✅ Padre David Francisquini
Pergunta
— Gostaria de saber qual é a origem da Via
Sacra que se reza nas igrejas durante a Semana Santa e por que em algumas
estações são lembrados episódios que não figuram nos Evangelhos, como o da
Verônica, o encontro de Jesus com sua Mãe e as três quedas de Jesus na Via Sacra.
Resposta
— Segundo
a tradição dos religiosos da Ordem Franciscana, guardiães dos Lugares Santos desde
1342, Nossa Senhora teria sido a primeira a fazer o piedoso exercício de
percorrer o caminho seguido por Nosso Senhor Jesus Cristo do pretório de
Pilatos até o Calvário e depois até o Sepulcro, rememorando os episódios da
Paixão. De acordo com revelações da mística Soror Maria de Ágreda, a Mãe do
Salvador teria percorrido esse trajeto, no sentido inverso, já na Sexta-Feira
Santa, depois de depositar o Corpo de seu Divino Filho no túmulo de José de
Arimateia e antes de se recolher no Cenáculo. Mas não há provas históricas
sustentando essa bela tradição.

Essa carência de documentação é tanto mais explicável
quanto poucos anos depois se desencadeou a primeira perseguição contra a
emergente comunidade cristã, originando uma primeira dispersão daqueles que
tinham visto os fatos em primeira mão. Algumas décadas mais tarde, como Nosso
Senhor havia profetizado, a cidade de Jerusalém foi destruída pelos romanos, em
represália pela rebelião dos zelotes. Foi somente após o fim das hostilidades
que alguns sobreviventes retornaram à cidade e se pôde novamente restabelecer
uma comunidade cristã, a qual provavelmente retomou discretamente as antigas
tradições, por tratar-se ainda de uma minoria mal vista.
Tradição de percorrer os Lugares Santos
Isso
mudou com a ascensão de Constantino, convertido ao cristianismo, ao trono
imperial, e de Teodósio, que elevou o cristianismo à condição de religião
oficial do Império. Houve então um bom número de cristãos que foi a Jerusalém
por devoção ou estudo, como é o caso de São Jerônimo (350-420). Em uma de suas
cartas, ele alude à presença de visitantes na cidade e insta seus
correspondentes, Desidério e sua irmã Serenila, a não se atrasarem na visita “dos santos lugares”, pois “constitui uma parte da fé ter venerado o
lugar onde estiveram os pés do Senhor, e ter visto os vestígios de seu recente
nascimento e da sua cruz e paixão” (Epistola 47 ad Desiderium: Patrologia Latina, XXII, 493).

Outro testemunho interessante é o de Silvia Etéria,
que visitou Jerusalém a partir de meados do ano 381, quando era bispo São
Cirilo. Ela conta que, na Sexta-Feira Santa, antes de nascer o sol, os cristãos
se reuniam no lugar em que Jesus fora flagelado, conforme outros tinham
repetido. Levantava-se uma cruz, segurada pelo bispo e osculada por todos,
enquanto se recitavam salmos e se liam as profecias e a Paixão segundo São
João.
Esses exercícios piedosos dos primeiros cristãos na Terra
Santa se viram dificultados ou até impedidos após a invasão muçulmana da
Palestina em 637. Mas foram retomados com a vitória dos cruzados e, assim,
vários viajantes que visitaram a Terra Santa nos séculos XII, XIII e XIV,
mencionam uma Via Sacra (Caminho da
Cruz ou Via Crucis) — uma rota
estabelecida pela qual os peregrinos eram conduzidos pelos habitantes locais.
Mas não há nada em seus relatos que identifique essa curta peregrinação pelos
lugares ligados com a Paixão de Nosso Senhor com a Via Sacra como a praticamos atualmente.
