Neste mês a Santa
Igreja celebra 110 anos do trânsito de São Pio X ao Céu, ocorrido em 20 de
agosto de 1914. O único Papa canonizado no século XX, ele combateu
intrepidamente a heresia modernista, reformou o clero, recodificou o Direito
Canônico e incrementou admiravelmente a piedade católica.
✅ Plinio Maria
Solimeo
Quando
faleceu Leão XIII, em 1903, a expectativa geral era quem manobraria o leme de
Pedro naqueles tempos já tão conturbados.
O mundo
estava febrilmente contagiado pelo liberalismo anticlerical, um dos perniciosos
frutos da Revolução Francesa que tornavam tensas as relações entre a Sé
Apostólica e várias nações europeias. A revolução industrial, por sua vez,
criava situações propícias à propaganda
dos princípios marxistas da luta de classes e do anarquismo no meio proletário
nascente.
A situação
era crítica inclusive nas nações católicas. Na Itália, um governo usurpador e
violento privara o Romano Pontífice de seus Estados, confinando-o ao Vaticano,
e criava empecilhos à ação da Igreja.
Na França, uma oligarquia maçônica –– cujos expoentes eram Briand, Clemenceau,
Waldeck-Rousseau e Combes –– impôs a aprovação de diversas leis frontalmente
antirreligiosas, preparando terreno para a separação entre a Igreja e o Estado
em 1905.
Portugal
via-se às voltas com a fermentação revolucionária que culminaria no assassinato
do rei Dom Manuel e do Príncipe herdeiro em 1908, e com a proclamação da
República dois anos depois. Sem falar de uma série de medidas contra a Igreja,
como a expulsão dos jesuítas, a supressão de congregações religiosas e a
aprovação do divórcio.
Também na
outrora fiel e católica Espanha os ventos liberais e anarquistas sopravam com
violência, chegando-se à tentativa de
assassinar o rei Afonso XIII no próprio dia de suas bodas. E o império
Austro-Húngaro apresentava tantos sintomas de decadência religiosa e moral, que
a todo instante se temia sua ruína.
Não menos
trágica para Igreja e a civilização cristã era a situação no maior bloco
católico do universo, a América Latina, onde as jovens nações emulavam em
impiedade com suas maiores europeias.
No Brasil, a
célebre “Questão Religiosa” conseguira
levar à barra dos tribunais e condenar
à prisão perpétua com trabalhos forçados o intrépido bispo de Olinda, Dom Vital
Maria Gonçalves de Oliveira. No Equador, líderes católicos são perseguidos e
forçados a exilar-se. No México, as nuvens da tormenta revolucionária já se acumulavam
no horizonte para pouco depois se desencadearem numa das mais cruéis e
implacáveis perseguições religiosas conhecidas pelo mundo moderno.
Sobretudo,
no próprio interior da Igreja a situação era grave. Erros filosóficos muito em
voga, como o naturalismo, o racionalismo e o cientificismo, ao par de forte
liberalismo, influenciavam extensamente a teologia e deturpavam a fé, ao mesmo
tempo que esfriavam nas almas o amor de Deus.
Tais erros
haviam penetrado a fundo em amplas camadas do Clero, em estabelecimentos de
ensino, mesmo em seminários, criando um espírito de novidade e de revolta
crescente que ameaçava fazer soçobrar a Barca de Pedro, não tivesse ela a
promessa da perenidade.
Para fazer
face a esse terrível panorama, tornava-se necessário o advento de um Papa que
se colocasse entre os maiores da História da Igreja. Por obra do Divino
Espírito Santo, que não abandona a Sua Esposa Mística, e a rogos de Maria, o
mundo teve o Pontífice de que necessitava: Giuseppe Sarto, Patriarca de Veneza,
eleito com o nome de Pio X.
Entrada do Monsenhor Giuseppe Sarto em Veneza como Patriarca (24-11-1894). |
Suave...
mas forte
Quem era Pio
X, o novo Papa de cuja bondade e doçura tanto se falava em Veneza, de onde
viera como Cardeal-Patriarca? Um “conciliador”, pensava o Governo italiano,
entendendo por essa designação um homem fraco, pronto a entrar em acordo com a
Revolução. Entretanto, a famosa bênção Urbi
et Orbi, o primeiro ato do Pontífice, foi dada de um dos balcões internos
da Basílica de São Pedro para ratificar o protesto de seus antecessores contra
a tomada de Roma pelas tropas revolucionárias.
