente da república de Lucca; Nicolau V, ao príncipe Alberto, irmão do imperador Frederico; Pio II, a Luís VII, rei de França. Roma continua a benzer todos os anos a espada e o chapéu ducal do guerreiro cristão; e se há ocasião, o Pai comum das nações a envia ao príncipe, ao capitão que dela se tornou digno pelas suas façanhas e pelo seu comportamento.4

 

Esplendor da Missa Pontifical na Noite de Natal

Se, nestes usos preliminares, eu pudera ler uma página da nossa bela Antiguidade, a missa pontifical me revelou quase inteira. Depois da confissão aos pés do altar, o Santo Padre foi tomar lugar num trono preparado no fundo do coro, imediatamente por baixo da cadeira de São Pedro. À direita e à esquerda, sobre estrados forrados de vermelho, se assentavam os membros do sacro Colégio: contei 24 de casula e mitra brancas ricamente bordadas.

Por trás dos cardeais, viam-se os bispos, os chefes de ordem e os prelados: por cima destes longos assentos havia duas ordens de tribunas: as tribunas superiores, reservadas aos príncipes e embaixadores; as outras, ocupadas pelas pessoas munidas de bilhetes. Não se pode dizer quão grave, e verdadeiramente católico é este espetáculo.

Em memória da antiga união da Igreja oriental e da ocidental, em testemunho perpétuo da catolicidade da fé que falou e deve até ao fim falar todas as línguas, a epístola e o evangelho foram cantados primeiro em latim por dois eclesiásticos de Roma, depois em grego por um subdiácono e um diácono armênios revestidos com o seu magnífico traje oriental.

Aproximando-se o momento da consagração, o Santo Padre desceu do seu trono. Depois do cumprimento do formidável mistério, o augusto ancião pegou a santa Vítima, a imagem do Menino Jesus, em suas venerandas mãos, e elevando-a acima da cabeça, apresentou-a aos quatros pontos do céu; depois, antes de tornara colocá-la no altar, deu silenciosamente a bênção ao universo. Aquele silêncio profundo, os cabelos brancos do Vigário de Jesus Cristo, todas aquelas cabeças de príncipes e reis inclinadas até à terra, à vista da augusta Vítima elevada entre o Céu e a Terra, tudo isto produz na alma uma impressão que se é feliz em tê-la experimentado, porém que se não pode traduzir.

Antes da comunhão, o Santo Padre voltou ao seu trono; viu-se o cardeal-diácono deixar o altar e trazer-lhe, precedido de tochas, o adorável Corpo do Salvador. Neste momento solene toda a gente caiu prosternada, até um inglês que eu tinha à minha direita. O Santo Padre assentado, com as mãos juntas, a cabeça respeitosamente inclinada, tomou a Santa Hóstia e administrou a comunhão a si próprio; depois, pegando noutra, a ofereceu ao cardeal-diácono que comungou da mão do Vigário de Jesus Cristo. O diácono voltou ao altar donde levou, com as mesmas cerimônias, o precioso Sangue, de que o Santo Padre bebeu com um canudinho de ouro segundo o costume da primitiva Igreja, depois do que o diácono absorveu o resto da mesma maneira. Esta dupla comunhão ressuscita os primeiros tempos da Igreja e do mundo no Pontífice assentado no seu trono, vede o Filho de Deus assentado no meio dos seus Apóstolos e distribuindo-lhes o pão de vida; no diácono recebendo em pé o Cordeiro divino, vede o Israelita, no momento de transpor o mar Vermelho, comendo em pé e na atitude do viajante, o Cordeiro pascal, viático da sua peregrinação e penhor do seu livramento.

A este espetáculo, a inteligência do cristão, o seu coração, a sua existência toda, superabundam numa alegria doce, intima, profunda: quatro mil anos de amor acabam de lhe passar por diante dos olhos.

