23 de abril de 2023

2023 — Ano Jubilar de Santa Teresinha, marco na espiritualidade católica


Fonte: Editorial da e Revista Catolicismo, Nº 868, Abril/2023

Nascida Thérèse Martin, Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada Face (1873-1897) é o tema principal da edição deste mês de Catolicismo [capa acima]. Escolhido porque 2023 foi declarado “Ano Jubilar” dessa veneradíssima santa carmelita de Lisieux. 

Celebramos em janeiro último os 150 anos de seu nascimento e neste mês comemoramos os 100 anos de sua beatificação, solenemente proclamada pelo Papa Pio XI na Basílica de São Pedro em 29 de abril de 1923. Apenas dois anos depois esse mesmo Pontífice a canonizou, fato que provocou uma explosão de alegria no mundo inteiro. 

Efemérides tão chamativas que a própria Unesco — insuspeita pois é uma organização laica e pagã — se viu obrigada a prestar homenagem à monumental santa francesa. Esse organismo da ONU, certamente contra sua vontade, teve que inseri-la na listagem (com apenas 60 nomes) de aniversários de grandes personalidades no biênio 2022-2023. 

Santa Teresinha tem um excepcional vínculo com o Brasil e é uma das santas mais populares em todos os países, como se poderá ver na entrevista com um especialista na biografia e na obra teresiana (p. 26). Por exemplo, os Manuscritos Autobiográficos de Santa Teresinha encontram-se entre os best-sellers da espiritualidade cristã. O que nos faz recordar um dito brilhante do literato francês do séc. XIX, Victor Hugo: “Só há uma fama verdadeiramente imortal: é a dos santos da Santa Igreja Católica”. 

A imortal santa, que desde criança aspirava a uma alta santidade, é autora da chamada “Pequena Via” (escola de espiritualidade mais apropriada às gerações de nossos dias e um meio seguro de salvação), pela qual ela atrai legiões de devotos em todo o Orbe. 

Uma vez que estamos no seu “Ano Jubilar”, é ocasião propícia para que Santa Teresinha conceda graças especiais aos seus devotos. Para obtê-las, basta rezar e pedir! É também ocasião propícia para ler e/ou reler seus magníficos escritos. De nossa parte, pedimos a ela que a presente matéria de capa seja motivo de abundantes graças para os nossos leitores.

17 de abril de 2023

Decadência gastronômica em viagens aéreas

Numa das antigas propagandas da Varig (acima) lemos: … e assim se sucedem os deliciosos pratos que Você saboreia a bordo de um Boeing 707 da Varig. Escolha, no variado menu do "dîner à la carte", as iguarias que mais lhe agradam, beba o seu vinho preferido, peça o licor, o whisky ou o cocktail de sua predileção.


A decadência das refeições nos voos é assustadora. Alimentos massificados ou um snack agravam a debacle no nível de vida. 

Há poucas décadas, elas eram servidas com talheres de prata, copos de vidro e louças de porcelana. 

O cardápio à la carte podia incluir ostras, coquetel de caranguejo, lagosta, presunto serrano, champanhe e outros requintes. 

A Pan Am introduziu pratos quentes, anotando os pedidos e servindo-os num local especial da aeronave. 


A Air France optou pela gastronomia francesa, com caviar Beluga, vinhos exclusivos e champanhe. 

A Lufthansa oferecia cerveja de barril. Com a classe econômica, o nível abaixou. 

Surgiram talheres descartáveis e comidas digeríveis às pressas. A Ryanair desceu mais rumo ao miserabilismo; em lugar de refeições oferece lanches.

11 de abril de 2023

VENI CREATOR SPIRITUS

“Vinde, Espírito Criador, visitai as almas dos vossos, enchei de graça celestial, os corações que criastes”

Esta é a primeira estrofe de um hino do século IX, cantado normalmente em latim no modo gregoriano. 

Nesse belíssimo hino são mencionados os sete dons do Espírito Santo, “Tu septiformis munere” (“Com os vossos sete dons), que Ele pode nos conceder. 