“Viagem
espiritual” seguindo os passos de Jesus
Com o retorno desses peregrinos à Europa, aumentou no
povo a devoção pela Paixão. Para alimentá-la junto aos impossibilitados de irem
à Terra Santa, começaram a ser construídas pequenas capelas contendo representações
pintadas ou esculpidas dos principais episódios. Pode ter servido de inspiração
para essas coleções de capelas o fato de, já no século V, São Petrônio, bispo
de Bolonha, ter construído no mosteiro de Santo Estêvão um grupo de capelas
conectadas representando os santuários mais importantes de Jerusalém.
Durante os séculos XV e XVI, várias reproduções dos
lugares sagrados foram montadas em diferentes partes da Europa. O Beato Álvarez
(falecido em 1420), em seu retorno da Terra Santa, construiu uma série de
pequenas capelas no convento dominicano de Córdoba, nas quais, seguindo o
padrão de capelas separadas, foram pintadas as principais cenas da Paixão. Mais
ou menos na mesma época, a Beata Eustóquia, religiosa clarissa, construiu em
seu convento de Messina um conjunto semelhante de reproduções. Outras
instalações semelhantes que se podem enumerar foram as de Görlitz, erguidas por
volta de 1465, e as de Nuremberg, em 1468.
O
fato de as pessoas terem de percorrer sucessivamente as cenas requeria delas o
deslocamento de um lugar para outro, resultando na introdução imperceptível do aspecto
processional. Isso levava a intercalar marchas, paradas, orações e cantos. O aspecto
espiritual estava sendo desenvolvido paralelamente. Por exemplo, já no século
XIV o Beato Henrique de Suso preconizava uma espécie de viagem espiritual (portanto,
sem deslocamento físico), por meio de uma série de meditações para recordar certos
momentos do ocorrido na Paixão.
Estímulos para incrementar a prática da Via Sacra
O uso mais antigo da palavra Estações (do latim
stare, “estar ou permanecer de pé, fazendo uma parada ao longo do caminho”),
aplicada aos costumeiros lugares de parada na Via Sacra em Jerusalém, ocorreu no relato de um peregrino inglês,
William Wey, que visitou sucessivamente a Terra Santa em 1458 e em 1462, e que
descreveu como era usual seguir os passos de Cristo em Sua dolorosa jornada.
Dependendo do guia ou do relato (ou texto) seguido, as
propostas podiam ir de sete a 18 paradas, embora a mais habitual fosse de doze
estações. No início do século XVI, Jean van Paesschen foi o primeiro a falar de
14 paradas ou estações, mas nem todas correspondem àquelas que conhecemos hoje.
O livro Jerusalem
sicut Christi tempore floruit, escrito por Christiaan van Adrichem (†1585)
ou Adrichomius e publicado em 1584, menciona 12 estações, as quais correspondem
exatamente às 12 primeiras das nossas conhecidas Vias Sacras. Este fato leva alguns a concluir que essa é a origem
da seleção autorizada posteriormente pela Igreja, sobretudo pelo fato de esse livro
ter tido uma ampla circulação, sendo traduzido para várias línguas europeias. Não
há certeza se foi assim ou não, pois até então nada estava definido e cada um organizava
à sua maneira esses atos de piedade.
Houve uma evolução rumo a uma forma cada vez mais
comum, até se chegar a uma espécie de reformulação das variantes anteriores. É
quase certo que tal unificação não ocorreu em Jerusalém, porque depois da
dominação turca não era mais permitido percorrer a
Via Sacra detendo-se nos lugares tradicionais e dando ali alguma demonstração
externa de veneração. A unificação deve ter acontecido na Espanha, no decorrer
do século XVII, onde acabou tomando a forma em que a devoção chegou aos nossos
dias.
A confirmação papal dessa prática de piedade veio na
forma de indulgências, especialmente no século XVIII. Os franciscanos haviam
solicitado indulgências para estimular essa devoção nas suas igrejas. Em 1694,
o Papa Inocêncio XII confirmou algumas dessas indulgências para os franciscanos
e os filiados à sua Ordem terceira. Um quarto de século depois, em 1726, Bento
XIII estendeu os privilégios a todos os fiéis, ainda que não vinculados aos
franciscanos. Posteriormente, em 1731, Clemente XII alargou-a ainda mais,
concedendo indulgências a todas as igrejas, com a condição de que as figuras ou
representações que marcassem as estações no interior do templo fossem sempre
abençoadas por um religioso franciscano com a aprovação do bispo. Tais
indicações foram confirmadas e avaliadas por Bento XIV em 1742.