O próprio Presépio do Salvador exposto à veneração dos fiéis


 

O verdadeiro Presépio exposto na Basílica de Santa Maria Maior

Terminada a Missa, o Santo Padre foi reconduzido aos seus quartos na Sedia gestatoria, do alto da qual abençoava, ao atravessar a imensa basílica, o povo inumerável que acudira para o ver. Todos os cardeais, com a mitra na cabeça, precediam o Sumo Pontífice, seguido dos bispos, dos prelados e da guarda nobre, que fechava a marcha. Muito nos custou a arrancar-nos daquelas tribunas donde havíamos contemplado o mais belo espetáculo da nossa vida. Contudo força foi descermo-las: como todas as alegrias deste mundo, a augusta pompa desaparecera.

Quando havíamos partido para São Pedro, tinham-nos dito: “Não vos deixeis absorver em demasia; tende cuidado; encontram-se inevitavelmente nas cerimônias papais filhos de Rômulo apaixonados pelos lenços do seu próximo”.

Preocupados do que tínhamos visto, do que tínhamos sentido, não sei como nos veio à lembrança, ao lançar-nos na multidão, tomar certa medida de segurança. Graças a Deus, nenhum de nossos vizinhos se achou no pré-citado caso e saímos sãos e salvos com armas e bagagens.

Livres dos gatunos, caímos nas mãos dos vetturini. A chuva continuava a cair a torrentes: em Roma, como em Paris, em dia de festa e de mau tempo, os coches são reis. Depois de termos por muito tempo esperado, procurado, suplicado, encontramos por fim uma dessas majestades populares, que teve por bem obrigar-se a conduzir-nos à casa mediante cinco paulos e meio. De tarde, foi-nos de novo necessário implorar aos potentados dos becos; porque as cataratas do céu estavam sempre abertas, e nós queríamos a todo o custo visitar Santa Maria Maior [foto abaixo]. Naquele dia somente o próprio Presépio do Salvador fica exposto à veneração dos fiéis.

Eram cerca de quatro horas quando chegamos à Basílica Libéria [Santa Maria Maior]. Segundo o antigo costume, o Sumo Pontífice cantava lá as vésperas; mais de mil tochas iluminavam a Igreja e faziam-lhe cintilar os dourados; nunca o ouro do Novo Mundo brilhou com um fulgor mais vivo.

Terminado o ofício, a guarda pontifical faz evacuar a Igreja, cujas portas são fechadas. Só ficam nela um pequeno número de escolhidos: nós fazíamos parte dele, graças a um de nossos amigos. Mais um pouco, e vai nos ser dado ver com os nossos olhos o próprio Presépio de Belém, tocante testemunho do amor de um Deus feito nosso irmão.

Desde o princípio, rodearam os cristãos da Judéia dum respeito e de um culto solícito os lugares e os objetos santificados pela presença ou pelo toque do Salvador. Na medida em que o Evangelho estendia as suas conquistas na Palestina, conduzia ao reconhecimento e à fé multidões numerosas de peregrinos idos do Oriente e do Ocidente. A imperatriz Santa Helena para lá se dirigiu em pessoa, e mandou revestir o presépio de lâminas de prata e a gruta sagrada dos mais preciosos mármores.5

No tempo de São Jerônimo, era a afluência tão continua e numerosa, que o santo doutor escrevia de Belém: “Acode aqui gente do globo inteiro; a cidade não se despeja de homens de todas as nações;6 não se passa um dia, uma hora em que não vejamos chegarem bandos de irmãos que nos obrigam a fazer do nosso silencioso mosteiro um caravançará”[hospedaria].7


Intensa veneração ao Presépio do Menino Jesus

Guardado com mais amor que a Arca da Aliança, com mais respeito que o Tugurium de Rômulo, rodeado por gerações não interrompidas de cristãos fiéis, coberto dos ósculos de muitos milhões de peregrinos, regado com suas ardentes lágrimas, o Presépio deixou o Oriente por ocasião da invasão do maometismo. Foi no segundo ano do pontificado do Papa Theodoro, no ano 642. Roma o depositou na basílica Libéria8 com o corpo de São Jerônimo, igualmente trazido da Palestina: ela não quis que o santo doutor, guarda vigilante do Presépio durante a sua vida, fosse separado dele depois da sua morte.9

Ora, se a velha Roma fez consistir parte da sua glória em conservar a cabana de Rômulo, julgai a Roma cristã quanto mais feliz e orgulhosa se mostra por possuir o berço do Menino-Deus!10

O Presépio é o seu tesouro, a sua joia, faz a sua felicidade, a sua glória. Ela o guarda com um amor cioso, rodeia-o de uma veneração que não podem os séculos enfraquecer; conserva-o numa caixa de bronze e não o expõe às vistas senão uma vez cada ano.

