12 de julho de 2024

Há mil anos falecia Santo Henrique II, Imperador do Sacro Império

 



Precisamente mil anos atrás, no dia 13 de julho de 1024, entregava sua alma a Deus no castelo de Grona, perto de Göttingen, Santo Henrique II, Rei da Germânia e Imperador do Sacro Império Romano Alemão.

 

✅ Renato William Murta de Vasconcelos

          

Baluarte da Igreja contra os ataques dos bizantinos e dos muçulmanos, defensor dos direitos e prerrogativas do Papado, propugnador da reforma moral do clero e do celibato eclesiástico, incansável apóstolo dos eslavos, Santo Henrique foi educado por São Wolfgang, Bispo de Regensburg, e se tornou o único Imperador do Sacro Império a receber a honra dos altares. Casado com Santa Cunegundes, da Casa de Luxemburgo, era cunhado de Santo Estevão, primeiro Rei evangelizador da Hungria.

Glorioso jubileu de uma personalidade ímpar na História da Igreja e da Cristandade que não pode cair no olvido.

 

Catedral de Bamberg e abaixo o imenso escrínio de mármore negro com os restos mortais do Imperador Henrique II e de sua santa esposa Cunegundes

Ressurgimento do Sacro Império Romano

O fiel ou o peregrino — hoje seria mais bem um turista — que adentra a Catedral de Bamberg, bela e pequena cidade situada ao norte da Baviera, encontra logo na entrada, em meio às penumbras que envolvem a parte posterior do recinto sagrado, um imponente mausoléu,1 imenso escrínio de mármore negro com os restos mortais do Imperador Henrique II e de sua santa esposa Cunegundes.2

Em cima da tumba, dois gizantes com a imagem do casal imperial, ambos coroados, tendo a seus pés dois leões, a simbolizar a crença na ressurreição dos mortos. O da esquerda ostenta o brasão da Casa da Baviera e o da direita o brasão da Casa de Borgonha, casas principescas das quais descendia o casal imperial. Nas laterais do túmulo, quadros retratam episódios da vida de Santo Henrique e de sua consorte.

Personalidade ímpar, sem sombra de dúvida, a de Santo Henrique. A época em que viveu — entre o fim do século X e início do XI —, caracterizada por Leão XIII como a era histórica em que “o sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios”,3 experimentava grandes desafios.

Na ordem temporal, do esfarelamento do império carolíngio surgira a leste, com os ducados da Francônia, da Suábia e da Saxônia, o reino germânico sob a dinastia otoniana, sempre em luta com os povos eslavos ainda afundados no paganismo. A coroação de Oto I em Roma, no dia 2 de fevereiro de 962 pelo Papa João XII, fizera ressurgir o Sacro Império Romano.

No campo espiritual, a Igreja enfrentava no Ocidente severa crise. Simonia, tremenda decadência moral do clero, ingerência de potentados nas eleições papais e na direção da Igreja, ademais de um pulular de grupelhos de cristãos apóstatas, cujas heresias maniqueias antecederam de dois séculos os perniciosos erros dos albigenses e dos valdenses.  

No Oriente, grassava desde o século IX a heresia trinitária sobre a processão do Espírito Santo e a negação da supremacia de jurisdição do Papa, erros graves que iriam levar ao Grande Cisma de 1054, sem contar as incessantes e calamitosas incursões muçulmanas na península itálica. Neste vasto campo de apostolado e de ação, onde as manobras políticas e diplomáticas se entremeavam com os embates dogmáticos e o choque das armas, desabrochou a personalidade e floresceram as virtudes de Santo Henrique.

