6 de agosto de 2021

São Domingos de Gusmão na perspectiva de Plinio Corrêa de Oliveira

São Domingos (detalhe) – Fra Angélico, 1441. Convento de São Marcos, afresco, Florença.

No post de ontem reproduzimos a Parte I 

da matéria principal da revista Catolicismo deste mês 

[800 anos da morte de São Domingos de Gusmão ]

 neste post de hoje segue segunda parte.


Catolicismo já publicou a vida de São Domingos de Gusmão em algumas edições (vide, por exemplo, o nº 632, de agosto/2003), mas para esta efeméride especial do oitavo centenário de seu falecimento, pesquisamos em conferências do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comentários sobre o destemido santo dominicano, de quem era grande admirador. Encontramos muitos, e oferecemos aos nossos leitores uma seleção extraída de quatro conferências (de 4-8-64, 4-8-65, 4-8-67 e 12-1-70). Fizemos apenas ligeiras adaptações da linguagem falada para a escrita e inserimos subtítulos. Os comentários que seguem foram extraídos de gravações em fita magnética, sem revisão do autor. 


Missão de perseguir as falsas doutrinas e extirpá-las 

Tal é a crise na Igreja, corroída pelo progressismo dito católico, que se São Domingos de Gusmão tivesse alguma vez na vida parado o seu cavalo diante de um herege, tivesse dele apeado e dado ao herege um pouco de pão para comer e um pouco de água para beber, haveria muitos quadros e poesias a respeito desse gesto. Isso estaria mencionado pelos progressistas na liturgia, haveria iluminuras, falariam ao máximo sobre esse gesto de caridade do santo. Mas ele enquanto fundador da Inquisição é um capítulo sobre o qual não se fala. 

Como seria bom se tivéssemos um artista capaz de representar São Domingos estudando e meditando a fundação da Inquisição. Por exemplo, se tivéssemos uma boa reprodução daquela pintura, obra de Fra Angélico [acima], do santo sentado revestido com o hábito dominicano, pensativo, puro, casto, direito, fazendo a leitura de um livro, e publicássemos com o título: “São Domingos medita a fundação da Sagrada Inquisição contra a perfídia dos hereges”. 

Fra Angélico, na sua pintura de São Domingos, faz notar os traços característicos da gravidade e da concentração que o mostram inteiramente aplicado no que está lendo, revelando a capacidade de transcender o concreto. Percebe-se a dificuldade que o espírito do santo encontra em compreender determinada coisa. Sua mente está embrenhada num labirinto e quer resolver um ponto que oferece resistência. A gravidade é acentuada e completada pela inteira serenidade do seu ser. Um esforço sério, sem agitação, sem estar representando para si mesmo. Ele está sozinho aos olhos de Deus, e almejando encontrar a verdade. 

A Ordem Dominicana teve exatamente essa missão de perseguir as falsas doutrinas e extirpá-las. Daí a missão dos tribunais da Santa Igreja, o Santo Ofício, que, conforme revelação recebida por Santa Catarina de Siena, tinha a missão de ser o gládio de duas lâminas para converter e castigar. 

São Domingos é o santo da Inquisição, mas também o santo pregador do rosário de Nossa Senhora. Esse é capítulo da vida dele muito importante de se focalizar, que é o seguinte: o bom católico contra-revolucinário reza o rosário; e as pessoas que rezam o rosário se tornam bons contra-revolucionários. 

Há uma espécie de ordem especial do demônio contra a devoção ao rosário, pois há uma capacidade especial do rosário de incutir terror aos demônios. Também há uma espécie de zelo especial pelo rosário de quem é bom católico e o reza todos os dias. Em sentido contrário, quem vai abandonando o uso diário da sua recitação está no caminho de se tornar tíbio e deixar de ser autenticamente católico. 

Assim se compreende a beleza de ver que o santo da Inquisição, nascida da Igreja Católica e das Ordens de Cavalaria, tenha sido ao mesmo tempo o grande pregador do rosário. 

