14 de abril de 2024

Aborto: um preconceito de lugar



https://providaanapolis.org.br/aborto-um-preconceito-de-lugar/

(a criança é injustamente discriminada por estar dentro da mãe)

Injeção de cloreto de potássio
no coração da criança para matá-la


A Nota Técnica Conjunta nº 2/2024 do Ministério da Saúde[1], publicada em 28 de fevereiro de 2024, mostra, sem dúvida alguma, que os promotores do aborto defendem um preconceito de lugar. 

Segundo a referida Nota, se a criança está dentro do útero materno, ainda que esteja prestes a nascer, pode ser morta sem piedade. 

O motivo da discriminação não é tanto o tamanho da criança nem o seu tempo de vida após a concepção. Uma criança nascida prematuramente gozaria do direito à vida, ainda que fosse menor e mais nova que outra criança em gestação. Porém, a criança dentro do útero materno não goza de nenhum direito, estando sujeita às mais cruéis atrocidades.

Com a citada Nota, seriam reprovadas, de uma vez por todas, condutas louváveis de magistrados e membros do Ministério Público como a da juíza Joana Ribeiro Zimmer e da promotora Mirela Dutra Alberton[2], que exortaram a mãe gestante a esperar a criança nascer, em vez de abortá-la, e depois, se fosse o caso, encaminhá-la para adoção.

A Nota Técnica nº 2/2024 cita trechos da Nota Técnica nº 44/2022 (emitida durante o governo Bolsonaro) para contestá-los:

Não há sentido em [o aborto] ser realizado em gestações que ultrapassem 21 semanas e 6 dias.

[…]

Sempre que houver viabilidade fetal deve ser assegurada toda a tecnologia médica disponível para tentar permitir a chance de sobrevivência após o nascimento.

Eis a contestação:

A viabilidade fetal não pode servir de justificativa para imposição de marco temporal para o exercício do direito de aborto permitido, nas condições previstas em lei [n. 3.7].

Para justificar a prática do aborto “sem limites de tempo gestacional” (n. 3.11) ou “em qualquer tempo gestacional” (n. 3.15), argumenta-se que a criança por nascer não sente dor:

Teorias provenientes de estudos com animais sugerem a possibilidade de um estado intrauterino permanente de inconsciência, sobretudo pela presença de substâncias químicas como a adenosina, que suprime a ativação cortical maior na presença de um estímulo externo. Isso significa que, até o nascimento, quando ocorre a separação do recém-nascido do ambiente uterino, o feto muito provavelmente não é capaz de sentir dor [n. 3.14].


Quem já assistiu ao filme “O grito silencioso” [1984], de Dr. Bernard Nathanson, que mostra, por ultrassonografia, o aborto de um bebê de três meses, sabe quão disparatada é a afirmação de que a criança, ao ser abortada, não sente dor. No vídeo, pode-se ver como seus batimentos cardíacos vão-se acelerando e como ela tenta, a todo custo, fugir do tubo de aspiração que vai desmembrá-la. Em um certo momento, ela abre a boca como se quisesse gritar: é o “grito silencioso”, que deu nome ao filme.

Se, conforme a Nota Conjunta nº 2/2024, o nascituro não sente dor, pode-se matá-lo “em qualquer tempo gestacional, com a indução de assistolia fetal quando indicada” (n. 3.15). Induzir a “assistolia fetal” é causar a morte do nascituro (por exemplo, injetando cloreto de potássio em seu coração) antes de sua expulsão do organismo materno.

Reação do povo e suspensão da Nota

Ministra da Saúde Nísia Trindade

Como a notícia da edição da Nota Técnica nº 2/2024 espalhou-se rapidamente pelas redes sociais, os protestos foram tão numerosos, que, no dia seguinte, 29 de fevereiro de 2024, às 15 horas, a Ministra Nísia Trindade comunicou a suspensão da Nota. Segundo ela,

… o documento não passou por todas as esferas necessárias do Ministério da Saúde e nem pela consultoria jurídica da Pasta, portanto, está suspenso[3].

Reação do CFM contra a assistolia fetal

No dia 3 de abril de 2024, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM nº 2.378/2024, que assim dispõe:

Art. 1º – É vedado ao médico a realização do procedimento de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei, ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas[4].

Apreciação moral e jurídica

A reação do povo e do CFM ao aborto tardio é louvável. Mas as razões de tal reação precisam ser purificadas de todo erro quanto à Moral e ao Direito.

A Nota Técnica 2/2024 afirmava – e seus opositores não negaram – que no Brasil existe um aborto “permitido” pelo Código Penal, “previsto em lei”, que constitui um “direito” da mulher grávida em razão de um estupro. Eis a argumentação da referida Nota:

O artigo 128 do Código Penal, a seguir transcrito, não prevê qualquer limite de tempo gestacional:

Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:

Aborto necessário

I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;

Aborto no caso de gravidez resultante de estupro

II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.