Na noite que precede este dia tão desejado pelo peregrino católico, é o Presépio colocado primeiro sobre um altar na grande sacristia; o mais apreciável incenso arde em sua honra; depois os quatro cônegos mais moços de Santa Maria pegam a preciosa relíquia aos ombros, precedidos de todo o clero, a transportam solenemente para a capela de Sixto V. Depois da missa da Aurora tornam a buscá-la e a expõem no tabernáculo do altar-mor. Todo o clero se dirige depois à capela Borghese, situada defronte à de Sixto V, para nela descobrir a milagrosa imagem de Maria; é um modo de convidar a divina Mãe a contemplar o triunfo de seu Filho e a gozar ela mesma do seu próprio triunfo.

Oh! se estiverdes algum dia em Roma, não deixeis de venerar esta imagem de Maria. É ela a mesma que foi pintada por São Lucas, segundo a tradição;11 a mesma que Sixto III quis honrar, segundo o desejo do seu coração, mandando fazer os preciosos mosaicos do abside, e renovando a basílica em quase todas ao suas partes; a mesma aos pés da qual os santos Papas Símaco, Gregório III, Adriano I, Leão III, Pascoal I passavam as noites em oração; a mesma diante da qual Clemente VIII vinha, logo ao romper da aurora, descalço, oferecer o augusto sacrifício; a mesma à qual o ilustre Bento XIV não deixava sábado algum de render as suas homenagens, assistindo ao canto das ladainhas lauretanas.12

A recordação de tantas orações, de tantas lágrimas, de tantos brilhantes testemunhos de fé e piedade, produz indizível confiança, e nós teríamos ficado prostrados ao pé dessa imagem tantas vezes venerável, se o Presépio não houvesse dado outro curso aos sentimentos de nossos corações.

 

Menino Jesus venerado na Missa de Natal, na Basílica de São Pedro. 


Divino berço, eternamente venerável

Quando, pois, tudo estava pronto, dois cônegos de Santa Maria Maior desceram o Presépio do tabernáculo e o depuseram num altarzinho portátil. O cardeal protetor adiantou-se e foi o primeiro que veio render as suas homenagens ao divino berço; o clero o seguiu; chegou a nossa vez, e eu pude ver de perto, ver com os meus próprios olhos, o pobre Presépio em que Maria deu à luz o Salvador do mundo, envolvido em faixas!!!

O Presépio já não conserva a sua forma primitiva. As cinco pequenas taboas que lhe formavam as paredes estão todas reunidas. As mais compridas podem ter dois pés e meio de comprimento por quatro ou cinco polegadas de largura; são delgadas e de uma madeira enegrecida pelo tempo. Este berço, eternamente venerável, repousa num relicário de cristal, engastado numa moldura de prata esmaltada de ouro e de pedras preciosas: esplêndida oferenda de Felipe IV, rei de Espanha.

Terminada a veneração, lavrou-se o processo verbal, certificando a identidade do Presépio e as particularidades da cerimônia: depois do que a santa relíquia foi encerrada no tesouro, para não sair dele senão no ano seguinte em igual época.

O nosso dia estava completo. Tudo o que a religião tem de mais majestoso, a missa papal; tudo o que tem mais terno, o Presépio, tinha estado diante dos nossos olhos. Por isso o nosso coração estava contente, mas contente como o não pode estar senão em Roma, em dia de Natal, quando se viu, com olhos cristãos, o duplo espetáculo que acabo de dizer.

 

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Notas:

 

1. Pondo-a ao Pontífice o cardeal lhe diz: “Accipe tiaram tribus coronis ornatam, et scias te esse patrem principum et regum, rectorem orbis in terra Vicarium” etc. Os italianos chamam a tiara Triregno: é uma bela palavra.