São eles: sabedoria, entendimento, conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor de Deus. Disse o Profeta Isaías: “Repousará o espírito do Senhor, espírito de sabedoria e de entendimento, espírito de conselho e fortaleza, espírito de ciência e de piedade; e será cheio do espírito de temor ao Senhor” (Is 11,2). 

Segue a sua versão original em latim e a tradução ao nosso idioma.


VENI CREATOR SPIRITUS

Veni Creátor Spíritus,

Mentes tuórum vísita:

Imple supérna grátia

Quae tu creásti péctora.

 

Qui díceris Paráclitus,

Altíssimi donum Déi,

Fons vivus, ignis, cáritas,

Et spiritális únctio.

 

Tu septifórmis múnere,

Dígitus patérnae déxterae,

Tu rite promíssum Pátris,

Sermóne dictans gúttura.

 

Accénde lumen sénsibus,

infúnde amórem córdibus,

Infírma nóstri córporis

Virtúte fírmans pérpeti.

 

Hostem repéllas lóngius,

Pacémque dónes prótinus:

Ductóre sic te praévio,

Vitémus omne noxium.

 

Per te sciámus da Pátrem,

Noscámus atque Fílium.

Téque utriúsque Spíritum

Credámus omni témpore.

 

Déo Pátri sit glória,

Et Fílio, qui a mórtuis

Surréxit, ac Paráclito,

in saeculórum saécula.

Amen.

 

V. Emítte Spíritum túum, et creabúntur.

R. Et renovábis fáciem térrae.

 

Oremus: Déus qui corda fidélium Sáncti Spíritus illustratióne docuísti, da nóbis in eódem Spíritu recta sápere, et de ejus semper consolatióne gaudére. Per Chrístum Dóminum nóstrum. Amen.

 


 Vinde, Espírito Criador,

visitai as almas dos vossos,
enchei de graça celestial,
os corações que criastes.

 

Sois o Divino Consolador,
o dom do Deus Altíssimo,
fonte viva, o fogo, a caridade,
a unção espiritual.

 

Com os vossos sete dons,
sois o dedo da direita de Deus,
Solene promessa do Pai,
Inspirando nossas palavras.

 

Acendei a luz nos sentidos;
infundi o amor nos corações,
amparai na constante virtude
a nossa carne enfraquecida.

 

Afastai para longe o inimigo,
Trazei-nos prontamente a paz;
Assim guiados por Vós,
Evitaremos todo o mal.


Por Vós explicar-se-á o Pai,
E conheceremos o Filho;
Dai-nos crer sempre em Vós
Espírito do Pai e do Filho.


Glória ao Pai, Senhor,
Ao Filho ressuscitado
Assim como ao Consolador.
Por todos os séculos. Amém.

 


V/
Enviai, Senhor, o vosso espírito e tudo será criado.
R/ E renovareis a face da Terra.

 

Oremos: Ó Deus, que instruístes os corações dos fiéis com as luzes do Espírito Santo, dai-nos, pelo mesmo Espírito, procurar o que é reto, e nos alegrarmos sempre com seu consolo. Por Jesus Cristo Nosso Senhor. Amém.

7 de abril de 2023

A CRUCIFIXÃO ESCULPIDA PELO GÊNIO DE ALEIJADINHO


Na sexta capela dos Passos da Paixão em Congonhas do Campo (MG), lê-se "Ao lugar chamado calvário, onde O crucificaram, e com Ele outros dois, um de cada lado" (Jo 19, 17-18). 

Esse "Passo da Paixão", composto por 11 esculturas da lavra de Aleijadinho (séc. XVIII), representa Jesus Cristo sendo pregado na Cruz. No centro, Santa Maria Madalena ajoelhada numa atitude suplicante. À esquerda, soldados jogam dados disputando a túnica do Redentor. À direira, os dois ladrões, Dimas e Gestas, amarrados, esperam serem presos em suas cruzes. 

Aleijadinho esculpiu o bom ladrão de pé numa atitude resignada, enquanto o mau ladrão enfurecido tenta se desvencilhar das cordas que amarram suas mãos às costas.

