29 de agosto de 2021

CONFITEOR

  Plinio Corrêa de Oliveira 

O “Legionário”, 26 de setembro de 1937, Nº 263. 

Fac-símile do "Legionário" que publicou
o artigo sobre o livro "Confiteor"
O livro de Paulo Setúbal é muito mais do que o histórico de uma alma ou até mesmo de uma geração. Ele é a própria história viva e empolgante do drama espiritual do Brasil contemporâneo. Todos aqueles que têm qualquer parcela de responsabilidade pelos destinos do Brasil, pais de família, professores, sociólogos, estadistas, deveriam ler a extraordinária experiência íntima de Paulo Setúbal. Através de suas páginas de sangue, não é apenas um homem que chora e que sofre. 

“Confiteor” é o grito lancinante de gerações inteiras que foram desviadas de Deus: o grito não apenas da geração de Paulo Setúbal, mas de todas as outras que se lhe tem seguido até aqui, e ainda de algumas outras que virão. 

Não pertenço à geração de Paulo Setúbal. Mas a tal ponto é verdade que seu livro é o drama de todos os brasileiros deste século que, ao ler o “Confiteor”, tive a impressão de ser ele um mosaico em que se engastavam pedacinhos de meu próprio passado, de permeio com episódios e impressões que companheiros do meu tempo me contaram em confidência, ou que neles espreitei furtivamente, nos rápidos instantes em que as almas, distraidamente, se abrem. Entre a geração de Paulo Setúbal, a minha e as que se lhe seguiram, há mais do que simples analogias, há identidades profundas no sentir e no pensar. A bem dizer, a diferença foi só uma, mas esta formidável, essencial, básica: o movimento mariano que proporciona aos moços de hoje o ambiente salvador que a Paulo Setúbal e aos do seu tempo faltou inteiramente. Uma diferença, pois, que é uma atenuante para ele e uma agravante para nós. 

*   *   * 

Plinio Corrêa de Oliveira na época 
em que era diretor do "Legionário"
“Confiteor” é o grito lancinante de gerações inteiras que foram desviadas de Deus. Em substância, o drama de Paulo Setúbal foi o de uma alma que perdeu a pureza e mais tarde perdeu a Fé, que se esquivou sistematicamente aos chamamentos divinos que eram para ele a moléstia e a vocação sacerdotal, e que, no ocaso prematuro de sua vida, se voltou para Deus em um magnífico gesto de contrição, que encheu de nobreza, de esplendor e de santidade os últimos meses de sua existência terrena

Mas este drama é de tal maneira vivido, de tal maneira sentido, de tal maneira narrado, que o eleva às culminâncias de uma das mais belas obras do gênero em nossa literatura contemporânea. Maior, por exemplo, do que o comovedor e deslumbrante prefácio de Antero de Figueiredo no “Último Olhar de Jesus”. 

Paulo Setúbal foi um dos corações mais genuinamente brasileiros que jamais tenham pulsado em nossa terra. E por isto, tudo o que ele nos conta de si se aplica, com variantes, a cada um de nós. 

Criança ainda, sua alma era um fino vaso de cristal, que continha as flores dos mais delicados sentimentos. A Fé, a pureza, o amor filial, a simplicidade, tinham em sua alma aquele delicado e alvo esplendor de meiguice, que é a nota distintiva inefável, suavidade do culto piedoso ao Salvador, pela doçura incomparável do amor de sua mãe, o coração de Paulo Setúbal foi na infância aquele “coeur d´un homme vierge” [coração de um homem virgem] que ele mesmo compara a um vaso de insondável profundidade. E o vaso estava cheio até os bordos dos mais puros e preciosos perfumes. 

Mas é só do coração de Paulo Setúbal que se poderia dizer tudo isto? Qual o brasileiro batizado que não guarda, da manhã de sua vida, impressões análogas? 

Veio depois a hora da tentação. O primeiro assalto foi o da impureza. O respeito humano, as solicitações instantes de nosso meio social corrupto, o exemplo escandaloso de toda a sua geração, montaram o assalto ao “coeur d´un homme vierge”, ao coração profundo como um vaso profundo, e cheio até os bordos, de inebriantes perfumes. E o vaso trincou-se. Mais tarde, a brecha se tornaria mais larga, até que o vaso se partisse em cacos. 

Trincou-se por quê? A mãe, uma santa. O professor, outro santo. O colégio, autenticamente católico. Por que, então, trincou-se o vaso? 

Porque a formação religiosa não fora tão profunda, nem tão completa, nem tão perfeita, quanto seria mister. E quando o assalto do mundo, do demônio e da carne investiu sua alma, ele baqueou. Baqueou porque era forte demais para ela o exemplo unânime dos colegas, o escárnio dos irmãos, a atração da concupiscência. 