Aquele que verdadeiramente ama a Deus, odeia o mal 

Auto de Fé presidido por
São Domingos de Gusmão (c. 1493-1499)
– Pedro Berruguete, séc. XV.
Museu do Prado, Madri.
Na vida de qualquer santo, escrita na concepção mole e sentimental, adocicada e relativista que eu costumo denominar concepção “heresia branca”, figura sempre isto: foi muito bom, perdoou muito, curou muitos doentes, agradava muito as criancinhas etc. Ou seja, segundo tal concepção, a santidade quer dizer ser dulçuroso no trato. E nunca os seguintes elogios: que ele velou pela doutrina, odiou os hereges e extirpou a heresia. Porque isto parece uma cogitação de caráter intelectual, e não moral. Os adeptos da concepção sentimental não consideram a firmeza nos princípios como virtude. Acham que isso é antipático. Para eles, é antipático combater a heresia, rejeitar os hereges. 

Havia um alto personagem da Igreja aqui no Brasil que deu ao seu secretário o seguinte conselho: “Padre Fulano, o senhor tome como norma de santidade o seguinte: qualquer ato que lhe pareça bom na vida, mas que possa fazer alguém sofrer, não o faça porque não é bom.” Segundo ele, o bem nunca faz sofrer a ninguém. Esta é a mentalidade estritamente molenga e sentimental, pois não compreende nem de longe a necessidade de defender a doutrina, de corrigir aqueles que erram e, menos ainda, a necessidade de combater aqueles que erram na doutrina. 

Entretanto, a verdade é que o amor de Deus tem como expressão necessária o amor a Ele como Ele é, como Nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado, ensinou. E aquele que verdadeiramente ama a Deus, odeia o mal. Ser catolicamente ortodoxo sem odiar o mal é outro absurdo. Seria como pretender ter virtude sem ter ortodoxia. 

Por isso vemos a boa doutrina cantando as glórias de São Domingos de Gusmão, dizendo que ele foi um extirpador das heresias; um dom que Nossa Senhora lhe deu foi a virtude da combatividade. Quanto mais uma pessoa é combativa, mais ela é ortodoxa, mais ama a Deus. 

Amor de Deus que pode também ser manifestado defendendo a legitimidade da Inquisição, a legitimidade das guerras santas, a legitimidade da polêmica, que o irenismo tanto quer negar. 

Sempre que se dá ao erro a possibilidade de se alastrar, está-se apoiando uma perseguição à verdade. Sempre que se dá ao mal a liberdade, apoia-se uma perseguição ao bem. Porque está na índole do erro de ser contagioso. Depois do pecado original, o homem tem uma apetência de erro. O filósofo espanhol Donoso Cortés (1809-1853) dizia que o milagre da Igreja não consistiu em se impor à aceitação dos homens por ser boa e santa, mas apesar de ser boa e santa. Isto porque os homens têm uma enorme atração pelo erro e pelo mal. Se deixamos o erro e o mal livres, nós permitiremos que eles dominem os homens. Portanto, não há pior tirania e crueldade do que advogar a liberdade para o erro e para o mal. 

Nobreza da cavalaria que combate o erro e o mal 

O que é mais importante: defender almas ou defender corpos? Evidentemente é defender almas. Dom Prosper Guéranger (1805-1875) comenta muito bem: o que fazia o cavaleiro andante? Ia de um lado para o outro para defender as viúvas, os órfãos e os fracos. Ora, todos os homens, em consequência do pecado original, têm maus pendores e estão expostos ao erro. De maneira que toda a nobreza de uma cavalaria andante em nossos tempos dever-se-ia concentrar naqueles que combatem o erro e o mal denodadamente. 

Nos presentes dias, essas reflexões são muito oportunas. Outrora tínhamos a combatividade da Ordem Dominicana, mas hoje, para exemplificar com o Brasil, temos frades do convento dos dominicanos (em São Paulo) que rejeitam aquela combatividade do fundador que foi São Domingos. Constatamos então a enorme decadência das melhores instituições em nosso século. 

O pior mal de nosso tempo não consiste em que os comunistas sejam o que são e que tenham o poder que têm. Mas que aqueles — como no caso dos dominicanos — que deveriam combater o comunismo sejam o que são e adotem as posições erradas, como a doutrina igualitária comunista. O que diria São Domingos se ressuscitasse e aparecesse diante de seus pobres filhos espirituais hoje! 