 

Discernimento dos grandes problemas da Igreja e do Estado

A coroação de Oto I em Roma,
 no dia 2 de fevereiro de 962,
fez ressurgir o Sacro Império Romano.
Escultura de Oto (Catedral de Magdeburg,
 Alemanha).
Nasceu em 6 de maio de 973 no castelo de Bad Abbach, próximo de Regensburg, na Baviera. Filho de Henrique II, o Briguento, duque da Baviera, e de Gisela, princesa da Casa de Borgonha. Do lado paterno era bisneto do duque Henrique, o Passarinheiro da Baviera, esposo de Santa Matilde, e sobrinho-neto do imperador Oto I, o Grande, cuja esposa foi Santa Adelaide. Pelo lado materno era neto do rei Conrado I da Borgonha. Foi educado na infância por sua mãe Gisela e por Dom Abraham, bispo de Freising. Frequentou a famosa escola eclesiástica de Hildersheim, tendo em vista uma futura carreira eclesiástica. Instruiu-se posteriormente sob a direção de São Wolfgang, Bispo de Regensburg, e de Romwold, abade do mosteiro de Santo Emmeram.

Sua excelente formação moral, intelectual e teológica colocou-o entre os príncipes mais piedosos e cultos de sua época. Com a morte do pai em 995, tornou-se duque da Baviera. Apesar de ainda relativamente jovem, já despontavam nele as qualidades de um governante excepcional: visão clara dos grandes problemas da Igreja e do Estado, profunda penetração psicológica, senso das oportunidades e do momento certo de agir, coragem, prudência e firmeza nas decisões.

Um de seus primeiros atos de governo no ducado da Baviera foi promover o casamento de sua irmã Gisela com Estêvão, rei dos húngaros.3 Tinha em vista garantir a segurança das fronteiras bávaras a leste, mas também e sobretudo favorecer a conversão dos magiares.

Nos umbrais do novo milênio, em data incerta entre 997 e 998, contraiu núpcias com a princesa Cunegundes. Pouco antes, em 996, o Papa Gregório V havia coroado Oto III imperador. Desde então, até o fim de sua vida, o jovem monarca teve em Santo Henrique um vassalo leal, um conselheiro sagaz, que o acompanhou fielmente nas empresas militares e em suas viagens a Roma.

 

Estátua de São Wolfgang, Bispo de Regensburg (abaixo), abade do mosteiro de Santo Emmeram (gravura de 1619). 

Ascensão ao trono germânico


No início de 1002 Oto III morreu na Itália em Castel Paterno, Faleria, aos 22 anos, sem deixar descendência. Santo Henrique, enquanto sobrinho-neto de Oto I, tinha legítimo direito ao trono do Reino Franco do Leste, dos germanos. A sucessão na dinastia otoniana dava-se no ramo da Saxônia. Porém, Santo Henrique pertencia ao ramo secundário, bávaro. Daí o fato de não ter sido reconhecido rei imediatamente.

Quatro pretendentes lhe disputaram o trono. Dois ligados à dinastia — Oto, duque da Caríntia e o conde palatino Ehrenfried da Lorena, casado com uma irmã de Oto III —, e outros dois provenientes de ducados germânicos: Ekkehard, margrave de Meissen, e Hermann, duque da Suábia. Nessa emergência viu-se o despontar de seu tino político.

Sabendo que os restos mortais do falecido imperador vinham da Itália para serem enterrados na catedral de Aachen, Santo Henrique, indo de encontro ao féretro em Polling, na Baviera, apoderou-se das insígnias do poder real para forçar uma situação de fato. Imediatamente, Oto da Caríntia — neto de Oto I, o Grande, e pai do Papa Gregório V — renunciou a seus direitos ao trono em favor de Henrique. Ekkehard foi assassinado por inimigos pessoais em Pöhlde, no dia 30 de abril de 1002. Mas persistia ainda o perigo de guerra pelo poder real.

Para evitar um caos generalizado no Reino, Dom Willigis, Arcebispo de Mainz, que morreu em odor de santidade, ungiu e coroou Santo Henrique em 7 de junho na catedral dessa cidade. No mês seguinte, recebeu a aclamação da nobreza da Turíngia no castelo de Kirchberg, em Jena. A 24 de julho, em Merserburg, foi a vez de o clero e da nobreza da Saxônia proclamá-lo rei dos germanos.

No dia 10 de agosto, o Arcebispo Dom Willigis coroou Santa Cunegundes como rainha na cidade de Paderborn, e sagrou Sofia, irmã de Oto III e apoiadora de Santo Henrique, como abadessa do Convento de Gandersheim. O conde palatino Ehrenfried opôs resistência ainda por algum tempo. E Hermann da Suábia submeteu-se enfim no dia 1º de outubro, em Bruchsal.

Nota-se aqui o método empregado por Santo Henrique para conquistar a coroa: por etapas, convencendo primeiramente a nobreza e o clero de seu próprio ducado; depois do assassinato de Ekkehard, a tentativa inicialmente infrutífera de atrair para seu lado Hermann da Suábia; depois persuadiu os turíngios e os saxões; e finalmente voltou-se para o Oeste, sendo reconhecido pelos representantes dos Bispados ocidentais em Duisburg. Para completar, com o apoio dos príncipes da Baixa Lorena, foi coroado rei em Aachen no dia 8 de setembro, festa da Natividade de Nossa Senhora.

 

Sapiencial programa de governo

Para evitar um caos generalizado no Reino,
Dom Willigis (foto do relicário dele),
Arcebispo de Mainz,
 que morreu em odor de santidade,
ungiu e coroou Santo Henrique
em 7 de junho de 1002,
na catedral dessa cidade.
Santo Henrique procurou revigorar o poder real com apoio do episcopado. Para tal nomeava para as sedes episcopais varões probos e capazes, formados na chancelaria real. À regeneração moral, ao restabelecimento da disciplina e da ordem no clero e no laicato dedicou ele o melhor de seu tempo e de seus esforços. Para tal convocou ao longo dos anos inúmeros sínodos nos quais, com grande dom de eloquência, convencia os recalcitrantes.

Uma fundação predileta sua foi a criação da Diocese de Bamberg, formada com partes territoriais da diocese de Würzburg e de Eichstätt e aprovada em 1007 pelo Sínodo de Frankfurt, do qual participaram 35 bispos. A construção da catedral da nova diocese levou cinco anos. Foi inaugurada solenemente em 1012, com a presença de 45 bispos e arcebispos.

Com a criação da Diocese de Bamberg, Santo Henrique tinha em vista apoiar o esforço missionário para a conversão dos pagãos do leste europeu. Por isso, em sua política exterior procurou estabelecer não somente uma paz duradoura entre a Coroa e a Tiara, mas também manter estreitas relações com a Hungria e conter os avanços do duque Boleslau Chrobry, o Bravo, que aproveitou a convulsão oriunda dos litígios pela disputa do trono alemão, e avançou suas tropas até o Elster. De 1002 a 1018 Santo Henrique teve de empreender três campanhas militares contra Chrobry, que se tornou mais tarde o primeiro rei polonês.

 

Boleslau Chrobry, o Bravo, na Porta Dourada em Kiev – Jan Matejko (1838-1893). Pintura considerada perdida durante a Segunda Guerra Mundial até ser reencontrada em 2004

Vida de luta incansável em prol do Reino e do Papado

Nos seus 22 anos de reinado, Santo Henrique não teve por assim dizer um minuto de descanso. A pacificação interna de seu reino, a defesa deste contra as invasões estrangeiras vinda da Polônia, as alianças com Roberto, o Piedoso, e com o reino da Borgonha, bem como as diversas incursões na península italiana para lutar contra os rebeldes lombardos, defender o Papa contra os patrícios tiranos e as usurpações dos bizantinos e, por fim, o apoio na guerra de expulsão dos bizantinos herético-cismáticos e dos muçulmanos incréus do sul da península italiana, toda essa obra gigantesca foi objeto de seu zelo incansável.

Eis, a título de exemplo, alguns fatos de sua movimentada vida.

Em virtude do segundo casamento de Oto I, o Grande, com Santa Adelaide, da Casa de Borgonha e rainha da Itália setentrional, o rei dos germanos era também rei da Lombardia. Com a ascensão de Santo Henrique ao trono alemão, Arduíno de Ivrea apressou-se em se autoproclamar rei da Lombardia. Seus partidários tinham como bandeira a expulsão dos alemães e a independência lombarda. Em pouco tempo, muitos bispos se aliaram a Arduíno, outros foram obrigados pela força, mas uns e outros retiraram seu apoio quando Arduíno começou a fazer exações e espoliar os bens da Igreja.

No Natal de 1003 o Bispo de Verona e outros grandes dignitários da região visitaram Santo Henrique e o reconheceram como seu legítimo rei. Na primavera do ano seguinte o monarca se dirigiu à Itália. No dia 14 de maio de 1004 foi coroado com a Coroa de Ferro em Pavia, embora houvesse forte reação contrária do populacho.

Enquanto isso, o Papa João XVIII (1003-1009) era oprimido pelo ditador Crescêncio em Roma. Santo Henrique, embora quisesse, não pôde ir socorrê-lo, porque Boleslau Chrobry ameaçava novamente a unidade do Reino. Em junho de 1004 Santo Henrique estava novamente em Mainz; no início de setembro conquistou Praga, forçando Boleslau a abandonar a Boêmia e a refugiar-se em suas terras.

Com apoio dos boêmios, Santo Henrique reconquistou Bautzen, obrigando Chrobry a pedir a paz. O polonês teve que devolver a região entre o Oder e o Elba, abandonando assim o sonho de estabelecer um império eslavo capaz de competir em pé de igualdade com o Sacro Império. O término da guerra não conseguiu ser duradouro. Em 1010 o conflito estourou novamente. Durou quase três anos, até a sua conclusão com o acordo de paz de Merserburg.

 

Da vida de Santo Henrique: Coroação, Apresentação da espada, Visão da Santa Cruz, Confissão, Batalha polaco-alemã – Mestre da lenda de Santa Bárbara (1470–1500). Westphalian State Museum of Art and Cultural History, Alemanha


“Constante defensor da Igreja e leal vassalo de Jesus Cristo”

No Natal de 1012 apareceu em Pöhlden, na Saxônia, onde Santo Henrique se encontrava, um antipapa que viera fugindo de Roma. Nesse mesmo ano faleceram, com pouca diferença de tempo, o Papa Sergio IV e o patrício-ditador Crescêncio, que havia determinado a eleição de vários Papas. Assim, seus rivais, os condes de Túsculo, retomaram o poder e elegeram Papa um filho de Gregório de Túsculo, que tomou o nome de Bento VIII.

Mas o partido contrário elegeu para o sólio pontifício Gregório, um clérigo desconhecido. Sem apoio em Roma, Gregório foi procurar Santo Henrique junto à corte alemã. Este o recebeu com desconfiança, reconheceu nele um usurpador, e prometendo-lhe agir com justiça, retirou-lhe as vestimentas papais e o proibiu de exercer o múnus pontifício. Entrementes, em Roma, Bento VIII necessitava de ajuda e recorreu ao rei alemão.

 Em fins de 1013 Santo Henrique se dirigiu novamente à Itália. Transpôs os Alpes e passou o Natal na cidade de Pavia. Arduíno, que havia retomado o título de rei, fugiu às pressas para seu refúgio nas montanhas e propôs sem sucesso devolver a coroa em troca de um condado. Acabou seus dias, piamente segundo dizem, num convento que ele mesmo fundara. Em Ravena, Santo Henrique encontrou-se com Bento VIII. O rei prometeu ao Papa a restituição dos bens roubados à Igreja. Em contrapartida, o Papa estabeleceu Arnulfo, meio-irmão de Santo Henrique, como Arcebispo de Ravena.

No dia 22 de fevereiro de 1014, festa da Cátedra de Pedro, Santo Henrique entrou em Roma com grande séquito, acompanhado de 12 senadores. O Papa Bento VIII o esperava na Basílica de São Pedro. Após jurar ser um “constante defensor da Igreja e leal vassalo de Jesus Cristo”, o Papa ungiu-o com os óleos santos, proclamou-o Imperador do Sacro Império e o coroou, juntamente com Santa Cunegundes. No mesmo dia o Pontífice ofereceu ao Imperador um grande banquete no seu palácio de São João de Latrão, segundo relata o historiador Ditmar.

O monge Glaber, outro contemporâneo, conta ainda que, nessa ocasião, o Papa presenteou o Imperador com um globo de ouro, encimado por uma cruz e ornado de pedras preciosas. O globo representava o mundo; a cruz, a Igreja que devia ser protegida pelo monarca; e as pedras preciosas, as virtudes com as quais ele devia se ornar.

Então Santo Henrique disse ao Papa: “Santo Padre, Vós quereis me ensinar por este meio como devo governar. Este presente só pode convir a pessoas que desprezam as pompas do mundo para poder seguir a cruz sem empecilhos”. Este precioso globo foi dado por Santo Henrique a seu amigo Santo Odilon, abade do mosteiro beneditino de Cluny, principal centro da reforma monástica que iria mudar a face da Europa cristã nos próximos séculos.

 

Lídimo continuador da estratégia de Carlos Magno

A exemplo de Oto I, o Imperador Santo Henrique deu ao Papa um diploma — assinado por ele, doze bispos, três abades e diversos potentados —, no qual reconhecia, ratificava e confirmava todos os direitos temporais da Santa Sé, bem como todas as doações que lhe tinham sido feitas por Pepino, o Breve, e Carlos Magno.

Durante essa estadia em Roma, Santo Henrique indagou aos sacerdotes por que durante a Missa eles não cantavam o Símbolo dos Apóstolos, após a leitura do Evangelho, como era costume em outros lugares. Responderam-lhe que a Igreja romana jamais havia sido maculada por qualquer heresia e por isso não era necessário que ela declarasse a sua fé pelo canto do Credo.

Retomando o desejo já expresso dois séculos antes por Carlos Magno, Santo Henrique conseguiu que o Papa Bento VIII introduzisse o canto do Credo após o Evangelho nas Missas solenes. É o que testemunha Vernon, abade de Reichenau.6

As disposições de Santo Henrique deram ao Papa imenso poder. Com a ajuda dele conseguiu expulsar os sarracenos que haviam ocupado a cidade portuária de Luna. Um espírito de vitória inflou o ânimo dos cristãos. Em 1016, pisanos e genoveses reconquistaram a ilha da Sardenha, nas mãos dos muçulmanos desde 1002.

Nos últimos anos de sua vida Santo Henrique teve de empenhar-se novamente em campanhas na Itália. Enquanto consolidava os estados no interior e assegurava a paz com os vizinhos do leste, os lombardos, associados aos bizantinos e normandos, assolavam as províncias da Itália. O monarca preparou-se para castigá-los. Derrotou-os em várias batalhas, repeliu a uns e a outros e subjugou também a Lombardia. Reintegrou a Igreja na posse das terras invadidas, ocupou Nápoles, Salerno e Benevento, e restabeleceu a paz na península.

Os anos posteriores à coroação imperial foram repletos de espinhos e dificuldades para Santo Henrique. Só em 1019 é que a paz regressou. No ano seguinte celebrou a Páscoa em Bamberg, com a presença de Bento VIII, o Papa que o coroara seis anos antes e que para lá se deslocara a fim de consagrar a nova Igreja de Santo Estêvão.