Esta decisão de impor certas condições — seja às
representações, em madeira na forma de cruz, que podiam ser acompanhadas de
quadros pintados ou esculpidos nos quais se apresentava a cena evocada, seja à
sequência delas, localizadas a certa distância uma da outra, para poder-se beneficiar
das indulgências estipuladas — foi o que fixou definitivamente em 14 o número
de estações, dispostas numa ordem precisa, desde a condenação de Jesus à morte
até o Sepultamento.
“Porque pela
vossa santa Cruz remiste o mundo”
Desde então surgiram inúmeros livrinhos com uma
resenha de cada Estação. O conteúdo de tais formulários era extremamente
variado: imprecações dolorosas, meditações, orações e até poesias. Muitos dos
que foram impressos na Espanha incluíam a oração, seguida da jaculatória
“Nós Vos adoramos, ó Cristo, e Vos bendizemos,
porque pela vossa santa Cruz remiste o mundo”, datada do século XVI e recomendada
aos fiéis para o momento de entrarem na igreja ou de passarem diante de uma
cruz.*
No século XVIII, dois grandes santos, ambos italianos,
promoveram a devoção da Via Sacra: São Leonardo de Porto Maurício (1676-1751),
franciscano, que a difundiu em suas missões, sermões e folhetos de piedade, e Santo
Afonso Maria de Ligório (1696-1787), seu contemporâneo, fundador dos
Redentoristas, instituto religioso que propagou a prática do Caminho da Cruz sobretudo nas missões
populares.
Com relação aos episódios da Paixão de que se compõe a
atual série de Estações, cumpre notar que muito poucos relatos medievais fazem
menção à segunda (Jesus abraça a Cruz), ou à décima (Jesus é despido de suas
vestes), enquanto outros, que foram abandonados (como o
Ecce Homo, antes da condenação), aparecem em quase todas as suas listas
iniciais, o que leva a confirmar a suposição de que nossas atuais estações são
derivadas de manuais de devoção e não da prática da Via Sacra em Jerusalém.
As três quedas, não mencionadas nos Evangelhos, podem
ter derivado das representações feitas em Nuremberg, no fim do século XV. Consistiam
em sete estações, popularmente conhecidas como “as sete quedas”, porque em cada
uma delas Cristo era representado ora como realmente prostrado, ora caindo sob
o peso da Cruz. Já seus imitadores colocaram Nosso Senhor em pé, nos encontros
com a Santíssima Virgem, a Verônica, o Simão de Cirene e as mulheres de
Jerusalém, e em apenas três cenas representam-No prostrado.
De qualquer forma, Christiaan van Adrichem
(Adrichomius), que em seu já citado livro
Jerusalem
sicut Christi tempore floruit tentou uma reconstituição acadêmica da Via Crucis, incorporou as 12 primeiras estações atuais, incluindo as três
quedas, no seu respectivo lugar. Seu livro foi traduzido em muitas línguas e
contribuiu muito para divulgar a Via
Sacra em toda a Igreja latina.
Devoção à relíquia do Véu de Verônica
Mais enigmático é o caso da Verônica. Segundo uma
antiga tradição da Igreja, que não consta nos relatos evangélicos, uma mulher
se comoveu ao ver Jesus carregando a cruz rumo ao Calvário e enxugou seu rosto
com um véu, no qual ter-se-ia milagrosamente fixado sua imagem. A relíquia
resultante, conhecida como o Véu de
Verônica, teria sido levada a Roma.