Destarte, se o legislador brasileiro ao permitir o aborto, nas hipóteses descritas no artigo 128 não impôs qualquer limite temporal para a sua realização, não cabe aos serviços de saúde limitar a interpretação desse direito, especialmente quando a própria literatura/ciência internacional não estabelece limite [n. 3.7; 3.8].

Partindo da premissa (falsa) de que o aborto é um “direito”, o que disse a Nota é coerente: a lei não estabelece nenhum limite para o exercício desse “direito”. E conforme o provérbio jurídico, “onde a lei não distingue, também nós não devemos distinguir” (Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus). Logo, o (suposto) direito de matar estende-se aos nove meses de gestação.

Na suposição de que, em 1940, o Código Penal, ao entrar em vigor, “autorizou” o aborto, é curioso pensar que tal “legalização” ocorresse sem nenhuma restrição temporal. Não que o aborto no início da gestação seja menos grave que o aborto tardio, mas este último causa uma especial repulsa na população. Em todos os países em que entra alguma “lei do aborto”, ela começa especificando o limite (por exemplo, até três meses) em que se permite tal prática.

Por que o artigo 128 do Código Penal não prevê um limite de tempo para a prática do aborto? Simplesmente porque ele não permite o aborto. Porque, naquele artigo, não está escrito que o aborto “é permitido”, nem sequer está escrito que o aborto “não é crime”. O que está escrito é que em duas hipóteses o aborto praticado por médico “não se pune”. Segundo o magistério de Ricardo Dip, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,

… a leitura do caput do mencionado art. 128 (“Não se pune etc.”) está, para logo, a sugerir que aí se acham causas isentas de apenamento ou, quando muito, excludentes da punibilidade […]. Está a cuidar-se das chamadas escusas absolutórias, causas que, excluindo a pena, deixam subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona[5].

Eis a lição de Marco Antônio da Silva Lemos, ex-Desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios:

Em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas – o que a legislação infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo – não será punido penalmente, por razões de política criminal.[6]

As escusas absolutórias, ao deixarem de aplicar a pena a um criminoso, não costumam exigir limite para a gravidade do crime. O artigo 181 do Código Penal diz que “é isento de pena quem comete qualquer dos crimes previstos neste título [crimes contra o patrimônio]” em prejuízo do cônjuge (inciso I), do ascendente ou descendente (inciso II). Assim, o filho que furta do pai comete crime, mas fica isento de pena. E essa isenção vale seja para o furto de R$ 1,00, seja para o furto de R$ 100.000,00. A lei achou por bem não aplicar a sanção penal nesse caso, por julgar que a família pode, por si mesma, resolver a questão sem a intervenção do Estado. Mas de modo algum a lei aprova a conduta delituosa do filho.

Igualmente, o artigo 348 do Código Penal, ao tratar do crime de favorecimento pessoal, declara que “fica isento de pena” (§ 2º) o “ascendente, descendente, cônjuge ou irmão” do criminoso que auxiliar este último a “subtrair-se à ação da autoridade pública” (caput). Assim, a mãe que esconde o filho criminoso da polícia fica isenta de pena, seja o filho autor de um furto de alimento em supermercado, seja o filho autor de um homicídio qualificado. A lei perdoa a conduta da mãe se ela já foi consumada, mas de modo algum dá à mãe o “direito” de praticá-la.

Com o artigo 128 do Código Penal, dá-se algo semelhante. A lei não aprova a conduta do médico que mata a criança para salvar a vida da mãe[7] ou que mata a criança para descarregar sobre ela a fúria contra o pai que cometeu estupro[8]. Se, porém, o aborto já ocorreu, a lei não pune o médico (talvez levando em conta suas “boas intenções”[9]), qualquer que tenha sido a idade ou o tamanho do nascituro vítima do crime.

O ouro entregue ao bandido

Embora o Conselho Federal de Medicina tenha proibido ao médico o aborto após as 22 semanas, o texto reconhece que há um “aborto previsto em lei” (sic) quando a gravidez resulta de estupro. Admitir que há um aborto “legal” no Brasil é “entregar o ouro ao bandido”. E depois de entregue, dificilmente o bandido devolve uma parte do ouro. Ou seja, ao conceder (erroneamente) que a lei “permite” o aborto, dificilmente os abortistas desistirão do “direito” ao aborto tardio. Bem melhor seria se o CFM argumentasse que em nenhum caso o aborto é permitido pela lei. E a conclusão seria vedar ao médico não apenas a prática do aborto tardio, mas a prática de qualquer aborto.