6 de abril de 2023

CRUCIFIXÃO DE JESUS


  Plinio Corrêa de Oliveira 

Essa pintura de Giotto* representa muito bem o episódio pungente que veneramos no Rosário, precisamente no quinto mistério doloroso: “Crucifixio et mors Domini Nostri Jesu Christi” (Crucifixão e morte de Nosso Senhor Jesus Cristo). 

Notem que Nosso Senhor crucificado está com o corpo lívido, parecendo que já emitiu ou está por emitir seu último suspiro. 

Junto à Cruz estão algumas das santas mulheres. Santa Maria Madalena oscula os pés do Divino Redentor. No centro desse grupo de três pessoas, à direita de Jesus, encontra-se Nossa Senhora, vestida com túnica azul. Nesse mesmo grupo, vemos São João Evangelista amparando-A. 

A pintura revela o quanto a Santíssima Virgem foi atingida pela dor, mas está de pé. Quer dizer, com força e com determinação para tudo. Ela foi concebida sem pecado original, portanto, por perfeito amor a Deus, foi capaz de frear em alguma medida a sua própria dor para se sustentar vendo seu Divino Filho sendo crucificado. Assim mesmo, manteve-se de pé o tempo inteiro. 

Do lado esquerdo da Cruz, à frente, vemos os soldados romanos que disputam a túnica inconsútil do Salvador Crucificado. Aparece também Longino, segurando a lança com a qual ele feriu o lado de Jesus. Ao fundo, percebe-se a multidão que assistia os acontecimentos. 

No Céu estão os anjos cantando a glória de Nosso Senhor, mas anjos invisíveis aos olhos dos homens. Entre estes, apenas a dor e a vergonha. 

Esta é a pintura da Paixão de Jesus — a crucifixão e morte — segundo Giotto. Para mim, uma das obras-primas da piedade católica. 

____________ 

* Afresco Crucifixão de Jesus, pintado pelo artista italiano da época medieval, Giotto di Bondone (1267-1337), na Capela degli Scrovegni, Pádua (Itália), entre 1304 e 1306. 

**Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 30 de novembro de 1988. Esta transcrição não passou pela revisão do autor.

5 de abril de 2023

CRISTO FLAGELADO COM ÓDIO


  Plinio Corrêa de Oliveira 

Dizer que essa representação de Cristo flagelado é bela, seria dizer pouco. Muito mais do que isso, ela é impressionante. E de molde a despertar muito a piedade. 

À primeira vista, quando me foi apresentado esse quadro fiquei chocado, porque as feridas do corpo sagrado de Nosso Senhor estão apresentadas com tal realismo, que o instinto de conservação do homem clama vendo a cena; tem a tendência a fugir e achar que não é arte representar de modo tão terrificante. O que é de nossa parte um primeiro impulso, mas que deve ser dominado, porque o contrário seria uma ingratidão. 

Tal será que Nosso Senhor Jesus Cristo, tendo sofrido tudo o que padeceu por nós, não queiramos sequer olhar para seu corpo chagado porque pode nos desagradar. É uma ingratidão e uma falta de respeito sem nome. Como um primeiro impulso se compreende. É uma reação quase física. Mas seria ingratidão consentir nesse impulso. 

Compreende-se então que o escultor tenha chegado a esculpir de modo tão terrivelmente realista essa imagem. 

Primeiramente, analisando o quadro, cheguei à conclusão de que deveria ser uma escultura espanhola em madeira. Com aquele realismo das imagens espanholas sobre a Paixão de Jesus. Depois soube que é uma imagem do Canadá. 


Para que se tenha ideia do que foi a flagelação de Nosso Senhor, como está representada nessa imagem, é preciso compreender todo o significado das chagas terríveis que apresenta, bem como da coroação de espinhos. 

Os verdugos que flagelaram Jesus eram malfeitores, bandidos, que foram levados para exercer essa função. De onde um verdadeiro furor dessa gente péssima, com aquele gosto sádico de fazer o mal que caracteriza esse tipo de pessoas. Homens embebedados, que já tinham flagelado vários condenados, estavam no delírio de seu ódio quando Nosso Senhor lhes caiu nas mãos. Ocorre que gente muito infeliz com frequência tem ódio de quem é normal e feliz. Assim, eles se desafogam do seu triste estado. 

____________ 

Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 10 de fevereiro de 1976. Esta transcrição não passou pela revisão do autor.

2 de abril de 2023

QUAL FOI O CRIME DE PILATOS?

Não seremos nós outros tantos Pilatos? 


✅  Plinio Corrêa de Oliveira 

Pilatos passou à História, indelevelmente marcado pelo ferro em brasa da censura dos Evangelistas, como o tipo característico do homem que não é cruel por medo da crueldade, não é assassino por indolência, e não é feroz por inércia. Escravo da preguiça e do medo, cede a todas as infâmias, submete-se a todas as baixezas, pela força da inércia que é como que a base de sua mentalidade. 

E a mesma indolência que o preserva dos acessos coléricos de um Nero, atira-o às traições vis de um Judas, ou às transigências abomináveis de um ser indigno do nome de homem, de uma alma indigna da própria carne que ela vivifica. 

Qual foi o crime de Pilatos? Foi o de ter sido fraco. Não foi ele autor de uma condenação categórica, como a de Herodes. Mas sua culpa nem por isso foi menor. Porque o pecado não está somente em não atacar a Jesus. Está também em não O defender. Está também em não ter a coragem de O preservar, de O resguardar contra o ódio das multidões. Está na covardia de não lutar. 

Descendo agora ao terreno de nossas consciências, este terreno onde somente dois olhares penetram, o de Deus e o nosso, perguntemo-nos desassombradamente: não seremos nós outros tantos Pilatos? 

Confessar, comungar, pedir a Deus inúmeras graças, na sua maioria temporais, dinheiro, saúde, felicidade, e também um pouco de virtude, como uma gorjeta que se faz a Deus, isto tudo não é possuir na sua plenitude o espírito cristão, todo feito de luta e de sacrifício. 

Ser cristão não é só ser um crente, é ser também um soldado. É saber descer à arena da luta de opiniões, ostentando com firmeza nossos princípios. É não ter medo de adquirir inimizades, se for necessário. É não ter medo de atrair sobre si antipatias. É, em suma, sacrificar-se. (“O Legionário”, Nº 74, 8-2-1931).

1 de abril de 2023

Poderia explicar a origem da Via Sacra que se reza na Semana Santa?


✅  Padre David Francisquini

Pergunta — Gostaria de saber qual é a origem da Via Sacra que se reza nas igrejas durante a Semana Santa e por que em algumas estações são lembrados episódios que não figuram nos Evangelhos, como o da Verônica, o encontro de Jesus com sua Mãe e as três quedas de Jesus na Via Sacra.


Resposta — Segundo a tradição dos religiosos da Ordem Franciscana, guardiães dos Lugares Santos desde 1342, Nossa Senhora teria sido a primeira a fazer o piedoso exercício de percorrer o caminho seguido por Nosso Senhor Jesus Cristo do pretório de Pilatos até o Calvário e depois até o Sepulcro, rememorando os episódios da Paixão. De acordo com revelações da mística Soror Maria de Ágreda, a Mãe do Salvador teria percorrido esse trajeto, no sentido inverso, já na Sexta-Feira Santa, depois de depositar o Corpo de seu Divino Filho no túmulo de José de Arimateia e antes de se recolher no Cenáculo. Mas não há provas históricas sustentando essa bela tradição.


Essa carência de documentação é tanto mais explicável quanto poucos anos depois se desencadeou a primeira perseguição contra a emergente comunidade cristã, originando uma primeira dispersão daqueles que tinham visto os fatos em primeira mão. Algumas décadas mais tarde, como Nosso Senhor havia profetizado, a cidade de Jerusalém foi destruída pelos romanos, em represália pela rebelião dos zelotes. Foi somente após o fim das hostilidades que alguns sobreviventes retornaram à cidade e se pôde novamente restabelecer uma comunidade cristã, a qual provavelmente retomou discretamente as antigas tradições, por tratar-se ainda de uma minoria mal vista.

Tradição de percorrer os Lugares Santos

Isso mudou com a ascensão de Constantino, convertido ao cristianismo, ao trono imperial, e de Teodósio, que elevou o cristianismo à condição de religião oficial do Império. Houve então um bom número de cristãos que foi a Jerusalém por devoção ou estudo, como é o caso de São Jerônimo (350-420). Em uma de suas cartas, ele alude à presença de visitantes na cidade e insta seus correspondentes, Desidério e sua irmã Serenila, a não se atrasarem na visita “dos santos lugares”, pois “constitui uma parte da fé ter venerado o lugar onde estiveram os pés do Senhor, e ter visto os vestígios de seu recente nascimento e da sua cruz e paixão” (Epistola 47 ad Desiderium: Patrologia Latina, XXII, 493). 

Outro testemunho interessante é o de Silvia Etéria, que visitou Jerusalém a partir de meados do ano 381, quando era bispo São Cirilo. Ela conta que, na Sexta-Feira Santa, antes de nascer o sol, os cristãos se reuniam no lugar em que Jesus fora flagelado, conforme outros tinham repetido. Levantava-se uma cruz, segurada pelo bispo e osculada por todos, enquanto se recitavam salmos e se liam as profecias e a Paixão segundo São João.

Esses exercícios piedosos dos primeiros cristãos na Terra Santa se viram dificultados ou até impedidos após a invasão muçulmana da Palestina em 637. Mas foram retomados com a vitória dos cruzados e, assim, vários viajantes que visitaram a Terra Santa nos séculos XII, XIII e XIV, mencionam uma Via Sacra (Caminho da Cruz ou Via Crucis) — uma rota estabelecida pela qual os peregrinos eram conduzidos pelos habitantes locais. Mas não há nada em seus relatos que identifique essa curta peregrinação pelos lugares ligados com a Paixão de Nosso Senhor com a Via Sacra como a praticamos atualmente.

“Viagem espiritual” seguindo os passos de Jesus

Com o retorno desses peregrinos à Europa, aumentou no povo a devoção pela Paixão. Para alimentá-la junto aos impossibilitados de irem à Terra Santa, começaram a ser construídas pequenas capelas contendo representações pintadas ou esculpidas dos principais episódios. Pode ter servido de inspiração para essas coleções de capelas o fato de, já no século V, São Petrônio, bispo de Bolonha, ter construído no mosteiro de Santo Estêvão um grupo de capelas conectadas representando os santuários mais importantes de Jerusalém.

Durante os séculos XV e XVI, várias reproduções dos lugares sagrados foram montadas em diferentes partes da Europa. O Beato Álvarez (falecido em 1420), em seu retorno da Terra Santa, construiu uma série de pequenas capelas no convento dominicano de Córdoba, nas quais, seguindo o padrão de capelas separadas, foram pintadas as principais cenas da Paixão. Mais ou menos na mesma época, a Beata Eustóquia, religiosa clarissa, construiu em seu convento de Messina um conjunto semelhante de reproduções. Outras instalações semelhantes que se podem enumerar foram as de Görlitz, erguidas por volta de 1465, e as de Nuremberg, em 1468.

O fato de as pessoas terem de percorrer sucessivamente as cenas requeria delas o deslocamento de um lugar para outro, resultando na introdução imperceptível do aspecto processional. Isso levava a intercalar marchas, paradas, orações e cantos. O aspecto espiritual estava sendo desenvolvido paralelamente. Por exemplo, já no século XIV o Beato Henrique de Suso preconizava uma espécie de viagem espiritual (portanto, sem deslocamento físico), por meio de uma série de meditações para recordar certos momentos do ocorrido na Paixão. 

Estímulos para incrementar a prática da Via Sacra

O uso mais antigo da palavra Estações (do latim stare, “estar ou permanecer de pé, fazendo uma parada ao longo do caminho”), aplicada aos costumeiros lugares de parada na Via Sacra em Jerusalém, ocorreu no relato de um peregrino inglês, William Wey, que visitou sucessivamente a Terra Santa em 1458 e em 1462, e que descreveu como era usual seguir os passos de Cristo em Sua dolorosa jornada.