Vem a propósito rezar e fazer atos de reparação ao Fundador dos Dominicanos por toda a ofensa que essa deformação de sua admirável Ordem sofre em tantas partes, e pedir que ele nos defenda de seus filhos que tenham se transviado. 

O começo da misericórdia é a ameaça da justiça 

São Domingos e Simão de Montfort
(vitral da igreja dos dominicanos em Washington, D.C.)
– Foto de Frei Lawrence Lee, O.P.
Primeiramente, todas as medidas tomadas por São Domingos contra os albigenses tinham se manifestado baldas. E a heresia tinha manifestado uma resistência que sobrepujava todos seus esforços, apesar de ter operado grandes prodígios. 

O santo compreendeu então que, se não obtivesse novas graças de Deus, não haveria conversão, não haveria vitória. Ele, muito aflito pela dor da Igreja, se isolou e passou três dias e três noites em oração, jejuns e penitência. Nossa Senhora teve pena e falou com ele, ensinando-lhe a devoção do santo rosário e incentivando-o a divulgar essa devoção a fim de obter as conversões desejadas. 

São Luís Grignion de Montfort comenta — no já citado livro O Admirável Segredo do Rosário — que São Domingos foi para Toulouse, então capital da heresia albigense, faz uma pregação na igreja, há manifestações da cólera de Deus e de Nossa Senhora ameaçando com castigos. Ou seja, a cólera materna. Enquanto alguém é grato pelo menos à sua mãe, tudo vai bem. Mas se ouvirmos dizer que a mãe dele o detesta e lhe tem horror, nós dizemos então que para ele tudo acabou. 

Devido à apatia daquele povo, que não se convertia, Nossa Senhora manifestou a cólera de modo sublime. Mas depois veio a manifestação d’Ela enquanto “Arca da Aliança” — a manifestação de sua misericórdia. A violência da cólera e o temor preparam as almas para receber a misericórdia. E o começo da misericórdia é a ameaça da justiça, de tal maneira a justiça e a misericórdia se ligam. 

Como afirma o Livro do Eclesiástico, “O temor do Senhor é o início da sabedoria” (Ecle. 1,16). A maior das misericórdias é a sabedoria, mas ela começa pelo temor; o temor é o primeiro passo para o amor; o temor nos desliga das coisas a que estamos apegados e que nos impede de amar a Deus. Na narrativa de São Luís Grignion, nota-se que esse maravilhoso favor de misericórdia de Nossa Senhora foi o rosário. 

Admirável equilíbrio da Igreja no agir: a palavra e a espada 

São Domingos de Gusmão foi uma pessoa sobre a qual a Providência velou com um zelo muito especial, desde antes de seu nascimento. Quando ele estava para nascer, sua mãe teve uma visão de um cachorrinho andando e levando na boca uma tocha. Era exatamente o prenúncio do filho que haveria de ser como um cão, símbolo da fidelidade, levando na boca uma tocha que era o símbolo do ardor, do zelo por Deus, pela Igreja na luta contra seus inimigos. 

Ele foi um excelente pregador, dotado de lógica e virtude extraordinárias, que arrebatava todas as almas retas. Formou a Ordem Dominicana. Logo que fundada, essa ordem religiosa começou a atrair tanta gente para si, que não pôde receber todos os interessados. Ele formou uma Ordem Segunda para mulheres e uma Ordem Terceira só para receber os leigos que desejavam entrar para a Ordem de São Domingos. 

Mas, de outro lado, os hereges albigenses não se rendiam e começaram a discutir com ele, a debicar, a fim de ridicularizá-lo. Sofreu agressões e até mesmo tentaram matá-lo. Assim, o santo suscitou uma verdadeira cruzada contra os hereges, tão exitosa que em pouco tempo levou os albigenses de roldão. Foi uma cruzada de pregadores dominicanos, mas que também contou com o auxílio de senhores feudais do centro e do norte da França, bem como com a força dos soldados de Simon de Montfort, que invadiu o sul dominado pelos albigenses e desmantelou suas fortalezas. 

