“Muitos há que trabalham,
muitos que rezam; mas quem tem a coragem de expiar? [...] A missão de Santa
Teresinha foi de nos mostrar uma via em que pudéssemos todos trilhar”.
Continuação do post de 25-4-2023
No cinquentenário do falecimento da
imortal santa carmelita de Lisieux, Plinio Corrêa de Oliveira publicou sobre
ela um artigo no “Legionário”, órgão oficioso da Arquidiocese de São Paulo, no
dia 29-9-1947. Transcrevemo-lo aqui, para a consideração de nossos leitores,
neste ano jubilar em que coincidem duas grandes efemérides dessa veneradíssima
santa: o sesquicentenário de seu nascimento e o centenário de sua beatificação.
VÍTIMA EXPIATÓRIA
✅ Plinio
Corrêa de Oliveira
Santa Teresinha do Menino Jesus é, a bem dizer, de nossos dias. Celebraremos daqui a pouco o cinquentenário de sua morte, e muitas das pessoas que ainda temos a ventura de possuir entre nós são absolutamente contemporâneas da jovem carmelita que expirou aos 24 anos.
Felizmente,
a fotografia já estava inventada em dias dela, pelo que conservamos o retrato
autêntico da grande Santinha: singularmente bela, de traços regulares, olhar
luminoso e vasto, porte firme e semblante resoluto, sua fisionomia deixa
transparecer qualidades que parecem opostas entre si — ao menos segundo a
mentalidade liberal —, como a bondade e a firmeza, a distinção e a
simplicidade, o perfeito e absoluto domínio de si e a mais atraente
naturalidade.
Se não possuíssemos fotografias da santa rosa do
Carmelo, que idéia teríamos dela? A que nos apresentam muitas de suas imagens:
doce de uma doçura sentimental e quase romântica, boa de uma bondade puramente
humana e sem menor sopro de sobrenatural, enfim uma jovem de boas inclinações
se bem que exageradamente sensível... nunca uma Santa, uma autêntica e genuína
Santa, um luzeiro cintilante no firmamento espiritual da Igreja do Deus
Verdadeiro. Se não toda a iconografia, pelo menos certa iconografia, sem
alterar os traços da Santa, lhe alterou contudo a fisionomia.
O mesmo se dá com sua biografia. Certa literatura
sentimental-religiosa, sem adulterar propriamente os dados biográficos de Santa
Teresinha, encontrou meios de interpretar tão unilateral e superficialmente
certos episódios de sua vida, que chegou a desfigurar de algum modo seu
significado. As deformações iconográficas e biográficas se fizeram todas em uma
mesma direção: ocultar o sentido profundo, admirável, heróico e imortal da vida
da imortal Santinha.
No 50º aniversário de sua morte alguém que muito e
muito lhe deve procurará saldar com respeitoso amor parte desta dívida, fazendo
como que um comentário doutrinário à sua vida.
O pecado original cometido por Adão e os pecados
posteriormente praticados pela humanidade constituem ofensas a Deus. Para
resgatar essas ofensas e aplacar a ira divina era preciso que a humanidade expiasse.
Esta expiação era como que o pagamento de um preço que compensasse a falta
cometida. Há nisto de certo modo uma restituição. Pelo pecado, o homem como que
se apropriou indebitamente de prazeres, vantagens, deleites a que não tinha
direito. Para reparar a justiça, era preciso que ele abandonasse, imolasse,
sacrificasse tudo isto. O sacrifício reparador toma, assim, o aspecto de um
preço de resgate pelo qual se repara a falta cometida. Para resgatar estes
pecados, a Santa Igreja dispõe de um tesouro. Vejamos de que natureza ele é.
Evidentemente, não se trata de um tesouro de riquezas
materiais. É um tesouro moral e espiritual, como exige a natureza moral das
faltas que se trata de resgatar. Este tesouro se compõe antes de tudo, e
essencialmente, dos méritos infinitamente preciosos de Nosso Senhor Jesus
Cristo, que no momento da Santa Morte do Salvador foram aceitos por Deus, e
produziram a Redenção da humanidade. Os sofrimentos, as virtudes, as expiações
dos homens pecadores seriam totalmente incapazes de aplacar a cólera divina. O
Santo Sacrifício do Homem-Deus bastaria plenamente para tal. Mais ainda: uma
simples gota do precioso sangue bastaria para redimir a humanidade inteira.
Contudo, por desígnios insondáveis da Providência
Divina, de fato a Redenção não se operou no momento em que se verteu para nós o
primeiro sangue do Redentor, mas só quando ele expirou por nós na Cruz, depois
de um dilúvio de tormentos. Por uma disposição igualmente misteriosa de Deus,
Ele não se contenta com o sacrifício superabundantemente suficiente do
Redentor. A humanidade está redimida, e em si mesma a obra da redenção está
concluída. Mas para salvar os pecadores, para expiar seus pecados atuais, para
que as almas transviadas aproveitem o Sacrifício do Homem-Deus, é necessário
que também nós alcancemos méritos.
O tesouro da Igreja se compõe, pois, de duas parcelas.
Uma, infinitamente preciosa, superabundantemente suficiente,
superabundantemente eficaz: é a dos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Outra pequeníssima, desvaliosíssima, insignificante: é
a dos méritos dos homens adquiridos ao longo da vida multissecular da Igreja. A
parte pequena só vale em união com a parte infinita. Mas — mistério de Deus —
em si mesma perfeitamente dispensável, esta parte é indispensável porque Deus o
quis: “Quem te criou sem ti, não te
salvará sem ti”, diz Santo Agostinho.
Deus nos criou sem nossa cooperação, mas para nos
salvar ele quer nossa cooperação. Cooperação de apostolado, sim, mas também
cooperação na prece e no sacrifício. Sem os méritos dos homens, o tesouro da
Igreja não estará completo, e a humanidade não aproveitará inteiramente os
frutos da salvação.
Parte externa do Carmelo de Lisieux |
Visto o assunto de outro ângulo, devemos lembrar o
papel da graça para a salvação. Nenhum homem é capaz de um menor ato de virtude
cristã, sem que seja chamado a isto pela graça de Deus, e pela graça de Deus
ajudado. Em outros termos, a primeira idéia, o primeiro impulso, toda a
realização do ato de virtude sobrenatural, se faz com o auxílio da graça. E
isto de tal maneira que ninguém poderia praticar o menor ato de virtude cristã
— nem sequer pronunciar com piedade os Santíssimos Nomes de Jesus e Maria — sem
o auxílio sobrenatural da graça.
Tudo isto é de Fé, e quem o negasse seria herege.
Nossa vontade coopera com a graça, e sem o concurso de nossa vontade não há
virtude possível. Mas por si só, sem a graça, ela é absolutamente incapaz de
praticar a virtude sobrenatural.
Ora,
como sem virtude ninguém agrada a Deus nem se salva, sendo a graça necessária
para a virtude, é fácil perceber que ela é necessária para a salvação.
Todos os homens recebem graças suficientes para se
salvar. Também isto é de Fé. Mas, de fato, pela maldade humana que é imensa,
muito poucos seriam os homens que se salvariam só com a graça suficiente. É
preciso que a graça seja abundante para vencer a maldade do livre arbítrio
humano. A abundância dessa graça, como obtê-la de Deus, justamente irado pelos
pecados dos homens? Evidentemente com o tesouro da Igreja.
Mas, como vimos, esse tesouro se compõe de duas
parcelas, uma das quais perfeita e imutável — a de Deus — e outra mutável e
imperfeita, a dos homens. Quanto mais a parte humana do tesouro da Igreja for
deficiente, tanto menos abundantes serão as graças. Quanto menos abundantes
forem as graças, tanto menos numerosas serão as almas que se salvam. De onde
decorre que um elemento capital para que as almas se salvem é que esteja sempre
cheio de méritos produzidos pelos homens o tesouro da Igreja. Os grandes
pecadores são filhos doentes para cuja cura se prodigalizam os tesouros da
Igreja. Os grandes Santos são os filhos sadios e operosos, que repõem a todo
momento, no tesouro da Igreja, riquezas novas que substituam as que se empregam
com os pecadores.
Tudo isto nos permite estabelecer uma correlação: para
grandes pecadores, grandes gastos no tesouro da Igreja. Ou estes grandes gastos
são supridos por novos lances de generosidade de Deus e das almas santas, ou as
graças se vão tornando menos abundantes, e o número de pecadores aumenta.
Daí se deduz que nada mais necessário, para a
dilatação da Igreja, do que enriquecer sempre e sempre, seu tesouro
sobrenatural, com novos méritos.
Santa Teresinha, no claustro do convento, 30 dias antes de sua morte |
Evidentemente, podem-se adquirir méritos praticando a virtude por toda parte. Mas há, no jardim da Igreja, almas que Deus destina especialmente a este fim. São as que Ele chama à vida contemplativa, em conventos reclusos, onde certas almas de escol se dedicam especialmente em amar a Deus e a expiar pelos homens. Estas almas corajosamente pedem a Deus que lhes mande todas as provações que quiser, desde que com isso se salvem numerosos pecadores. Deus as flagela sem cessar, de um modo ou de outro, colhendo delas a flor da piedade e do sofrimento, para com estes méritos salvar novas almas.
Consagrar-se à vocação de vítima expiatória pelos
pecadores: nada há de mais admirável. E isto tanto mais quanto muitos há que
trabalham, muitos que rezam; mas quem tem a coragem de expiar?O corpo da Santa exposto no coro do convento
Este é o sentido mais profundo da vocação dos
Trapistas, das Franciscanas, Dominicanas e Carmelitas entre as quais floriu a
suave e heróica Teresinha.
Seu método foi especial. Praticando a conformidade
plena com a vontade de Deus, ela não pediu sofrimentos, nem os recusou. Deus
fizesse dela o que entendesse. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras que
dela afastassem qualquer dor. Jamais pediu a Deus ou a suas superioras qualquer
mortificação. Submissão plena era o seu caminho. E, em matéria de vida
espiritual, plena submissão equivale à plena santificação.
Seu método se caracteriza ainda por outra nota
importante. Santa Teresinha não praticou grandes mortificações físicas. Ela se
limitou apenas simplesmente às prescrições de sua Regra. Mas esmerou-se em
outro tipo de mortificação: fazer a toda hora, a todo instante, mil pequenos
sacrifícios. Jamais a vontade própria. Jamais o cômodo, o deleitável. Sempre o
contrário do que os sentidos pediam. E cada um destes pequenos sacrifícios era
uma pequena moeda no tesouro da Igreja. Moeda pequena, sim, mas de ouro de lei:
o valor de cada pequeno ato consistia no amor de Deus com que era feito.
E que amor meritório! Santa Teresinha não tinha
visões, nem mesmo os movimentos sensíveis e naturais que tornam por vezes tão
amena a piedade. Aridez interior absoluta, amor árido, mas admiravelmente
ardente, da vontade dirigida pela Fé, aderindo firme e heroicamente a Deus, na
atonia involuntária e irremediável da sensibilidade. Amor árido e eficaz,
sinônimo, em vida de piedade, de amor perfeito...
Grande caminho, caminho simples. Não é simples fazer
pequenos sacrifícios? Não é mais simples não ter visões, do que as ter? Não é
mais simples aceitar os sacrifícios em lugar de os pedir?
Caminho simples, caminho para todos. A missão de Santa
Teresinha foi de nos mostrar uma via em que pudéssemos todos trilhar. Oxalá ela
nos auxilie a percorrer esta estrada real, que levará aos altares não apenas
uma ou outra alma, mas legiões inteiras.
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