A Resolução CFM Nº 2.378/2024 traz em seu relatório, alguns casos em que seria lícita a nefanda prática da “assistolia fetal”:

Existem situações na obstetrícia em que o procedimento da assistolia embrionária/fetal traz benefícios no que se refere a menor risco para a gestante, como a gravidez ectópica com uso de metotrexate para tratamento. […] Existem situações peculiares descritas, e outras que podem surgir, que justificariam o procedimento de assistolia fetal ao reduzir o risco de morte materna.

Ora, o “menor risco para a gestante” não justifica a morte direta de seu filho inocente[10], seja em caso de gravidez ectópica (fora do útero, usualmente na trompa), seja em qualquer outro caso. Essa lição de Bioética ainda precisa ser aprendida pelo CFM.

Em 2022, durante o governo Bolsonaro, o Ministério da Saúde emitiu um Manual chamado “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de abortamento”[11]. Naquele documento, pela primeira vez na história, o Ministério da Saúde reconheceu que não existe aborto “legal”. Leiamos:

Não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em lei deve ser realizado por profissionais habilitados [p. 14].

O texto acima traz um erro grave, ao dizer: “o que existe é o aborto com excludente de ilicitude”, uma vez que excluir a ilicitude é o mesmo que tornar lícita ou legal a conduta. O correto seria dizer: “o que existe é o aborto com exclusão da pena ao médico criminoso”. Depois de ter negado a existência do aborto “legal”, o parágrafo termina falando do aborto “previsto em lei” (o que equivale a “legal”) e admite que ele seja praticado pela rede hospitalar pública. É verdade que o Manual oferece alternativas ao aborto (como a entrega da criança para adoção) e limita sua prática até 21 semanas e 6 dias. Mas infelizmente, o texto também “entrega o ouro ao bandido”, ao admitir o aborto “previsto em lei”. Se o documento fosse coerente até o fim com a afirmação de que não existe aborto “legal”, deveria vedar qualquer tipo de aborto aos profissionais de saúde.

Conclusões

  1. Foi maravilhoso o efeito imediato das redes sociais na suspensão da Nota Técnica Conjunta nº 2/2024. Se em novembro de 1998, a Internet dispusesse dos recursos de hoje, provavelmente o clamor popular teria feito o Ministério da Saúde suspender a primeira Norma Técnica do aborto, chamada “Prevenção e Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes”.
  2. Nunca será possível extirpar do Brasil a prática do aborto enquanto algum de nós, fazendo o jogo do adversário, admitir a tese falsa de que existe aborto “legal” neste país.
  3. A afirmação de que no Brasil não existe aborto “legal” deve levar à consequência lógica de proibir toda prática abortiva, e não apenas a prática do aborto após 22 semanas.

Anápolis, 13 de abril de 2024.

Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz

Vice-presidente do Pró-Vida de Anápolis.

[1] MINISTÉRIO DA SAÚDE. Secretaria de atenção primária à saúde. Secretaria de Atenção Especializada à Saúde. Nota Técnica Conjunta Nº 2/2024 – SAPS / SAES / MS. Brasília, 28 fev. 2024. Não está mais disponível na página do Ministério da Saúde.

[2] A juíza e a promotora tentaram, em Santa Catarina, impedir um aborto de uma criança de 22 semanas de vida dentro do útero de outra criança de 11 anos de nascida que engravidou ao praticar o ato sexual com um menino de 13 anos. Lamentavelmente o bebê foi abortado já no sétimo mês de vida, em 22 de junho de 2022, possivelmente após receber uma injeção de cloreto de potássio no coração. Quanto à juíza, foi alvo de uma Reclamação Disciplinar junto ao Conselho Nacional de Justiça por ter tentado impedir um aborto “legal”.

[3] https://www.gov.br/saude/pt-br/canais-de-atendimento/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2024/posicionamento-do-ministerio-da-saude-sobre-a-nota-tecnica-2-2024

[4] https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2024/2378_2024.pdf

[5] Ricardo Henry Marques DIP. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico: alvará para matar. Revista dos Tribunais, dez. 1996. p. 531-532.

[6] Marco Antônio Silva LEMOS, O Alcance da PEC 25/A/95. Correio Braziliense, 18 dez. 1995, Caderno Direito e Justiça, p. 6.

[7] Nunca é lícito matar diretamente um inocente, nem sequer para salvar outro inocente.

[8] “Nenhuma pena passará da pessoa do condenado” (art. 5º, XLV, CF). Se o pai cometeu estupro, o filho não pode sofrer pena de morte.

[9] Diz o provérbio: “De boas intenções o inferno está cheio”.

[10] “Ninguém, em nenhuma circunstância, pode reivindicar para si o direito de destruir diretamente um ser humano inocente” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2258).

[11]http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_prevencao_avaliacao_conduta_abortamento_1edrev.pdf

Nenhum comentário: