https://providaanapolis.org.br/aborto-um-preconceito-de-lugar/
(a criança é injustamente
discriminada por estar dentro da mãe)
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Injeção de cloreto de potássio no coração da criança para matá-la |
A Nota Técnica Conjunta nº 2/2024 do Ministério da Saúde[1], publicada em 28
de fevereiro de 2024, mostra, sem dúvida alguma, que os promotores do aborto
defendem um preconceito de lugar.
Segundo a referida Nota, se a criança está
dentro do útero materno, ainda que esteja prestes a nascer, pode ser morta sem
piedade.
O motivo da discriminação não é tanto o tamanho da criança nem o seu
tempo de vida após a concepção. Uma criança nascida prematuramente gozaria do
direito à vida, ainda que fosse menor e mais nova que outra criança em
gestação. Porém, a criança dentro do útero materno não goza de nenhum direito,
estando sujeita às mais cruéis atrocidades.
Com a citada Nota, seriam reprovadas, de uma vez por todas, condutas
louváveis de magistrados e membros do Ministério Público como a da juíza Joana
Ribeiro Zimmer e da promotora Mirela Dutra Alberton[2], que exortaram a
mãe gestante a esperar a criança nascer, em vez de abortá-la, e depois, se
fosse o caso, encaminhá-la para adoção.
A Nota Técnica nº 2/2024 cita trechos da Nota Técnica nº 44/2022 (emitida
durante o governo Bolsonaro) para contestá-los:
Não há sentido em [o aborto] ser realizado em gestações que ultrapassem 21
semanas e 6 dias.
[…]
Sempre que houver viabilidade fetal deve ser assegurada toda a tecnologia
médica disponível para tentar permitir a chance de sobrevivência após o
nascimento.
Eis a contestação:
A viabilidade fetal não pode servir de justificativa para imposição de marco
temporal para o exercício do direito de aborto permitido, nas condições
previstas em lei [n. 3.7].
Para justificar a prática do aborto “sem limites de tempo gestacional” (n.
3.11) ou “em qualquer tempo gestacional” (n. 3.15), argumenta-se que a criança
por nascer não sente dor:
Teorias provenientes de estudos com animais sugerem a possibilidade de um
estado intrauterino permanente de inconsciência, sobretudo pela presença de
substâncias químicas como a adenosina, que suprime a ativação cortical maior na
presença de um estímulo externo. Isso significa que, até o nascimento, quando
ocorre a separação do recém-nascido do ambiente uterino, o feto muito
provavelmente não é capaz de sentir dor [n. 3.14].
Quem já assistiu ao filme “O grito silencioso” [1984], de Dr. Bernard Nathanson, que
mostra, por ultrassonografia, o aborto de um bebê de três meses, sabe quão
disparatada é a afirmação de que a criança, ao ser abortada, não sente dor. No
vídeo, pode-se ver como seus batimentos cardíacos vão-se acelerando e como ela
tenta, a todo custo, fugir do tubo de aspiração que vai desmembrá-la. Em um
certo momento, ela abre a boca como se quisesse gritar: é o “grito silencioso”,
que deu nome ao filme.
Se, conforme a Nota Conjunta nº 2/2024, o nascituro não sente dor, pode-se
matá-lo “em qualquer tempo gestacional, com a indução de assistolia fetal
quando indicada” (n. 3.15). Induzir a “assistolia fetal” é causar a morte do
nascituro (por exemplo, injetando cloreto de potássio em seu coração) antes de
sua expulsão do organismo materno.
Reação do povo e suspensão da Nota
Ministra
da Saúde Nísia Trindade
Como a notícia da edição da Nota Técnica nº 2/2024 espalhou-se rapidamente
pelas redes sociais, os protestos foram tão numerosos, que, no dia seguinte, 29
de fevereiro de 2024, às 15 horas, a Ministra Nísia Trindade comunicou a
suspensão da Nota. Segundo ela,
… o documento não passou por todas as esferas necessárias do Ministério da
Saúde e nem pela consultoria jurídica da Pasta, portanto, está suspenso[3].
Reação do CFM contra a assistolia fetal
No dia 3 de abril de 2024, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução
CFM nº 2.378/2024, que assim dispõe:
Art. 1º – É vedado ao médico a realização do procedimento
de assistolia fetal, ato médico que ocasiona o feticídio, previamente aos
procedimentos de interrupção da gravidez nos casos de aborto previsto em lei,
ou seja, feto oriundo de estupro, quando houver probabilidade de sobrevida do
feto em idade gestacional acima de 22 semanas[4].
Apreciação moral e jurídica
A reação do povo e do CFM ao aborto tardio é louvável. Mas as razões de tal
reação precisam ser purificadas de todo erro quanto à Moral e ao Direito.
A Nota Técnica 2/2024 afirmava – e seus opositores não negaram – que no
Brasil existe um aborto “permitido” pelo Código Penal, “previsto em lei”, que
constitui um “direito” da mulher grávida em razão de um estupro. Eis a
argumentação da referida Nota:
O artigo 128 do Código Penal, a seguir transcrito, não prevê qualquer limite
de tempo gestacional:
Art. 128 – Não se pune o aborto praticado por médico:
Aborto necessário
I – se não há outro meio de salvar a vida da gestante;
Aborto no caso de gravidez resultante de estupro
II – se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de
consentimento da gestante ou, quando incapaz, de seu representante legal.
Destarte, se o legislador brasileiro ao permitir o aborto, nas hipóteses
descritas no artigo 128 não impôs qualquer limite temporal para a sua
realização, não cabe aos serviços de saúde limitar a interpretação desse
direito, especialmente quando a própria literatura/ciência internacional não
estabelece limite [n. 3.7; 3.8].
Partindo da premissa (falsa) de que o aborto é um “direito”, o que disse a
Nota é coerente: a lei não estabelece nenhum limite para o exercício desse
“direito”. E conforme o provérbio jurídico, “onde a lei não distingue, também
nós não devemos distinguir” (Ubi lex non distinguit, nec nos distinguere
debemus). Logo, o (suposto) direito de matar estende-se aos nove meses de
gestação.
Na suposição de que, em 1940, o Código Penal, ao entrar em vigor,
“autorizou” o aborto, é curioso pensar que tal “legalização” ocorresse sem
nenhuma restrição temporal. Não que o aborto no início da gestação seja menos
grave que o aborto tardio, mas este último causa uma especial repulsa na
população. Em todos os países em que entra alguma “lei do aborto”, ela começa
especificando o limite (por exemplo, até três meses) em que se permite tal
prática.
Por que o artigo 128 do Código Penal não prevê um limite de tempo para a
prática do aborto? Simplesmente porque ele não permite o aborto. Porque,
naquele artigo, não está escrito que o aborto “é permitido”, nem sequer está
escrito que o aborto “não é crime”. O que está escrito é que em duas hipóteses
o aborto praticado por médico “não se pune”. Segundo o magistério de Ricardo
Dip, Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo,
… a leitura do caput do mencionado art. 128 (“Não se pune
etc.”) está, para logo, a sugerir que aí se acham causas isentas de apenamento
ou, quando muito, excludentes da punibilidade […]. Está a cuidar-se das
chamadas escusas absolutórias, causas que, excluindo a pena, deixam
subsistir, contudo, o caráter delitivo do ato a que ela se relaciona[5].
Eis a lição de Marco Antônio da Silva Lemos, ex-Desembargador do Tribunal de
Justiça do Distrito Federal e Territórios:
Em nossa legislação penal, o aborto é e continua crime, mesmo se
praticado por médico para salvar a vida da gestante e em caso de estupro, a
pedido da gestante ou de seu responsável legal. Apenas – o que a legislação
infraconstitucional pode e deve fazer, porque a Constituição, como irradiação
de grandes normas gerais, não é código e nem pode explicitar tudo – não
será punido penalmente, por razões de política criminal.[6]
As escusas absolutórias, ao deixarem de aplicar a pena a um criminoso, não
costumam exigir limite para a gravidade do crime. O artigo 181 do Código Penal
diz que “é isento de pena quem comete qualquer dos crimes
previstos neste título [crimes contra o patrimônio]” em prejuízo do cônjuge
(inciso I), do ascendente ou descendente (inciso II). Assim, o filho que furta
do pai comete crime, mas fica isento de pena. E essa isenção vale seja para o
furto de R$ 1,00, seja para o furto de R$ 100.000,00. A lei achou por bem não
aplicar a sanção penal nesse caso, por julgar que a família pode, por si mesma,
resolver a questão sem a intervenção do Estado. Mas de modo algum a lei aprova
a conduta delituosa do filho.
Igualmente, o artigo 348 do Código Penal, ao tratar do crime de
favorecimento pessoal, declara que “fica isento de pena” (§ 2º) o “ascendente,
descendente, cônjuge ou irmão” do criminoso que auxiliar este último a
“subtrair-se à ação da autoridade pública” (caput). Assim, a mãe que
esconde o filho criminoso da polícia fica isenta de pena, seja o filho autor de
um furto de alimento em supermercado, seja o filho autor de um homicídio
qualificado. A lei perdoa a conduta da mãe se ela já foi consumada,
mas de modo algum dá à mãe o “direito” de praticá-la.
Com o artigo 128 do Código Penal, dá-se algo semelhante. A lei não aprova a
conduta do médico que mata a criança para salvar a vida da mãe[7] ou que mata a
criança para descarregar sobre ela a fúria contra o pai que cometeu estupro[8]. Se, porém, o
aborto já ocorreu, a lei não pune o médico (talvez levando em conta suas “boas
intenções”[9]), qualquer que
tenha sido a idade ou o tamanho do nascituro vítima do crime.
O ouro entregue ao bandido
Embora o Conselho Federal de Medicina tenha proibido ao médico o aborto após
as 22 semanas, o texto reconhece que há um “aborto previsto em lei” (sic)
quando a gravidez resulta de estupro. Admitir que há um aborto “legal” no
Brasil é “entregar o ouro ao bandido”. E depois de entregue, dificilmente o
bandido devolve uma parte do ouro. Ou seja, ao conceder (erroneamente) que a
lei “permite” o aborto, dificilmente os abortistas desistirão do “direito” ao
aborto tardio. Bem melhor seria se o CFM argumentasse que em nenhum caso o
aborto é permitido pela lei. E a conclusão seria vedar ao médico não apenas a
prática do aborto tardio, mas a prática de qualquer aborto.
A Resolução CFM Nº 2.378/2024 traz em seu relatório, alguns casos em que
seria lícita a nefanda prática da “assistolia fetal”:
Existem situações na obstetrícia em que o procedimento da assistolia
embrionária/fetal traz benefícios no que se refere a menor risco para a gestante,
como a gravidez ectópica com uso de metotrexate para tratamento. […] Existem
situações peculiares descritas, e outras que podem surgir, que justificariam o
procedimento de assistolia fetal ao reduzir o risco de morte materna.
Ora, o “menor risco para a gestante” não justifica a morte direta de seu
filho inocente[10], seja em caso de
gravidez ectópica (fora do útero, usualmente na trompa), seja em qualquer outro
caso. Essa lição de Bioética ainda precisa ser aprendida pelo CFM.
Em 2022, durante o governo Bolsonaro, o Ministério da Saúde emitiu um Manual
chamado “Atenção técnica para prevenção, avaliação e conduta nos casos de
abortamento”[11]. Naquele
documento, pela primeira vez na história, o Ministério da Saúde reconheceu que
não existe aborto “legal”. Leiamos:
Não existe aborto “legal” como é costumeiramente citado, inclusive em textos
técnicos. O que existe é o aborto com excludente de ilicitude. Todo aborto é um
crime, mas quando comprovadas as situações de excludente de ilicitude após
investigação policial, ele deixa de ser punido, como a interrupção da gravidez
por risco materno. O acolhimento da pessoa em situação de aborto previsto em
lei deve ser realizado por profissionais habilitados [p. 14].