Ao voltar para a Alemanha, teve com Roberto, o Piedoso, filho de Hugo Capeto e rei dos franceses, a célebre entrevista do rio Maas, na qual se entenderam sobre a reforma moral da sociedade. Para isso combinaram convocar um sínodo, que não se realizou por causa da morte prematura de Santo Henrique. Dispunha o cerimonial que o encontro se desse numa pequena ilha, no meio do rio. Santo Henrique, em atenção às virtudes do monarca francês, resolveu quebrar o protocolo, atravessou o Maas com seu séquito e foi saudar o rei da França na margem oposta.

 

Coroa de Santo Henrique

Modelo ideal de um monarca


Em seu livro Revolução e Contra-Revolução, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira aponta como molas propulsoras do processo revolucionário o orgulho e a sensualidade. Do orgulho nasce o igualitarismo, porque o orgulhoso não aceita qualquer forma de superioridade; da sensualidade surge o liberalismo, posto que o sensual não admite o menor freio a suas paixões.

Ainda que seja difícil vislumbrar a existência do processo revolucionário no início do século XI, entretanto as tendências que lhe deram origem 200 anos mais tarde já estavam latentes em todo o corpo social. Em sentido totalmente oposto a essas tendências — já presentes na anarquia feudal e nas rebeliões de nobres e nas desordens morais que campeavam no seio do clero —, desenrolou-se a vida de Santo Henrique.

Humilde, desprezava as grandezas mundanas; puro de corpo e de alma queria estar com a mente sempre voltada para as “coelestia desideria”. Procurando atingir os píncaros de todas as virtudes, tornou-se o modelo ideal do monarca cristão.

Em meio a sua vida de homem de ação, de suas guerras, de suas vitórias, de suas riquezas, ele aspirava a uma vida de recolhimento, desejava abraçar o silencio do claustro para conversar com Deus, ele que havia recebido excelente formação teológica. Tinha especial apreço pelo beato Richard, abade do mosteiro de Vannes, de Verdun, a quem havia dado grandes presentes. Um dia, ao visitá-lo em companhia do bispo Haimon, pronunciou em voz alta as palavras do salmista: “Este será o lugar de meu repouso para sempre, aqui está a morada que escolhi” (Salmo 132, 13-14).

O abade estava diante de um problema sério: como atender o pedido do Imperador, sem prejudicar o Estado? Após séria reflexão, diante de todos os monges reunidos, o abade interrogou o Imperador sobre o seu desejo de abandonar o mundo. “Quereis, segundo a regra e seguindo o exemplo de Jesus Cristo, ser obediente até à morte?”

À resposta afirmativa do Imperador, o abade declarou então que o recebia como monge, encarregava-se da salvação de sua alma, e que, em virtude da santa obediência, lhe ordenava que retornasse a “governar o Império que Deus lhe havia confiado e que, pela firmeza ao exercer a justiça, procurasse o bem do Reino”.7

Obediente, Santo Henrique voltou ao bom e reto governo de seus povos. Ele desponta no limiar do século XI como um monarca excepcional, varão de grande cultura, político prudente, guerreiro astuto, hábil diplomata, santo incomparável. Introduzindo a reforma cluniacense em seus domínios, ajudou a preparar o grande movimento de reforma moral do clero e do laicato que suscitou Papas de envergadura sem igual na História da Igreja, tais como São Leão IX (1002-1054), Vitor II (1020-1057), São Gregório VII (1025-1085) e o Beato Urbano II (1035-1099).

Nenhum obstáculo o impediu de cumprir o seu dever até o último alento. Dizem que tinha pedras nos rins, sofrendo terríveis dores. E que essa foi a causa de sua morte, exatamente há 1000 anos, em 13 de julho de 1024. Faleceu cercado de seus familiares, tendo à cabeceira a incomparável esposa, Santa Cunegundes. Essa última cena de sua vida está retratada num dos quadros laterais no mausoléu de Tilman Riemenschneider.

