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Pintura da Basílica de São Pedro, no Vaticano, lotada para a cerimônia de canonização de Santa Teresinha. |
✅ Caio V. Xavier da Silveira
Fonte: Revista Catolicismo, 893, maio/2025
Este
ano marca o centenário da canonização de Santa Teresinha do Menino Jesus e da
Sagrada Face, uma das santas mais amadas da Igreja Católica. Em meio às
comemorações, é oportuno refletir sobre o significado de sua espiritualidade e
sua influência sobre a vida espiritual dos católicos no mundo inteiro. Um “furacão universal de glória”, segundo
Pio XI, o Papa que a canonizou.
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A fotografia retrata bem a verdadeira fisionomia de Sta. Teresinha |
Essa reflexão torna-se ainda mais necessária depois que se difundiu, em certos ambientes religiosos, uma verdadeira caricatura de vida espiritual, resultante de um conceito sulpiciano1 e romântico da Santa de Lisieux e da sua Pequena Via, que deforma a profundidade de sua espiritualidade em uma visão excessivamente sentimental e ingênua da fé cristã.
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Imagem deturpada de Sta. Teresinha |
Essa deturpação apresenta a santidade como algo acessível sem grandes desafios, sem a necessidade de verdadeira conversão ou renúncia, reduzindo a confiança radical em Deus e o abandono à Sua vontade a uma espécie de passividade doce e conformista. Em muitos ambientes eclesiásticos, essa versão adocicada se reflete em imagens de Santa Teresinha sempre sorridente, cercada de flores e nuvens cor-de-rosa, como se sua entrega a Deus fosse isenta de sofrimentos, hesitações ou batalhas espirituais.
Esse
conceito simplificado ignora o heroísmo real da Pequena Via, que não é
uma caminhada fácil ou sentimental, mas um abandono total na fé, mesmo em meio
à noite escura da alma e às mais trágicas
provações interiores. Santa Teresinha, em seus escritos, fala de sua
profunda luta espiritual, de sua confiança em Deus apesar do vazio e da aridez,
e de seu desejo de ser consumida pelo amor divino em um espírito de verdadeira
humildade e sacrifício.
A caricatura
sulpiciana, ao contrário, tende a
esvaziar essa radicalidade, transformando a santidade em algo acessível sem
esforço, confundindo a infância espiritual com infantilização da fé, e
reduzindo o caminho da perfeição cristã a uma ternura superficial desprovida da
cruz. Essa visão empobrece o chamado universal à santidade, pois desconsidera a
seriedade da luta espiritual que Santa Teresinha viveu de maneira intensa até o
fim de sua vida.
Sacrifício grande da pequena mortificação de
todos os dias
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Sta. Teresinha no claustro do convento |
Por isso é conveniente estudar a verdadeira fisionomia espiritual de Santa Teresinha, como ela foi corretamente interpretada pelo grande pensador e mestre espiritual contra-revolucionário Plinio Corrêa de Oliveira, que via nela não apenas um modelo de virtude pessoal, mas um farol para a luta espiritual dos católicos na época moderna2.
Seu
testemunho é tanto mais expressivo e valioso quanto ele não se sentia
pessoalmente atraído por essa via dos pequenos sacrifícios:
“A
mim me pareceria muito mais fácil a via de Santa Teresa a Grande, do que a de
Santa Teresinha do Menino Jesus. Porque Santa Teresa a Grande tinha provações
tremendas, mas também tinha deslumbramentos, visões, entusiasmos etc. Santa
Teresinha, não: céu plúmbeo, igual, sem graça; estradinha estreitinha, banal,
pequena. Tanta aridez que as ações mais comuns custavam a ela para fazer. Ela
não fugia de nada, fazia tudo, enfrentava todas essas pequenas coisas o dia
inteiro, fazendo o contrário do que ela queria fazer. A mim isso abafa muito
mais do que as tremendas desolações da vida de Santa Teresa, mas acompanhadas
daquelas lufadas de ar em que ela se via em presença da Santíssima Trindade,
daquilo, daquilo outro. Cada um é feito de um jeito. Eu confesso que tenho
menos medo dessas catástrofes trágicas seguidas de grandes sóis, do que dessa
uniformidade plúmbea na pequena mortificação de todos os dias.”
Porém,
Dr. Plinio compreendia bem que, para além da aparente oposição entre a via de
Santa Teresa e a via de Santa Teresinha, há uma profunda sintonia de fundo nas
suas espiritualidades respectivas:
“É o
oposto no sentido de que a misericórdia é o oposto da justiça. Não é um
contrário que se choca, mas são dois caminhos numa mesma linha que se reduzem
numa síntese maravilhosa. E em que, exatamente, é inteiramente coerente e
compreensível que na família espiritual da grande Santa Teresa apareça a Pequena Via de Santa Teresinha do Menino
Jesus.”
Por
que motivo a Providência suscitou duas vias espirituais tão diferentes, como a
“grande via” de Santa Teresa ou de Santo Inácio de Loyola nos Exercícios
Espirituais e a Pequena Via de Santa
Teresinha? — É porque cada uma delas é adaptada ao feitio das almas da
respectiva época e das almas com traços semelhantes nas épocas sucessivas:
“Quando
Santa Teresa de Ávila morreu, o filósofo alemão luterano e racionalista
Gottfried Leibnitz, numa carta a um amigo, disse: ‘Morreu um grande homem, a
freira espanhola Teresa de Jesus’. Era a impressão que ela causava aos seus
contemporâneos. Uma inteligência privilegiada, muito forte, de grandes rumos.
Ao par disso, uma amplitude de personalidade extraordinária e sobre essa grandeza
natural enorme um derramar de graças sobrenaturais mensuráveis pela amplitude
dos fenômenos místicos com que ela foi favorecida. Era, em última análise, a
grandeza da personalidade humana num de seus exemplares mais privilegiados na
ordem da natureza, refulgindo com as grandezas da graça, e dando uma espécie de
ideia plena do que seria o tipo perfeito da religiosa-matriarca, de maneira tal
que a gente quase esquece das debilidades do sexo feminino, para ver nela uma
espécie de querubim que tem todas as grandezas de um ser puramente espiritual.
Santa Teresa de Jesus a Grande poderia ser considerada por excelência a santa
do feitio de alma das gerações antigas, dotadas de todos os recursos psíquicos
necessários.
“Pelo
contrário, Santa Teresinha do Menino Jesus representa de algum modo a aurora da
época das gerações mais recentes. Aquela família das almas pequenas que, por
assim dizer, morrem de admiração pelas almas grandes, que não as invejam, que
as compreendem, que as respeitam, que procuram segui-las, mas que, no plano
natural, não têm aquela plenitude de personalidade das grandes almas do
passado.
“Santa
Teresinha, por exemplo, era muito amedrontável por natureza, tinha acessos de
timidez e de inibição. Bem menina, quando a mãe a chamava ao pé da escada, ela
descia aos poucos, esperando que a mãe lhe pedisse, de um modo risonho e
acolhedor, para descer mais um degrau. Se a mãe a chamasse de um modo grave,
severo, ela ficaria enregelada e não conseguiria descer. Então, ela dizia que
esse era o modo pelo qual Deus a atraía; era a Pequena Via.
“Esta
Pequena Via não poderia ter sido
vivida com mais grandeza de alma, com mais largueza de horizonte, com mais
plenitude de santidade do que Santa Teresinha do Menino Jesus viveu. Ela
representa a mesma música grandiosa de Santa Teresa a Grande tocada num outro
instrumento, em que tudo, em vez de ser grandeza, é mais delicadeza, mais
suavidade. Mas, no fundo, uma grandeza, uma austeridade, uma generosidade e uma
entrega a Deus tão grande que quando a gente acaba de ler a História de uma alma, a gente compreende
bem que o colossal das coisas pequenas não fica abaixo do colossal das coisas
grandes.”
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Santa Teresa a Grande em êxtase |
Santa Teresinha encarnava a essência do espírito
contra-revolucionário
Dir-se-ia
que Deus, prevendo o aparecimento de gerações sucessivamente mais frágeis — até
a geração atual, que os sociólogos começam a chamar de “geração de cristal”,
por causa de sua extrema fragilidade psicológica —, já foi preparando para elas
uma via de santificação adaptada à sua personalidade e às circunstâncias
adversas nas quais teriam que viver, por causa da destruição da família, do
desaparecimento de balizas orientadoras para a existência, da erosão das
relações sociais etc. fruto do avanço da Revolução anticristã. Nesse contexto
psicológico e social, já emergente no início do século passado, Santa Teresinha
propôs um caminho de santidade acessível a todos, que em vez das grandes
mortificações valorizou os pequenos sacrifícios cotidianos, oferecendo-os a
Deus com amor.
Para
Plinio Corrêa de Oliveira, essa doutrina era especialmente relevante em um
mundo marcado pela Revolução e pela desordem moral atual, enquanto antídoto
contra o orgulho e a autossuficiência endeusados pela modernidade. Nesse
aspecto, Santa Teresinha encarnava a essência do espírito
contra-revolucionário: uma inocência admirativa de tudo aquilo que é superior e
uma combatividade suave, mas inquebrantável.
Para
Dr. Plinio, Santa Teresinha era “o protótipo da alma inocente”:
“Sente-se
nela, desde pequena, admiração por tudo quanto é divino, por tudo quanto diz
respeito a Deus, sumo respeito ao tratar com os superiores e com Deus, a par de
suma intimidade com Deus, a ponto que mandava as noviças beijarem o crucifixo
na face, algo que nunca tive a coragem de fazer. Ora, onde não entra admiração,
veneração e respeito, não há verdadeiro amor. As almas incapazes de admirar são
incapazes de amar.”
E, em outra oportunidade,
explicou o porquê disso:
“A
admiração é o elemento fundamental do amor. Admirar é considerarmos uma coisa
cujo porte, cujo vulto, cuja qualidade é muito superior a nós. E nós, diante
disso, termos dentro da alma um movimento que diz mais ou menos o seguinte:
‘Como tal coisa é excelente! Como ela é magnífica! Como ela é maravilhosa! Como
ela é superior a mim!’”
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“Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perde ria o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas” |
Amor teresiano à desigualdade e à hierarquia na ordem
do universo
Essa capacidade de admirar da inocência favoreceu o desabrochar em Santa Teresinha de um espírito profundamente contra-revolucionário, o qual transparece na passagem de seu primeiro manuscrito autobiográfico, onde ela conta que durante muito tempo se perguntou por que Deus tinha preferências, em vez de as almas receberem um igual grau de graças. Mas que, lendo o livro da natureza, ela compreendeu que o esplendor da rosa e a alvura do lírio nada tiram do perfume da pequena violeta. “Compreendi que, se todas as pequeninas flores quisessem ser rosas, a natureza perderia o seu adorno primaveril, os campos não ficariam esmaltados de florzinhas”. Dá-se a mesma coisa no mundo das almas, concluiu ela: Deus “quis os grandes Santos, que podem ser comparados aos lírios e às rosas; mas criou também outros menores, e estes devem contentar-se com serem margaridas ou violetas, destinadas a deleitar os olhares de Deus quando olha para o chão. A perfeição consiste em fazer a Sua vontade, em ser o que Ele quer que sejamos” (Manuscrito A, folha 2, verso).
Após destacar a beleza literária e o voo metafísico desse trecho, o autor de Revolução e Contra-Revolução comentou, para um grupo de jovens discípulos, seu caráter contra-revolucionário:
“Ela
levanta o problema do igualitarismo na ordem espiritual, enquanto outros o
levantam na ordem temporal, onde há a mesma desigualdade que Deus pôs na ordem
espiritual: Ele criou, na ordem humana, uns com muitos talentos e outros com
poucos. Um tem uma voz magnífica, outro foi criado com uma voz comum e até, em
virtude do pecado original, um terceiro tem uma voz fanhosa. Essa variedade de
talentos projeta naturalmente uma desigualdade de caráter social, porque é
natural que aquele que é muito mais capaz tenha meios para ganhar mais
dinheiro, para educar seus filhos melhor do que outro, de onde então decorre
uma desigualdade no ponto de partida.
“Santa
Teresinha vai procurar a solução em um campo mais poético e chega a esta
conclusão: O mundo das flores, tomado no seu conjunto, seria muito menos bonito
se Deus, por amor à igualdade, apenas tivesse feito rosas de uma beleza
suprema, mas perfeitamente iguais. Poderia haver coisa mais monótona do que um
jardim com um só tipo de flor e todas iguais umas às outras? A beleza da rosa
só se nos torna compreensível porque há flores diferentes e porque há rosas
desiguais umas das outras. É um modo de mostrar que as coisas pequenas têm
também a sua função, e que, portanto, Deus é mais perfeito criando coisas
grandes e pequenas, do que criando coisas iguais. E que a criação de todo igual
estaria contra a sabedoria e a bondade d’Ele.”
Esse
amor à desigualdade e à hierarquia — que é o cerne do espírito
contra-revolucionário — levava Santa Teresinha a fazer aplicações práticas
muito subtis, nas quais se percebe a finura de seu senso de observação. No
relato de sua peregrinação a Roma, junto com a família e numerosos peregrinos
da diocese de Bayeux, ela conta que gostou muito de Loreto, a cidade para a
qual os anjos levaram a casa de Nazaré, porque “a paz, a alegria, a pobreza
reinam ali como soberanas. Tudo é simples e primitivo”. E acrescenta: “As
mulheres conservaram o gracioso traje italiano e não adotaram, como as de
outras cidades, a moda de Paris” (Manuscrito A, folha 59 verso).
Comenta
Dr. Plinio a esse propósito: “Ela faz sentir a adequação daquela paisagem às
virtudes que a presença de uma tal relíquia como a Santa Casa deveria
disseminar em torno de si. E faz um comentário de caráter essencialmente
tradicionalista, mostrando como as mulheres do lugar fizeram bem em ter
conservado os seus cândidos trajes de outrora, em vez de usarem a moda de
Paris, que era a moda que a Revolução impunha a todos como processo para
cosmopolizar o mundo e para acabar com todas as características regionais.
Vocês podem calcular, através disso, quanto havia de contra-revolucionário na
alma dela e quanto o espírito dela era sensível à observação das circunstâncias
da vida temporal e ao princípio da correlação entre a vida temporal e a vida
espiritual, de sorte que uma boa organização social favorece a prática da
virtude e a santificação. A gente não pode deixar de sorrir pensando que ela
mesma estava vestida do que ela chamava a moda de Paris que, naquele tempo, era
uma moda decente, que respeitava o pudor, mas na qual ela via o mal muito grave
do cosmopolitismo.”
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Peregrinos chegando a Loreto para visitar a casa da Santíssima Virgem. Algumas das senhoras estão com seus trajes típicos (foto da época da viagem de Santa Teresinha) |
“Santa Teresinha era a Joana d’Arc do século
XIX”
Outro traço muito
contra-revolucionário de sua alma era sua combatividade e espírito épico. Por
trás da simplicidade estava uma alma profundamente heroica, que abraçava o sofrimento
sem esmorecer. Para Santa Teresinha, a Pequena
Via não era uma fuga da luta, mas uma forma sublime de travá-la.
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Santa Teresinha no papel de Santa Joana d’Arc em uma obra de teatro no convento |
Dr. Plinio comenta a esse propósito: “Ela era bem a mulher forte do Evangelho. Ela vivia da audácia como se fosse um guerreiro ou um pioneiro de todas as ousadias, mas inteiramente como mulher. Santa Teresinha era a Joana d’Arc do século XIX.”
A
prova disso encontra-se nos seus escritos onde relata que ela sentia em si “a vocação
de Guerreiro, de Sacerdote, de Apóstolo, de Doutor, de Mártir”, assim como
sentia o desejo de realizar por Jesus todas as obras mais heroicas — “sinto na
minha alma a coragem de um cruzado, de um zuavo pontifício, quereria morrer num
campo de batalha pela defesa da Igreja” (Carta à Irmã Maria do Sagrado Coração,
que forma parte do chamado Manuscrito B da História
de uma alma).
Não
menos expressiva é sua poesia “As minhas armas” — uma alegoria dos votos de
pobreza, castidade e obediência, por ocasião da profissão religiosa de sua
prima Soror Maria da Eucaristia —, que tem como epígrafe duas passagens
bíblicas: “Revesti-vos da armadura de Deus, para que possais resistir às
ciladas do demônio” (Ef6, 11) e “A
Esposa do Rei é terrível como um exército em ordem de batalha, ela é semelhante
a um coro de música em um acampamento militar” (adaptação do Cântico dos Cânticos, 6). A poesia
termina com estes versos de fogo: “Se do Guerreiro eu tenho as armas poderosas,
/ se o imito e luto valentemente, / como a Virgem de graças encantadoras, /
também quero cantar enquanto combato. [...] Sorrindo, enfrento a metralha, / e
em teus braços, ó meu Esposo Divino, / cantando, morrerei no campo de batalha,
/ com as armas na mão!” (Poésies, p.
221).
E ainda há esta outra passagem onde afirma: “Oh! não,
eu não temeria ir à guerra. Com que alegria, por exemplo, no tempo das
cruzadas, teria partido para combater os hereges. Sim! Eu não temeria levar um
tiro! E eu, que desejava morrer mártir, será possível que tenha de morrer numa
cama?” (Derniers entretiens, p. 302).
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Santa Joana d’Arc no cerco de Orleans Jules Eugène Lenepveu, (1886-1890). O Panteão, Paris. |
Vida espiritual concebida como uma guerra contra si
mesma
Dr. Plinio comenta: “Os
senhores vejam a fisionomia dela. Quem é que haveria de dizer que nessa
fisionomia entrava o desejo de combater como cruzado? Que ela teria tido a
alegria de se revestir de ferro, da cabeça aos pés, e tomar uma lança e
investir a todo galope contra o adversário, contra os sarracenos, por exemplo?
Uma pessoa, boa psicóloga, diria que sim; agora, a maior parte das pessoas
diria que não. Mas a gente vê quanto ela gostaria de, em vez de morrer tuberculosa
numa cama, morrer num campo de batalha epicamente, morrer matando os inimigos
de Deus. Esta é a alma de uma santa.”
Essa atitude combativa diante
da vida não era, porém, uma veleidade romântica de uma mocinha encerrada num
claustro. Ela a adotava em relação a si mesma. Nos seus escritos, Santa
Teresinha comenta que, ao contrário do bem-aventurado Henrique Suso, que foi armado
cavalheiro por um anjo após grandes penitências corporais que abalaram sua
saúde, “o bom Deus não quis saber de mim como simples soldado, eu fui
imediatamente armada cavaleiro e parti em guerra contra mim mesma, no campo
espiritual, pela abnegação, pelos pequenos sacrifícios escondidos; eu encontrei
a paz e a humildade nesse combate obscuro, onde a natureza não tem nenhuma
ingerência” (Dernières paroles, pp. 237
e 239).
Comenta Plinio Corrêa de
Oliveira: “A doutrina da Pequena Via
está enunciada aí. Não as mortificações físicas terríveis, não os atos
extraordinários que poucos praticam, mas uma via interior toda de sacrifícios.
Pois ela nada tem de comum com a moleza. Santa Teresinha nos ensina aí que nós
devemos conceber a vida espiritual como uma guerra contra nós mesmos; uma
guerra conduzida sob o olhar amoroso de Deus, fazendo sempre o que há de mais
perfeito — é isso o que ela entende como abnegação —, pelos pequenos
sacrifícios, pelas obras escondidas que ninguém vê. A gente vencer os próprios defeitos
espirituais é muito mais duro do que praticar a penitência corporal.”
E
acrescenta: “Muita gente interpreta a Pequena
Via como sendo uma perpétua inércia, um perpétuo descer de um raio de luz
sobre a gente, que nos ilumina e depois nós não temos mais nada que fazer. Isto
é completamente errado. A pequena via supõe a atitude militante de nossa alma
contra os nossos defeitos, contra as tentações que nós sofremos, e isso ainda
que se trate de uma santa.”
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“Chuva de rosas”: prenúncio de uma nova etapa da
humanidade
Por
esses traços marcantes de sua espiritualidade, Santa Teresinha pode ser
considerada como uma santa para a era do Reino de Maria. Há um grande paralelo
entre a pequena via e a escravidão a Nossa Senhora ensinada por São Luís Maria
Grignion de Montfort, pois ambos os caminhos levam à mesma realidade: a entrega
total a Deus por meio da humildade e do amor filial.
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A contínua peregrinação das relíquias de Santa Teresinha é causa de inúmeras graças, que confirmam sua promessa de que após sua morte faria cair sobre o mundo uma chuva de rosas. |
Nesse sentido, em suas reflexões, Dr. Plinio enxergava em Santa Teresinha uma santa profética, que anunciava um novo tempo para a Igreja, em que o mundo será restaurado segundo os desígnios divinos. A santa carmelita de Lisieux, com sua confiança absoluta na Providência e seu amor à Virgem Santíssima, prefigurava essa nova ordem espiritual. A sua “chuva de rosas” pode ser interpretada como um prenúncio de uma nova etapa da humanidade, onde o amor de Deus e a santidade serão, por obra da graça e a rogos de Maria, de maior quilate que nas eras anteriores. Os Apóstolos dos Últimos Tempos — que segundo São Luís Grignion serão, em relação aos santos do passado, como carvalhos ao lado de ervinhas — alcançarão esse grau altíssimo de virtude por serem, em grande parte, almas da Pequena Via, chegando ao extremo da dedicação através do amor e dos pequenos sacrifícios, com base no lema de Santa Teresinha: ‘Para o amor nada é impossível’.”
Essa
dimensão profética de sua via espiritual transparece sobretudo no seu
oferecimento como vítima do amor misericordioso. O seu fundamento encontra-se
numa das passagens mais conhecidas da História
de minha alma, no manuscrito B, redigido a pedido de sua irmã Maria,
justamente após ela exprimir seu desejo de ser missionária, cruzado, mártir:
“A
caridade deu-me a chave de minha vocação. Compreendi que, se a Igreja tinha um
corpo composto de diferentes membros, não lhe faltava o mais necessário, o mais
nobre de todos. Compreendi que a Igreja tinha um coração e que esse coração era
ardente de amor. Compreendi que só o amor fazia agir os membros da Igreja, e
que se o amor viesse a se extinguir, os apóstolos não anunciariam mais o
Evangelho, os mártires recusariam derramar o sangue. Compreendi que o amor
encerra todas as vocações, que o amor é tudo, abraça todos os tempos e todos os
lugares. Numa palavra, ele é eterno. No excesso de minha alegria delirante,
exclamei então: Ó Jesus, meu amor, encontrei enfim minha vocação. Minha vocação
é o amor. Sim, encontrei [meu] lugar na Igreja. E esse lugar, ó meu Deus,
fostes Vós que me destes. No coração da Igreja, minha mãe, eu serei o amor!
Assim serei tudo, assim será realizado o meu sonho.”
Comenta
Dr. Plinio: “Ela entendeu que, trabalhando, rezando, agindo para que aumentasse
o grau de caridade na Igreja Católica, seria como que uma prodigiosa nascente
de vida dentro da Igreja: os profetas seriam fiéis, os doutores seriam lúcidos,
os apóstolos seriam infatigáveis, os guerreiros seriam indomáveis, e na Igreja
tudo começaria a se mover com renovada intensidade. E, então, ela entendeu que
deveria morrer vítima de amor. Vítima pelo amor misericordioso, para que os
outros também amassem, de maneira tal que, por essa retonificação do amor
dentro da Igreja, todas as vocações se realizassem.