Devemos admirar tanto a mansidão quanto a coragem dos dominicanos daquele tempo, que empregaram as armas da persuasão pela palavra. Mas como os hereges — não tendo como replicar aos argumentos — passaram para a agressão física, chegou o momento da força. Os frades dominicanos se manifestaram como cruzados na extirpação daquela heresia irredutível. Caso contrário, ela poderia do sul da França expandir-se e tomar conta de todo o país, rompendo a unidade da Europa — como três séculos depois aconteceu com a heresia luterana que dilacerou o Ocidente. 

Imaginem que, se atacada, a Igreja não tivesse se defendido... O erro teria penetrado em toda a França e contagiado outras nações. Houve tempo de falar e outro de lutar. Primeiro uma luta pela palavra — a tentativa de converter os hereges — depois uma luta utilizando a força. Cada etapa em seu tempo, segundo as normas da moral católica. E deu resultado! 

É esse o admirável equilíbrio de todas as coisas que são verdadeiramente da Igreja. É esse o equilíbrio dos santos, de que a Igreja nos dá provas em todas as vidas dos santos. E é esse o equilíbrio que nós devemos admirar. Nada de moleza e covardia diante do adversário. Nada também de exacerbação. Tudo realizado com conta, peso e medida. 
Campanha da TFP contra a Reforma Agrária socialista e confiscatória no centro de São Paulo.

TFP — Uma analogia com fatos históricos 

Termino esta exposição com uma analogia histórica com as circunstâncias do nosso tempo. Os membros da TFP[1] percorrem as ruas de todas as cidades do Brasil, apresentam a doutrina católica e dão os argumentos com lógica e seriedade. Toda abordagem é feita com cortesia. Os transeuntes veem a beleza artística de nossas campanhas com as belas capas e estandartes rubro-áureos. O que acontece? 

Nessas campanhas — por exemplo, contra a implantação no Brasil da reforma agrária socialista e confiscatória — os adversários não refutam nossos argumentos por meios lógicos. O que fazem? Usam a arma do debique, caçoando de nossas campanhas. Nós refutamos com o contra-debique. Eles partem para a agressão física, como ocorreu em algumas cidades. Nosso contra-ataque não poderia ser outro: a defesa pessoal, reagindo varonilmente às agressões. Agimos com toda prudência, mas com toda valentia que as circunstâncias exigirem. Tudo segundo os princípios da doutrina católica. É o estilo TFP de agir. 

Aliás, a respeito escrevi um artigo publicado na Folha de S. Paulo,[2] intitulado “Estilo”, no qual mostrei que é notório aos olhos de todos que os jovens da TFP — quer em atividades de propaganda, quer no trato da vida quotidiana — primam pela cortesia. Mas, se agredidos, eles sabem se defender com energia. No final do artigo, escrevi sobre a linha de conduta da TFP: “Um estilo de viver, de agir, e de lutar, que é a versão, em termos contemporâneos, do espírito do cavalheiro cristão de outrora. No idealismo, ardor. No trato, cortesia. Na ação, devotamento sem limites. Na presença do adversário, circunspeção. Na luta, altaneria e coragem. E, pela coragem, vitória”. 
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Nossa Senhora fez de São Domingos de Gusmão o apóstolo do rosário, o fundador da Ordem dos Pregadores Dominicanos e da Inquisição, e, por excelência, um extirpador das heresias. Sua vida é um verdadeiro poema da luta contra os hereges. Ensinando o rosário e praticando a virtude da austeridade católica, trouxe de volta à Igreja incontáveis almas. Peçamos a ele uma alma ardente na defesa da fé, um horror a todas as heresias e uma ardente devoção ao santo rosário. 
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Notas: 
1. A TFP — Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade — foi fundada por Plinio Corrêa de Oliveira em 1960. Para conhecer mais a respeito, recomendamos o livro Um homem, uma obra, uma gesta, disponível no site: https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Gesta_0000Indice.htm#.YPjzGOhKjIU 
2. https://www.pliniocorreadeoliveira.info/FSP%2069-09-24%20Estilo.htm

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