Dependendo do guia ou do relato (ou texto) seguido, as propostas podiam ir de sete a 18 paradas, embora a mais habitual fosse de doze estações. No início do século XVI, Jean van Paesschen foi o primeiro a falar de 14 paradas ou estações, mas nem todas correspondem àquelas que conhecemos hoje.

O livro Jerusalem sicut Christi tempore floruit, escrito por Christiaan van Adrichem (†1585) ou Adrichomius e publicado em 1584, menciona 12 estações, as quais correspondem exatamente às 12 primeiras das nossas conhecidas Vias Sacras. Este fato leva alguns a concluir que essa é a origem da seleção autorizada posteriormente pela Igreja, sobretudo pelo fato de esse livro ter tido uma ampla circulação, sendo traduzido para várias línguas europeias. Não há certeza se foi assim ou não, pois até então nada estava definido e cada um organizava à sua maneira esses atos de piedade.

Houve uma evolução rumo a uma forma cada vez mais comum, até se chegar a uma espécie de reformulação das variantes anteriores. É quase certo que tal unificação não ocorreu em Jerusalém, porque depois da dominação turca não era mais permitido percorrer a Via Sacra detendo-se nos lugares tradicionais e dando ali alguma demonstração externa de veneração. A unificação deve ter acontecido na Espanha, no decorrer do século XVII, onde acabou tomando a forma em que a devoção chegou aos nossos dias.

A confirmação papal dessa prática de piedade veio na forma de indulgências, especialmente no século XVIII. Os franciscanos haviam solicitado indulgências para estimular essa devoção nas suas igrejas. Em 1694, o Papa Inocêncio XII confirmou algumas dessas indulgências para os franciscanos e os filiados à sua Ordem terceira. Um quarto de século depois, em 1726, Bento XIII estendeu os privilégios a todos os fiéis, ainda que não vinculados aos franciscanos. Posteriormente, em 1731, Clemente XII alargou-a ainda mais, concedendo indulgências a todas as igrejas, com a condição de que as figuras ou representações que marcassem as estações no interior do templo fossem sempre abençoadas por um religioso franciscano com a aprovação do bispo. Tais indicações foram confirmadas e avaliadas por Bento XIV em 1742.

Esta decisão de impor certas condições — seja às representações, em madeira na forma de cruz, que podiam ser acompanhadas de quadros pintados ou esculpidos nos quais se apresentava a cena evocada, seja à sequência delas, localizadas a certa distância uma da outra, para poder-se beneficiar das indulgências estipuladas — foi o que fixou definitivamente em 14 o número de estações, dispostas numa ordem precisa, desde a condenação de Jesus à morte até o Sepultamento.

“Porque pela vossa santa Cruz remiste o mundo”

Desde então surgiram inúmeros livrinhos com uma resenha de cada Estação. O conteúdo de tais formulários era extremamente variado: imprecações dolorosas, meditações, orações e até poesias. Muitos dos que foram impressos na Espanha incluíam a oração, seguida da jaculatória “Nós Vos adoramos, ó Cristo, e Vos bendizemos, porque pela vossa santa Cruz remiste o mundo”, datada do século XVI e recomendada aos fiéis para o momento de entrarem na igreja ou de passarem diante de uma cruz.*

No século XVIII, dois grandes santos, ambos italianos, promoveram a devoção da Via Sacra: São Leonardo de Porto Maurício (1676-1751), franciscano, que a difundiu em suas missões, sermões e folhetos de piedade, e Santo Afonso Maria de Ligório (1696-1787), seu contemporâneo, fundador dos Redentoristas, instituto religioso que propagou a prática do Caminho da Cruz sobretudo nas missões populares.

Com relação aos episódios da Paixão de que se compõe a atual série de Estações, cumpre notar que muito poucos relatos medievais fazem menção à segunda (Jesus abraça a Cruz), ou à décima (Jesus é despido de suas vestes), enquanto outros, que foram abandonados (como o Ecce Homo, antes da condenação), aparecem em quase todas as suas listas iniciais, o que leva a confirmar a suposição de que nossas atuais estações são derivadas de manuais de devoção e não da prática da Via Sacra em Jerusalém.

As três quedas, não mencionadas nos Evangelhos, podem ter derivado das representações feitas em Nuremberg, no fim do século XV. Consistiam em sete estações, popularmente conhecidas como “as sete quedas”, porque em cada uma delas Cristo era representado ora como realmente prostrado, ora caindo sob o peso da Cruz. Já seus imitadores colocaram Nosso Senhor em pé, nos encontros com a Santíssima Virgem, a Verônica, o Simão de Cirene e as mulheres de Jerusalém, e em apenas três cenas representam-No prostrado.

De qualquer forma, Christiaan van Adrichem (Adrichomius), que em seu já citado livro Jerusalem sicut Christi tempore floruit tentou uma reconstituição acadêmica da Via Crucis, incorporou as 12 primeiras estações atuais, incluindo as três quedas, no seu respectivo lugar. Seu livro foi traduzido em muitas línguas e contribuiu muito para divulgar a Via Sacra em toda a Igreja latina.

Devoção à relíquia do Véu de Verônica

Mais enigmático é o caso da Verônica. Segundo uma antiga tradição da Igreja, que não consta nos relatos evangélicos, uma mulher se comoveu ao ver Jesus carregando a cruz rumo ao Calvário e enxugou seu rosto com um véu, no qual ter-se-ia milagrosamente fixado sua imagem. A relíquia resultante, conhecida como o Véu de Verônica, teria sido levada a Roma.

No reinado do Papa João VII (705-708) construiu-se na antiga Basílica de São Pedro uma capela chamada Verônica, e a primeira menção ao véu data de 1011, com referência à nomeação de um guardião do tecido. No século XIII, o Véu da Verônica passou a ser exibido, especialmente durante uma procissão anual entre a basílica e o vizinho hospital do Santo Espírito. Em 1300 Bonifácio VIII inaugurou um primeiro jubileu da relíquia, a qual passou a figurar entre as mirabilia urbis (as maravilhas da cidade) para os peregrinos que visitavam Roma.

Depois do saque de Roma, em 1527, o precioso véu desapareceu. Na década de 1990, o sacerdote jesuíta Heinrich Pfeiffer levantou a hipótese de que se trata do mesmo véu venerado desde o século XVII num convento capuchinho de Manoppello, o qual possui uma semelhança impressionante com o rosto do Santo Sudário de Turim, só que em positivo, ao contrário desse último. Porém, essa imagem não teria sido impressa durante o percurso de Nosso Senhor até o Calvário, mas tratar-se-ia do véu visto por São João ao entrar no Sepulcro logo depois da Ressurreição.

Seja como for, a ligação do relato da Paixão com o aparecimento miraculoso do rosto de Cristo no Véu de Verônica foi feita pela primeira vez na Bíblia em francês de Roger d'Argenteuil, no século XIII, e ganhou popularidade após as Meditações sobre a Vida de Cristo, livro que ficou internacionalmente conhecido em torno do ano 1300, quando o retorno dos cruzados havia popularizado a devoção pela Paixão e os primeiros embriões da Via Sacra.

O discípulo, com sua própria cruz, deve seguir o Mestre

Para concluir, convém ter presente que a Via Sacra é fruto da piedade dos fiéis e da religiosidade popular, como a veneração das relíquias, as visitas aos santuários, as peregrinações e procissões, o rosário ou as medalhas religiosas. Eis o que diz a respeito o Diretório sobre piedade popular e liturgia, publicado pela Congregação para o Culto Divino em 2002:

“Entre os exercícios de piedade com que os fiéis veneram a Paixão do Senhor, poucos são tão estimados como a Via Sacra. Por meio deste exercício de piedade, os fiéis percorrem, participando com seu afeto, o último trecho do caminho percorrido por Jesus durante sua vida terrena [...].

“A Via Sacra é um caminho traçado pelo Espírito Santo, fogo divino que ardia no peito de Cristo (cf. Lc 12, 49-50) e o impelia ao Calvário; é um caminho amado pela Igreja, que conservou a memória viva das palavras e dos acontecimentos dos últimos dias de seu Esposo e Senhor.