2. Foggiuio, De romano divi Petri itinere et episcopatu, in-4.o, Exercit. XIII, XIV, XIX.

3. Eis as suas palavras: Inocêncio III diz: “Romanus autem Pontifex pastor alivirga non utitur, pro eo quod beatus Petrus Apostolus baculum suum misit Eocherio primo epíscopo Trevirorum, quem una cum Valerio et Materno ad praedicandum Evangelium genti Teutonicae destibavit. Cui successit in episcopatu Maternus, qui per baculum sancti Petri de morte fuerat suscitatus. Quem baculum usque hodie cum magna veneratione Trevirensis servat Ecclesia. De sacrif. Miss., c. VI. O mesmo Pontífice escrevendo ao patriarca de Constantinopla, repete o mesmo fato. De sacra unct., cap. unic., versus fin. — O doutor angélico exprime-se assim: “Romanus Pontifex non utitur baculo, quia Petrus mísit ipsum ad suscitandum quemdam discipulum suum, qui postea factus est episcopusTrevirensis, et ideo ín dioecesi Triverensi Papa baculum portat, et non in aliis”. Q. 3 , art, 3, dtstinct. 24, lib. IV. — A esta razão histórica ajuntam os autores varias razões misteriosas, para explicarem a ausência do báculo nas mãos dos sumos Pontífices; eis a principal: “Quia per baculum designatur correctio sive castigatio; ideo alii pontífices recipiunt a suis superioribus baculos, quia ab homine potestatem accipiunt. Romanus Pontifex non utiturbaculo, quia potestatem a solo Deo recipit” Desacr. unct. ad verb. Mystic, Vêde também Dnrandus, Rationalediv. Offic.) lib. III, c. 15; Àlzedo, De prcecelent. Episcop. dignit., p. I, c. 13 , n. 70; Hieron. Venerius, De exam. Epxscop.,lib, IV, cap. 20, n. 21; Barbosa, De offic. Et potest. episcop. , p. I, tit. I, n. 11 etc. etc. — Na Dissertação ad hoc que colocou no fim dos seus Monim, veter I. III, p. 209, faz o sábio Ciampini observar muito bem que a Ferula, espécie de bordão direito que se apresentava aos Papas no dia da sua eleição, e que se acha gravado nos antigos túmulos, não é um báculo, mas o emblema do seu poder temporal. — Pois se trata aqui do báculo episcopal, não posso resistir ao prazer de citar os versos seguintes de um autor da Idade Média, sobre a significação deste cajado espiritual e sobre o uso que o pontífice deve fazer dele:

In baculi forma, praesul, datur haec tibi norma:
Attrahe per primum, medio rege, punge per imum.
Attrahe peccantes, age justos, punpe vagantes:
Attrahe, sustenta, stimula, vaga, morbida, lenta.
(Gloss. De sacr. unct.c.unic).

4.Costanzi, Instituzioni di Pietà di Roma, t. 1, p. 8.

5. Euseb., Hist., lib. III, c. 41 e 43.

6. De Toto huc orbe concurritur; plena est Civitas universi generis hominum, et tanta utriusque sexus constipatio, ut quod álibi ex parte fugiebas, hic totum sustinere cogaris. Epist.XIII ad Paulinum.

7. Nulla hora nullumque momentum, ín quo non fratrum occurramus turbis, et monasterii solitudinem hominum frequentia commutemus. Id. , c. VII in Ezecfi.

8. Vêde os dois sábios autores da Historia do Presépio, Giov. Batelli e Fr. Bianchini, De Translat. sacr. cunabul AC praesep. Dom., etc. Vêde também Cancell., Notte di Natale, c. XXVI. p.88; Benedicto XIV, De die natali etc.

9. Arringhi, Rom. subterr., t. II, p. 269, ediç. Paris, in-foL

10. Porro Christi natalis nobile monumentum, ex ligno confectum Roma possidet, eoque multo felicius illuslratur, quam tugurio Romulí, quod in textum ex stipula eorum majores ad saecula de industria conservaveruot.Baron,, t. I, an. I, n. 5.

11. Baron., an. 530. Cancellieri, Notte di Natale, c. XXVI, p. 80.

12. Costanzi, lib. II, p. 27.

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