“O
holocausto ao amor misericordioso que Santa Teresinha fez tem muita relação com
as graças de conversão de que fala São Luís Grignion de Montfort na sua Oração Abrasada. Porque ela mesma
anunciou que ia espalhar pelo mundo uma chuva
de rosas e vê-se que ela intuía que, em razão do holocausto que ela ia
oferecer, haveria uma nova postura do espírito humano em relação ao amor de
Deus. Na história do amor dos homens a Deus haveria uma modificação, haveria um
capítulo novo que seria aberto pelo sacrifício dela, o qual abriria a Pequena Via e por esta forma mudaria a
atitude tíbia da humanidade em relação a Deus.”
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Santa Teresinha morta (1897) |
“Santa Teresinha foi uma precursora do Reino de Maria”
No
fim de sua curta vida, Santa Teresinha tinha muito claro qual seria seu papel
futuro: “Eu sinto que vou entrar no descanso... Mas, acima de tudo, sinto que
vai começar a minha missão, a minha missão de fazer com que o bom Deus seja
amado como eu O amo, de dar às almas a minha pequena via. Quero passar meu céu
fazendo bem na terra até o fim do mundo” (Dernières
paroles, pp. 166-167).
“A
marcha progressiva do amor misericordioso no mundo”, comentou Dr. Plinio, “é
uma marcha que deverá ser feita a partir do caminho aberto por ela. A Pequena Via acaba sendo a via pela qual
as almas pequenas de uma humanidade decadente serão colhidas pela misericórdia
e levadas à santidade. Santa Teresinha foi uma precursora do Reino de Maria,
porque exatamente o reino das pequenas almas é o Reino de Maria”.
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A Basílica de São Pedro com sua fachada toda decorada e iluminada na noite da canonização de Santa Teresinha |
Todos
os comentários acima adquirem ainda maior relevo quando se toma em consideração
que em 1997 Santa Teresinha do Menino Jesus foi proclamada Doutora da Igreja pelo Papa João Paulo II, o que representa o máximo
reconhecimento da profundidade espiritual e teológica de sua Pequena Via. Embora tenha vivido uma
vida breve e sem nenhuma produção acadêmica, sua doutrina sobre o amor, a
humildade e a confiança total em Deus terá uma influência profunda na espiritualidade
católica até o fim dos tempos. De outro lado, sua elevação a Doutora confirma
que a santidade e a sabedoria não estão necessariamente vinculadas a grandes
tratados teológicos, mas podem manifestar-se na simplicidade de uma vida
entregue inteiramente ao amor divino.
No
centenário de sua canonização, peçamos a Santa Teresinha do Menino Jesus e da
Sagrada Face que, no meio das trevas contemporâneas, continue a iluminar os
caminhos da Igreja e dos fiéis, para que sua Pequena Via, longe de ser considerada um chamado à passividade,
seja verdadeiramente a estrada de uma batalha espiritual que exige coragem,
confiança e entrega. Assim, sua mensagem será a resposta providencial para os
desafios do mundo moderno.
Que
neste jubileu de sua canonização possamos renovar nossa devoção a ela e seguir
seus passos com o mesmo ardor e esperança que animaram Plinio Corrêa de
Oliveira.
Santa Teresinha do Menino
Jesus, rogai por nós!
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Santuário construído para Sta. Teresinha em Lisieux |
Notas:
1. Espiritualidade e estilo artístico associados ao Seminário de São
Sulpício e às lojas de artigos religiosos que funcionavam em seu entorno, em
Paris, caracterizados por um tom devocional
sentimental, com ênfase na ternura e na afabilidade da vida cristã.
2.
Todos os textos citados neste
artigo são extraídos da apostila “Santa Teresinha do Menino Jesus e da Sagrada
Face”, compilada pelo Sr. Enrique Loaiza a partir de artigos de Plinio Corrêa
de Oliveira nos jornais O Legionário e
Catolicismo, assim como de palestras
aos seus discípulos. Eles foram ligeiramente adaptados para a linguagem
escrita.