A seus pés, um demônio lhe aponta um dedo acusatório. E Santo Henrique, prestes a se apresentar ante o “justo Juiz”, com o olhar sereno, voltado para sua esposa, diz a seus parentes que ele a devolvia tão pura quanto a recebera. Assim evolou-se a alma do grande Imperador. No Céu lhe estava reservada a “recompensa imensamente grande” (Gen. 15, 1).

Da Bula de canonização de Santo Henrique II

pelo Papa Eugenio III em 14 de marco de 1146

 

“Ora, ficamos sabendo muitas coisas a respeito de sua castidade; da fundação da Diocese de Bamberg e de muitas outras, bem como do restabelecimento de Sedes Episcopais, e da multiplicidade de suas generosas doações; da conversão do rei Estêvão e de toda a Hungria, levada a cabo por ele com a ajuda de Deus; de sua morte gloriosa e dos inúmeros milagres ocorridos diante de seu corpo após seu falecimento.

Entre outras coisas, consideramos especialmente admirável que ele, depois de receber a coroa e o cetro do Império, tenha vivido não como um césar, mas como um varão espiritual, e que, vivendo numa legítima união conjugal, tenha, como só bem poucos, conservado a castidade até o fim da vida.”

Livro de Orações de Santo Henrique 

 

Notas:

1.        Obra prima do famoso escultor Tilman Riemenschneider (1460 - 1531), levada a cabo de 1499 a 1513, quando recebeu os restos mortais Santo Henrique e de Santa Cunegundes, o único casal imperial até hoje canonizado. Suas calotas cranianas se encontram hoje em dois relicários, guardados no Tesouro da Catedral de Bamberg.

2.        Filha de Siegfried de Luxemburgo. Viveu em continência, pois, com o consentimento do marido, então Duque Henrique da Baviera, fizera um voto de virgindade antes do casamento. Caluniadores acusaram-na de conduta escandalosa, mas a sua inocência foi comprovada por um “Gottesurteil”, um juízo de Deus, ao caminhar de pés descalços sobre pás de arado em brasas sem sofrer qualquer queimadura. Em 1025, um ano após a morte do esposo, retirou-se para o convento de Kaufungen, por ela fundado, onde viveu até sua morte em 1040. Foi canonizada em 29 de março de 1200 pelo Papa Inocêncio III.

3.        Santo Estevão, primeiro rei dos húngaros, foi batizado por Santo Adalberto de Praga em 985, coroado em 17 de agosto do ano 1000 e canonizado em 20 de agosto de 1083, juntamente com seu filho Santo Américo, pelo Papa São Gregório VII. Sua esposa Gisela foi beatificada por São Pio X em 1911. Sua filha Ágata casou-se com Eduardo, filho exilado de Edmundo Ironside. Dessa união nasceu Santa Margarida, padroeira da Escócia.

4.        Encíclica Immortale Dei, de 1º de novembro de 1885.

5.        Com direito ao trono, Oto, duque da Carintia, neto do imperador Oto I, renunciou a favor de Santo Henrique. Foi pai do Papa Gregório V. Cfr. Weiss, Weltgeschichte, vol. 4, p. 300.

6.        Cfr. Rohrbacher, Histoire de l´Eglise, vol. 13, p. 414.

7.        Id. ibd. p. 414.       

Outras obras consultadas:

·         Rohrbacher, Histoire universelle de l´Eglise catholique, Gaume Frères, Paris, 1851, vol. 13.

·         Johann Baptist Weiss, Weltgeschichte, vol. 5.

·         Fliche-Martin, Histoire de l´Eglise, vol. 7, pp. 80ss.

·         Manfred Höfer, Kaiser Heinrich II. Das Leben und Wirken eines Kaisers, Bechtle, 2002.

·         Stefan Weinfurter, Heinrich II. (1002-1024) - Herrscher am Ende der Zeiten, Pattloch, 2002.

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