“Várias expressões características da espiritualidade cristã confluem também no exercício da piedade na Via Crucis: a compreensão da vida como caminho ou peregrinação; como passagem, pelo mistério da Cruz, do exílio terrestre à pátria celeste; o desejo de se conformar profundamente à Paixão de Cristo; as exigências da sequela Christi, segundo a qual o discípulo deve caminhar atrás do Mestre, carregando a sua própria cruz todos os dias” (cf. Lc 9, 23)” (n° 131 e 133).

O exercício da Via Sacra é particularmente adequado no tempo da Quaresma, mas convém praticá-lo com frequência ao longo do ano, especialmente nas sextas-feiras, quando relembramos especialmente a Paixão do Senhor. E é particularmente frutuoso quando os fiéis, ao percorrerem as estações, se unem às dores do Coração Imaculado de Maria e ao oferecimento que Ela fazia ao Pai Eterno das afrontas feitas ao seu Divino Filho, pedindo pela conversão dos pecadores.

____________

* A segunda Via Sacra de autoria de Plinio Corrêa de Oliveira foi publicada integralmente na edição de Catolicismo de março de 1951. Seu texto encontra-se à disposição dos leitores no seguinte link: https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0003/P04-05.html

** Fotos das 14 estações da Via Sacra: Luis Dufaur

29 de março de 2023

Não é diabólico ficar obstinado no erro?


R
eproduzo aqui um artigo muito oportuno e esclarecedor do quanto o novo governo petista insiste em tudo aquilo que deu errado em seus 13 anos “governando” o Brasil. “Errar é humano, mas persistir no erro é burrice” (ou petisce...). Inclusive, poder-se-ia dizer que é diabólico ficar obstinado no erro por apego excessivo à uma ideologia falida, ou por “cachaça” — um vício em continuar errando como um turrão. 

O artigo é do jornalista José Roberto Guzzo (colunista em vários periódicos) e foi primeiramente publicado no “O Estado de S. Paulo” de 19 de março de 2023. 

O pró-crime está de volta no governo Lula 

Não existe nenhuma desgraça que oprima tanto e de forma tão direta a população brasileira, sobretudo os mais pobres, quanto o crime. Num país em que o governo diz 24 horas por dia que é “popular”, que cuida dos “menos favorecidos”, etc., etc., essa deveria ser a prioridade das prioridades. Mas o que acontece no mundo das realidades é exatamente o contrário. A noção de “segurança”, para o governo Lula, é fornecer conforto, proteção e apoio aos criminosos, principalmente os que estão nas prisões; é proteger os direitos de quem praticou crimes, e não os direitos de quem sofre diariamente com eles. Num país que teve quase 41 mil assassinatos no ano passado, a preocupação do governo é o bem-estar de quem matou, e não de quem foi morto; defender a vida humana é coisa “de direita”, “fascista” e daí para baixo. 

A última prova desta opção oficial pelos criminosos e pelo crime é a ressurreição do “plano de segurança”, que vigorou no Brasil entre 2007 e 2016 e durante o qual, entre outras calamidades, o número de homicídios aumentou 30%. É um desses casos, medidos numericamente, em que o governo age de maneira concreta em favor do crime. Com a deposição do PT e a eliminação do “plano”, o número de assassinatos começou a cair imediatamente e sem parar até dezembro de 2022; continua sendo um dos mais altos do mundo, mas só nos últimos cinco anos foram 18 mil homicídios a menos, ou 18 mil vidas salvas. Lula anuncia, agora, a retomada do projeto que deu errado — errado para o povo brasileiro, e certo para os criminosos. Suas taras são perfeitamente conhecidas. Soltar gente que está presa, para diminuir a “superpopulação” das penitenciárias. Em vez de dar verbas para a polícia (que, segundo Lula, tem de ser mais “civilizada”), forrar de dinheiro as “ONGs” que se dedicam à proteção de presidiários. Desarmar os cidadãos que têm armas compradas legalmente — e por aí se vai. 

“As cadeias estão cheias de gente inocente no Brasil”, disse Lula ao relançar o “plano”; que o problema do Brasil é a “injustiça” com os presos, e não os assassinatos, roubos e estupros.