26 de dezembro de 2023

A VIDA DOS PASTORES DE BELÉM

 

Adoração dos Pastores – Guido Reni (1575–1642). National Gallery, Londres

Quantos eram? Como se chamavam? O que foi feito deles? Quando morreram? Onde estariam enterrados? Eis como transcorreu sua maravilhosa vida após o grande prodígio de Belém.

 ✅  Luis Dufaur

São Lucas descreve uma das notas particularmente suaves e doces da abençoada noite em que nasceu o Salvador. Ela provém dos pastores que moravam nas proximidades da Gruta de Belém e foram adorá-Lo, embebidos de admiração, humildade e nobre encanto [quadro no final].

São Lucas registra onde estavam, o que faziam, a aparição inicial do Anjo, a incorporação dos coros angélicos, seu cântico, a reação dos pastores, a adoração e, depois, seu retorno narrando a todos a maravilha que tinham contemplado, glorificando e louvando a Deus.

O anunciador não foi outro senão o Arcanjo São Gabriel. O embaixador divino para a Encarnação sem dúvida era o mais indicado para dar a conhecer o nascimento do Verbo de Deus Encarnado. Ao embaixador celeste se uniram coros de anjos que entoaram a primeira e mais maravilhosa canção de Natal.

Os santos pastores de Belém

Porém, depois desse comovedor relato, o silêncio caiu sobre os santos pastores. Quantos eram? Como se chamavam? O que foi feito deles? Quando morreram? Onde estariam enterrados?

Nós os reencontramos em todo presépio natalino, representados segundo a imaginação dos fiéis, mas muito pouco ou nada nos é ensinado a seu respeito. Entretanto, após o grande prodígio de Belém, eles tiveram uma vida maravilhosa, da qual pouco se fala.

O historiador M. Ghattas Jahshan, em seu livro Estrada de Natal,[i] conta que a um quilômetro e meio a leste de Belém, há uma colina com grutas naturais rodeadas de pinheiros, oliveiras e ciprestes. Ali, Santa Paula, fundadora de dois mosteiros em Belém, e São Jerônimo, Doutor da Igreja, que morou e morreu nas proximidades da mesma cidade, onde traduziu a Bíblia Vulgata em latim, no século IV, viram os restos da Torre do Rebanho (Turris Ader, em latim), levantada sobre a moradia dos pastores, segundo recolheu o site ArtePesebre.[ii]

Hoje, no mesmo local há outra igreja, erigida em 1954 sob o patrocínio dos religiosos franciscanos, custódios da Terra Santa, conhecida como Campo dos Pastores [foto ao lado]. Essa foi construída sobre os restos de um antigo mosteiro, feito, por sua vez, sobre una primitiva igreja ampliada pelo imperador Justiniano no século VI.

Abaixo da igreja do Campo dos Pastores está a gruta que servia também de moradia aos pobres guardiães de ovelhas, que ali refugiavam seus rebanhos durante a noite, para protegê-los das intempéries. Ela hoje pode ser visitada pelos peregrinos na Terra Santa.

Por volta do ano 670, o bispo Frances Arculfus deixou registrada a existência de uma igreja dos tempos de Constantino, junto à Torre do Rebanho, que continha os três túmulos dos pastores.

Torna-se assim historicamente incontestável que os pastores foram três, que seus jazigos eram tidos como local santo já nos primeiros séculos, e que lhes foram atribuídos, como veremos, muitos milagres.

Nas pinturas e esculturas mais tradicionais nas igrejas, eles costumam ser representados nesse número, como nos afrescos da igreja do Campo dos Pastores. Um é adolescente, outro é idoso e, por fim, o terceiro é um adulto de meia idade que toca uma flauta.

Igreja do Campo dos Pastores está a gruta que servia também de moradia aos pobres guardiães de ovelhas.


Como chegaram à Espanha?

Por volta do ano 960, cavaleiros que participaram na tentativa de defender Jerusalém levaram os corpos dos três santos pastores a Ledesma, província de Salamanca, na Espanha. Eles previam que a invasão islâmica os punha em perigo, pois a fúria anticristã estava tomando conta de toda a Terra Santa.

A urna trazida da Torre do Rebanho passou por Fuenterrabia (ou Hondarribia em basco), em Guipúzcoa, onde ficou uma arca pequena de mármore branco vazia, com três compartimentos que teriam sido sepulcro provisório dos três pastores de Belém. Ela teria sido trazida do local no Oriente onde eles foram enterrados originalmente.

O arqueólogo C. Guarmani localizou-a em Belém e doou-a, no final do século XIX, a Antonio Bernal de O’Reilly, cônsul-geral de Síria e Palestina. Este, por sua vez, a doou à igreja de Hondarribia. O erudito historiador Remigio Hernández Morán assegura que ela guardou inicialmente os restos dos pastores, segundo noticiou La Gaceta de Salamanca.[iii]

Casa dos pastores, em Belém
Segundo Hernández Morán, “nos quatro ou cinco séculos seguintes houve silêncio a respeito dos restos dos pastores após a chegada a Ledesma, por causa da Reconquista”. O perigo mouro com sua onda de crimes e profanações rondava essa região central de Espanha.

“Como medida de precaução ante um possível furto ou profanação por parte dos árabes, decidiram ocultá-los”, explicou.


Anos mais tarde, uma vez afastados os invasores islâmicos, decidiu-se recuperar os restos e erigir uma nova igreja, que seria dedicada a São Pedro e Santiago, para nela venerá-los. Porém, perdera-se a lembrança do local exato onde estavam. Mas a construção continuou, e eis que, trabalhando a terra para estabelecer os fundamentos, apareceram intactas as preciosas relíquias dos pastores.

Reconhecimentos oficiais

A partir desse dia, a história das relíquias dos santos pastores registra inúmeros milagres, sobretudo um, muito grande, concedido à região de Ledesma. Esta padecia de uma grande seca, até que, em 25 de maio de 1164, foi aberta a arca das relíquias dos santos pastores. Após serem feitas as rogativas prescritas, em poucas horas caiu uma chuva que durou cinco dias.

O professor Hernández Morán descobriu, nos arquivos vaticanos, um Breve do Papa Inocêncio XI, de julho de 1677, concedendo Indulgencia Plenária, cumpridas as condições de piedade, “à Confraria reunida sob a invocação dos Santos Jacob, Isacio e Josefo, canonicamente erigida e fundada na igreja paroquial de São Pedro da vila de Ledesma, diocese de Salamanca” em vários dias do ano, especialmente no primeiro domingo depois da Epifania de Nosso Senhor Jesus Cristo e nas festas de Natal. O Breve pontifício foi emitido na basílica de Santa Maria Maggiore, em Roma, informou o jornal local Heraldo – Diario de Soria.[iv]

Por fim, as relíquias foram depositadas na igreja dedicada a São Pedro e São Fernando, e o bispo salmantino Andrés Josef del Barco, no mês de julho de 1786, lavrou a ata de “Reconhecimento dos ossos que dizem ser dos pastores que adoraram o Menino Deus em Belém”.

A ata descreve o conteúdo com estas palavras: “Uma cabeça inteira; metade dividida em três partes; quatro ossos grandes de pernas; dez pedaços de caveira; vinte e quatro costelas, e uma mandíbula; quatorze ossos medianos; quinze da coluna; sete pedaços pequenos de costelas; três pedaços pequenos de couro; dois pedaços pequenos que parecem de cortiça de árvore; três pedaços de lenço; uma colher de pau pequena quebrada pelo cabo; um pedacinho de osso envolto num papel pequeno; outro menor envolto noutro papel sem rótulo; um olho, ao que parece, envolto num papelzinho; em outro papel maior, vários pedaços de osso sem rótulo; um pedaço de pau desconhecido; umas tesouras grandes, um papelzinho com a inscrição seguinte ‘Dos gloriosos Josefo, Ysacio e Jacob Pastores de Belém, que mereceram ver e adorar os primeiros a Cristo Deus e homem recém-nascido no Portal’”. Este papel acompanha atualmente os restos contidos na arca.

O historiador Méndez Silva, no século XVII, confirma o número, os nomes deles, e acrescenta que os três morreram virgens num dia 25 de dezembro, 40 anos depois daquela divina noite de Natal.

Em 1864, seus restos foram trasladados para a atual igreja de São Pedro e São Fernando, no bairro de Los Mesones. Porém, a poeira do esquecimento foi caindo sobre ela e seu tesouro, devido à perda generalizada de interesse da religiosidade popular e o menosprezo racionalista pelas relíquias, contra as quais alega falta de autenticidade.

A arca ficou bem guardada, mas sua lembrança voltou a se perder até 1965, quando durante a restauração da igreja se achou, sob o altar-mor dedicado a São Pedro, o tesouro esquecido, todo de madeira forrado de pele de ovelha e carneiro e primorosamente adornado.

Quando foi aberta, apareceram restos humanos com a ‘autêntica’ que dizia: “Os gloriosos Josefo, Isacio e Jacob, pastores de Belém que mereceram ser os primeiros que viram e adoraram a Cristo, Deus e Homem recém-nascido no Portal”, a qual ainda pode ser lida pelos devotos nos dias de exposição.

Nenhuma outra localidade reivindica a posse de restos relacionados com os Pastores de Belém, caso frequente com algumas outras relíquias. Fato que reforça a certeza de que elas são incontestáveis.

O Pe. Casimiro Muñoz, que foi pároco da localidade, atendeu com amabilidade os jornalistas de ArtePesebre, satisfez toda a sua curiosidade, e respondeu a tudo o que se referia aos Pastores de Belém, fornecendo-lhes toda a informação verbal e escrita solicitada.

Na vigília da Santa Noite de Natal os sinos da basílica romana de Santa Maria Maggiore reboam com intervalos de 10 minutos, em memória do remotíssimo costume dos pastores de comunicar aos colegas mais afastados de toda a região o anúncio angélico, avisando com qualquer instrumento ruidoso que tinham ao seu alcance.