No reinado do Papa João VII (705-708) construiu-se na
antiga Basílica de São Pedro uma capela chamada Verônica, e a primeira menção
ao véu data de 1011, com referência à nomeação de um guardião do tecido. No
século XIII, o
Véu da Verônica passou
a ser exibido, especialmente durante uma procissão anual entre a basílica e o
vizinho hospital do Santo Espírito. Em 1300 Bonifácio VIII inaugurou um
primeiro jubileu da relíquia, a qual passou a figurar entre as mirabilia urbis (as maravilhas da
cidade) para os peregrinos que visitavam Roma.
Depois do saque de Roma, em 1527, o precioso véu
desapareceu. Na década de 1990, o sacerdote jesuíta Heinrich Pfeiffer levantou
a hipótese de que se trata do mesmo véu venerado desde o século XVII num
convento capuchinho de Manoppello, o qual possui uma semelhança impressionante
com o rosto do Santo Sudário de Turim, só que em positivo, ao contrário desse
último. Porém, essa imagem não teria sido
impressa durante o percurso de Nosso Senhor até o Calvário, mas tratar-se-ia do
véu visto por São João ao entrar no Sepulcro logo depois da Ressurreição.
Seja como for, a ligação do relato da Paixão com o
aparecimento miraculoso do rosto de Cristo no
Véu de Verônica foi feita pela primeira vez na Bíblia em francês de
Roger d'Argenteuil, no século XIII, e ganhou popularidade após as Meditações sobre a Vida de Cristo, livro
que ficou internacionalmente conhecido em torno do ano 1300, quando o retorno
dos cruzados havia popularizado a devoção pela Paixão e os primeiros embriões da
Via Sacra.
O discípulo, com sua própria cruz, deve seguir o
Mestre
Para concluir, convém ter presente que a Via Sacra é fruto da piedade dos fiéis e
da religiosidade popular, como a veneração das relíquias, as visitas aos
santuários, as peregrinações e procissões, o rosário ou as medalhas religiosas.
Eis o que diz a respeito o Diretório sobre piedade popular e liturgia,
publicado pela Congregação para o Culto Divino em 2002:
“Entre os exercícios de piedade com que os
fiéis veneram a Paixão do Senhor, poucos são tão estimados como a Via Sacra. Por
meio deste exercício de piedade, os fiéis percorrem, participando com seu
afeto, o último trecho do caminho percorrido por Jesus durante sua vida terrena
[...].
“A Via Sacra é um caminho traçado pelo
Espírito Santo, fogo divino que ardia no peito de Cristo (cf. Lc 12, 49-50) e o
impelia ao Calvário; é um caminho amado pela Igreja, que conservou a memória
viva das palavras e dos acontecimentos dos últimos dias de seu Esposo e Senhor.
“Várias expressões características da
espiritualidade cristã confluem também no exercício da piedade na Via Crucis: a
compreensão da vida como caminho ou peregrinação; como passagem, pelo mistério
da Cruz, do exílio terrestre à pátria celeste; o desejo de se conformar
profundamente à Paixão de Cristo; as exigências da sequela Christi,
segundo a qual o discípulo deve caminhar atrás do Mestre, carregando a sua
própria cruz todos os dias” (cf. Lc 9, 23)” (n° 131 e 133).
O exercício da
Via
Sacra é particularmente adequado no tempo da Quaresma, mas convém
praticá-lo com frequência ao longo do ano, especialmente nas sextas-feiras,
quando relembramos especialmente a Paixão do Senhor. E é particularmente
frutuoso quando os fiéis, ao percorrerem as estações, se unem às dores do
Coração Imaculado de Maria e ao oferecimento que Ela fazia ao Pai Eterno das
afrontas feitas ao seu Divino Filho, pedindo pela conversão dos pecadores.
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* A
segunda Via Sacra de autoria de Plinio Corrêa de Oliveira foi publicada
integralmente na edição de Catolicismo de março de 1951. Seu texto encontra-se
à disposição dos leitores no seguinte link: https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0003/P04-05.html
** Fotos das 14 estações da Via Sacra: Luis Dufaur