Um “cura
rural”, não habituado às pompas do Vaticano nem ao trato com os grandes,
pensavam os embaixadores e enviados de potências estrangeiras. Não foi a
impressão que Pio X deixou após a primeira audiência geral, quando o
representante da Prússia, exprimindo o pensamento dos demais diplomatas,
perguntou a Mons. Merry del Val, Secretário de Estado interino, ao sair da Sala
do Trono: “Diga-nos, Monsenhor, o que há nesse homem que tanto atrai? Um Santo
–– dirá esse eclesiástico, posteriormente elevado a Cardeal, que teria um
papel tão importante nesse Pontificado ––, porque
ele é um homem de Deus”.(1)
Para o Abbé
de Cigala, capelão do Conclave, “a força
dos traços e a doçura do olhar, frutos de uma vida interior e fé” ardentes,
faziam crer “numa ressurreição do imortal
Pio IX”.(2) Mas, esclarece o Cardeal Mercier, Arcebispo de Malinas, na
Bélgica: “A invencível gentileza do Santo
Padre nada tinha do sentimentalismo dos fracos: Pio X era um forte”(3)
Isso o
reconheceu também o ex-chanceler do Império alemão, o Príncipe Von Bülow, conta
ao Cardeal Merry del Val, após uma entrevista: “Eu me encontrei com muitos monarcas e legisladores, mas raramente
encontrei em algum deles uma tão remarcável percepção da natureza humana ou um
conhecimento como o que Sua Santidade
possui das forças que governam o mundo e a sociedade moderna”(4). E, realmente, proclamará muito depois
Pio XII que, “com seu olhar de águia mais
perspicaz e mais seguro que a curta vista dos míopes raciocinadores, via o mundo tal qual era, via a missão da Igreja
no mundo[...] e seu dever no seio de uma sociedade descristianizada [...] contaminada pelos erros do tempo e pela
perversidade do século”.(5)
“Restaurar
tudo em Cristo”
O Pontificado de São Pio X pode ser sintetizado no roteiro por ele traçado em sua Encíclica-Programa: “Restaurar tudo em Cristo”. |
O
Pontificado de São Pio X pode ser sintetizado no roteiro por ele traçado em sua
Encíclica-Programa: “Restaurar tudo em
Cristo”. Essa preocupação o Pontífice já a tivera quando era Bispo de
Mântua. Depois, como Cardeal de Veneza, sua primeira Carta Pastoral continha,
em linhas gerais, o pensamento da Encíclica.
Em síntese,
diz São Pio X que a apostasia do mundo, “essa
detestável e monstruosa iniquidade [...] pela qual o homem se
substitui a Deus”, manifesta uma tal “perversão
dos espíritos”, que é de se perguntar se já não se deu o advento do “filho da perversão”. Pois o modo com
que “se lança ao ataque da religião, se
investe contra os dogmas da fé, se tende obstinadamente a aniquilar toda
relação do homem com a Divindade” é uma das características do Anticristo.
Para haver
uma restauração, os bons devem “proclamar
bem alto as verdades ensinadas pela Igreja sobre a santidade do matrimônio, a
educação da infância, a posse e uso dos bens temporais, sobre os deveres dos
que administram a coisa pública”. Ora, se não houver verdadeiros
sacerdotes, “revestidos de Cristo”,
isso não será possível. Portanto, deve-se proceder a uma reforma dos seminários
e vigiar para que os novos sacerdotes não se deixem seduzir “pelas manobras insidiosas de uma certa
ciência nova”.
“No dia em que, em cada cidade, em cada aldeia, a
lei do Senhor for cuidadosamente guardada [...] nada mais faltará para que
contemplemos a restauração de todas as coisas em Cristo”. Com isso, mesmo “os interesses temporais e a prosperidade
pública” também felizmente se ressentirão.(8) E ter-se-á na terra a “paz de Cristo, no Reino de Cristo”.