Os fiéis de Ledesma veneram a urna aberta dos Santos Josefo, Isacio e Jacob, e em toda a Terra os católicos seguem seu santo exemplo em todos os presépios de igrejas e casas de família.

As relíquias dos três pastores estão depositadas na igreja dedicada a São Pedro e São Fernando, na cidade de Ledesma, Espanha.


Pastores e Reis

A este respeito, comenta Plinio Corrêa de Oliveira: “O anúncio aos pastores foi diferente ao feito aos Reis Magos, que o receberam de um modo místico e silencioso.

“Dom Guéranger, grande teólogo, observa que a dignidade dos Reis era maior que a dos pastores, mas estes foram os primeiros a chegar com anúncio angélico. Eles pertenciam ao povo eleito, enquanto os Reis que chegaram depois representavam os povos gentios.

“O anúncio foi feito aos pastores pelos anjos e aos Magos por uma estrela e comunicações místicas silenciosas. Dom Guéranger defende que vale muito mais a pena crer assim do que por um milagre externo pela palavra de Nosso Senhor. Tomé, tu creste porque viste, bem aventurados os que não viram mas creram.”

A paz prometida aos pastores em 2023

Os fiéis de Ledesma veneram a urna aberta dos Santos Josefo, Isacio e Jacob

Encerramos fazendo uma adaptação de comentários do Prof. Plinio:

O ano se extingue num caos generalizado, como o ano passado, mas com uma potencialidade de confusão e de risco ainda maior em todos os países do Ocidente e do Oriente e na própria Igreja Católica.

É a ocasião de implorarmos a efetivação do cântico angélico que os pastores ouviram no primeiro Natal: Glória a Deus no mais alto dos céus, e paz na terra aos homens de boa vontade.


Mas não uma paz e tranquilidade qualquer. Há a paz dos cemitérios, na sua imobilidade, tristeza e silêncio: não é essa. Só há paz genuína nas igrejas onde se professa na sua integridade a doutrina católica, apostólica, romana, onde o rito se faz em inteira harmonia com o culto e o dogma católico. Mas quantas são?

Onde encontraremos na Terra a paz que Nosso Senhor Jesus Cristo quis trazer ao mundo? Infelizmente, em poucos lugares. Encontramo-la no celestial Presépio em que, na manjedoura, o Rei da paz recebe com amor criaturas humildes, não só os pastores, mas até seus animais.

Os santos pastores foram soldados da paz e da ordem, enquanto a Terra gemia na revolta e na desgraça da desordem suprema, fingindo festa e alegria, espalhando o falso anúncio de que se vai para um ano melhor.

A paz de Cristo no Reino de Cristo implica a luta pela ordem contra a desordem, como quando no Céu São Miguel Arcanjo e os Anjos da fidelidade enxotaram Satanás e os anjos da infidelidade, indignos de permanecerem nas mansões celestiais e de continuarem hoje a enfumaçar a Igreja Católica.[v]

 

Ledesma na atualidade


“Havia nos arredores uns pastores, que vigiavam e guardavam seu rebanho nos campos durante as vigílias da noite.

Um anjo do Senhor apareceu-lhes e a glória do Senhor refulgiu ao redor deles, e tiveram grande temor.

O anjo disse-lhes: Não temais, eis que vos anuncio uma boa nova que será alegria para todo o povo: ‘hoje vos nasceu na Cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo Senhor.

Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura’.

E subitamente ao anjo se juntou uma multidão do exército celeste, que louvava a Deus e dizia:

‘Glória a Deus no mais alto dos céus e na terra paz aos homens, objetos da benevolência (divina)’.

Depois que os anjos os deixaram e voltaram para o céu, falaram os pastores uns com os outros: Vamos até Belém e vejamos o que se realizou e o que o Senhor nos manifestou.

Foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o menino deitado na manjedoura.

Vendo-o, contaram o que se lhes havia dito a respeito deste menino.

Todos os que os ouviam admiravam-se das coisas que lhes contavam os pastores.

Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração.

Voltaram os pastores, glorificando e louvando a Deus por tudo o que tinham ouvido e visto, e que estava de acordo com o que lhes fora dito” (Lc 2, 8-20).

 


NOTAS:
Fonte: Revista Catolicismo, Nº 876, Dezembro/2023.

[i]) GHATTAS JAHSHAN, M.: Ruta de la Navidad. Ed. Iepala, Madrid 1990; MARTÍN MARTÍN, J. L. y MARTÍN PUENTE, S.: Historia de Ledesma. Ed. Diputación de Salamanca, 2008, pp. 151-158.

[ii]) https://encurtador.com.br/hjxBQ

[iii]) https://encurtador.com.br/noxD1

[iv]) https://encurtador.com.br/rsQ02

[v]) Adaptação de uma mensagem de Natal feita por Plinio Corrêa de Oliveira em 18-12-92, e de sua palestra em 6-1-66. Transcrições não revistas pelo autor.

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