O texto acima traz um erro grave, ao dizer: “o que existe é o aborto com excludente
de ilicitude”, uma vez que excluir a ilicitude é o mesmo que tornar lícita
ou legal a conduta. O correto seria dizer: “o que existe é o aborto com exclusão
da pena ao médico criminoso”. Depois de ter negado a existência do aborto
“legal”, o parágrafo termina falando do aborto “previsto em lei” (o que
equivale a “legal”) e admite que ele seja praticado pela rede hospitalar
pública. É verdade que o Manual oferece alternativas ao aborto (como a entrega
da criança para adoção) e limita sua prática até 21 semanas e 6 dias. Mas
infelizmente, o texto também “entrega o ouro ao bandido”, ao admitir o aborto
“previsto em lei”. Se o documento fosse coerente até o fim com a afirmação de
que não existe aborto “legal”, deveria vedar qualquer tipo de aborto aos
profissionais de saúde.
Conclusões
- Foi maravilhoso o efeito
imediato das redes sociais na suspensão da Nota Técnica Conjunta nº
2/2024. Se em novembro de 1998, a Internet dispusesse dos recursos de
hoje, provavelmente o clamor popular teria feito o Ministério da Saúde
suspender a primeira Norma Técnica do aborto, chamada “Prevenção e
Tratamento dos Agravos Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e
Adolescentes”.
- Nunca será possível
extirpar do Brasil a prática do aborto enquanto algum de nós, fazendo o
jogo do adversário, admitir a tese falsa de que existe aborto “legal”
neste país.
- A afirmação de que no
Brasil não existe aborto “legal” deve levar à consequência lógica de
proibir toda prática abortiva, e não apenas a prática do aborto após 22
semanas.
Anápolis, 13 de abril de 2024.
Pe. Luiz Carlos Lodi da Cruz
Vice-presidente do Pró-Vida de Anápolis.
[1] MINISTÉRIO DA SAÚDE.
Secretaria de atenção primária à saúde. Secretaria de Atenção Especializada à
Saúde. Nota Técnica Conjunta Nº 2/2024 – SAPS / SAES / MS. Brasília, 28 fev.
2024. Não está mais disponível na página do Ministério da Saúde.
[2] A juíza e a promotora
tentaram, em Santa Catarina, impedir um aborto de uma criança de 22 semanas de
vida dentro do útero de outra criança de 11 anos de nascida que engravidou ao
praticar o ato sexual com um menino de 13 anos. Lamentavelmente o bebê foi
abortado já no sétimo mês de vida, em 22 de junho de 2022, possivelmente após
receber uma injeção de cloreto de potássio no coração. Quanto à juíza, foi alvo
de uma Reclamação Disciplinar junto ao Conselho Nacional de Justiça por ter
tentado impedir um aborto “legal”.
[3] https://www.gov.br/saude/pt-br/canais-de-atendimento/sala-de-imprensa/notas-a-imprensa/2024/posicionamento-do-ministerio-da-saude-sobre-a-nota-tecnica-2-2024
[4] https://sistemas.cfm.org.br/normas/arquivos/resolucoes/BR/2024/2378_2024.pdf
[5] Ricardo Henry Marques
DIP. Uma questão biojurídica atual: a autorização judicial de aborto eugenésico:
alvará para matar. Revista dos Tribunais, dez. 1996. p. 531-532.
[6] Marco Antônio Silva
LEMOS, O Alcance da PEC 25/A/95. Correio Braziliense, 18 dez. 1995,
Caderno Direito e Justiça, p. 6.
[7] Nunca é lícito matar
diretamente um inocente, nem sequer para salvar outro inocente.
[8] “Nenhuma pena passará
da pessoa do condenado” (art. 5º, XLV, CF). Se o pai cometeu estupro, o filho
não pode sofrer pena de morte.
[9] Diz o provérbio: “De
boas intenções o inferno está cheio”.
[10] “Ninguém, em nenhuma
circunstância, pode reivindicar para si o direito de destruir diretamente um
ser humano inocente” (Catecismo da Igreja Católica, n. 2258).
[11]http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/atencao_prevencao_avaliacao_conduta_abortamento_1edrev.pdf