Não cabe
analisar aqui o pontificado de São Pio X para constatar como ele seguiu à risca
este programa. Só o que foi publicado de Cartas Apostólicas, Motu Proprio, Encíclicas, e discursos,
ultrapassa a casa dos 350. Se a isso se somam os decretos das Congregações
romanas e os diversos documentos emanados da Secretaria de Estado, aos quais o
Papa não podia ser estranho, chega-se ao número de 3322(9), o que torna esses
onze anos de pontificado um dos mais fecundos da História da Igreja.(10)
Basta pensar
no trabalho monumental de recodificação do Direito Canônico, que durou todo o
Pontificado de São Pio X, sendo promulgado só no de Bento XV; na fundação do
Instituto Bíblico; na reforma da Cúria Romana; na instituição da Acta Apostolicae Sedis, noticiário oficial do Vaticano; na
reforma do Breviário Romano; em normas dadas para a disciplina e reforma do Clero,
além de todas as medidas para facilitar a comunhão frequente dos fiéis,
antecipar a Primeira Comunhão das crianças, regulamentar a comunhão dos
enfermos, elaborar adequadamente o catecismo, orientar o cântico litúrgico etc.
O
modernismo
Ao condenar o movimento Sillon –– em muitos pontos precursor do atual progressismo –– afirma São Pio X que ele “semeia [...] noções erradas e funestas [...] Para ele, toda desigualdade de condição é uma injustiça ou, pelo menos, uma justiça menor! Princípio soberanamente contrário à natureza das coisas, gerador de inveja e de injustiça, subversivo de toda ordem social”.(11)
Entretanto,
foi a seita modernista infiltrada na Igreja –– qualificada por ele de “síntese de todas as heresias” –– a que mais o fez sofrer e mais
preocupações lhe trouxe, por sua profunda nocividade e subtileza. Além de
numerosos atos, três importantes documentos emanaram de São Pio X para
condená-la: o Decreto Lamentabili sane
exitu, de 4 de julho de 1907, que condena 65 proposições modernistas; a
Encíclica Pascendi dominici gregis, de
8 de setembro do mesmo ano, na qual condena diretamente o modernismo –– a mais
longa de seu pontificado, devido à delicadeza da matéria; e, finalmente, o Motu Proprio Praestantia Scripturae sacrae, de
18 de novembro do mesmo ano.
São Pio X,
elevado à honra dos altares por Pio XII em 1954, seja junto à Virgem Santíssima
e a seu Divino Filho o grande intercessor de todos os católicos que lutam em
nossos dias para permanecerem fiéis à Santa Igreja e à sua verdadeira doutrina.
O Santo
Pontífice, que soube tão bem desmascarar e condenar o modernismo, certamente
obterá abundantes graças para os fiéis de nossa época, muito pior do que a
época daquela heresia. Sim, a trágica era em que vivemos, na qual, segundo
expressões de Paulo VI, tem curso um misterioso processo de “autodemolição da Igreja”, tendo nela
penetrado a “fumaça de Satanás”.
____________
NOTAS:
1. Cardeal Merry del Val, Memories of Pope Pius X, Burns Oates & Washbourne Ltd.,
Londres, 1939, pp. 9-10.
2. Abbé de Cigala, Vie Intime de Sa Saintité le Pape Pie X,
Lethielleux Editeurs, Paris, 1926, p. IX.
3. Lettre Pastorale et Mandement de Câreme de 1915, apud Merry del Val, op. cit, p. 29.
4. Merry del Val, op. cit, p. 12.
5. Breve por ocasião da Beatificação de Pio X,
Documentos Pontifícios, n° 83, Vozes,
1958,2ª edição.
6. Documents relatifs au mouvement cathólique italien sous le pontificat de St. Pie X, apud
Gianpaolo Romanato, Pio X: Profilo Storico, in Sulle Orme di Pio X,
Amministrazione Comunale di Salzano, 1986, p. 19.
7. Doc. cit, apud Merry del Val, op. cit, p. 27.
8. Encíclica E supremi Apostolatus, Vozes, Petrópolis, Documentos Pontifícios, nº 87, 1958,2ª edição.
9. René Bazin, da
Academia Francesa, Pie X, Flammarion,
Editeur, Paris, 1928, p. 65.
10. D. Benedetto Pierami, apud René Bazin, op. cit, p. 66.
11.
Notre Charge Apostolique (Sobre os erros do Sillon), Vozes, Petrópolis, Doc.
Pontifícios, nº 53, 1953,2ª edição.
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