Para resistir, teria sido necessária instrução religiosa, formação espiritual ou ao menos amigos bons. 

E Paulo Setúbal só encontrou tudo isto pela metade da parte de todos, excetuada talvez sua Mãe. Mire qualquer brasileiro este quadro, e diga, caso ele não tenha a graça de ser virgem, se esta história é só de Paulo Setúbal, ou se não é também a sua. 

*   *   * 

Paulo Setúbal com o fardão
da Academia Brasileira de Letras
 
Alargou a brecha a impiedade. Por falta de instrução religiosa, por injunções do ambiente, pelo sarcasmo dos amigos maus e pela ausência dos amigos bons, Paulo perdeu a Fé. Porém perdeu-a também, e cumpre não esquecê-lo, porque na sua alma não habitava mais a pureza que agrada ao Cordeiro de Deus. 

Mas perdeu Paulo realmente a Fé? Ele o afirma, e eu o creio. Mas ele perdeu a Fé como a perdem os brasileiros em geral: isto é, muito menos pelo fato de inteligência mal informada no ver a verdade, do que pela recusa da vontade em praticar o bem. 

E por isto este rapaz incréu, afogado na sensualidade que dele fizera uma alma gananciosa, sensual e frívola, tinha súbitos movimentos para Deus. Quando entrou para a Ordem Terceira do Carmo, e quando sentiu vocação para o Sacerdócio, que objeções lhe fez sua inteligência de incrédulo? Nenhuma. Porque, no fundo, não tinha nenhuma a fazer. Incrédulo, ele o era. Mas muito mais porque não queria crer, do que porque realmente não cresse. 

Paulo Setúbal quis ser Padre! Quem haveria de o supor, lendo há 6 ou 8 anos atrás as suas obras! Mas abra-se tanto e tanto coração que por aí anda soberbo e endurecido. E diga-se depois se também ele não teve horas em que a graça de Deus o visitou no fundo do abismo, como visitou o filho pródigo quando mais duro ia o seu exílio. Aí, como no mais, o drama de Paulo Setúbal é o arquétipo do drama espiritual contemporâneo. 

*   *   * 

Paulo Setúbal no dia de seu casamento
com Francisca de Sousa Aranha
Finalmente, quando sua vida declinava para o ocaso, Paulo Setúbal se converteu. Sua conversão foi profunda e sua contrição amarga. 

Com que carinho de filho Paulo Setúbal se refere ao Bom Pastor que encontrou na tarde de sua vida! Quanto daria eu para saber que longas horas de conversação teve Paulo com Cristo, para poder amá-Lo com tão extremosa adoração! 

É preciso ler o que Paulo escreveu de Cristo, para se avaliar a doçura do que Cristo disse a Paulo nessas longas horas de intimidade. 

Mas o amor de Paulo não ficou aí. Ele se expandiu no apostolado, e a obra que ele produziu foi esse extraordinário “Confiteor”, ardente apologia da Fé e da Pureza que ele lança, do fundo da sepultura mas também do alto da glória dos justos, à mocidade de sua terra.

Com que humildade autêntica ele o fez! Com que pesar sincero! Com que amor radioso ao Coração de Jesus! 

Todas as pessoas a quem a idade e outras circunstâncias permitem leituras realistas, deveriam ler “Confiteor”. Ele é um presente de Paulo Setúbal, moribundo, a todos os brasileiros, mas especialmente às almas virginais ou contritas, que vivem sob o manto da Virgem das virgens, para que amemos ainda mais o bem que praticamos, ou choremos mais o mal que fizemos. 

*   *   * 

É curioso, mas eu, que nunca vi Paulo Setúbal, fiquei com saudades dele ao terminar a leitura de seu livro. Saudades dele e simpatia para com as figuras privilegiadas em cujo convívio ele introduz o leitor: sua santa mãe, seu professor, sua esposa, sua admirável filhinha [Teresinha, que morreu em odor de santidade — Vide Catolicismo, Nº 844, abril/2021]. 

É a todos eles, à memória dos que foram e à virtude dos que ficaram, que dedico este artigo. É uma homenagem sem o valor literário de outras, mas entusiástica, sincera e comovida como poucas.

28 de agosto de 2021

O brilhante escritor Paulo Setúbal

Da esq. para a dir.: Olavo, Maria Vicentina, Maria Teresa, Paulo Setúbal. 

“No ocaso prematuro de sua vida, se voltou para Deus em um magnífico gesto de contrição, que encheu de nobreza, de esplendor e de santidade os últimos meses de sua existência terrena” (Plinio Corrêa de Oliveira). 

  Da redação de Catolicismo *


Antes de entrar no tema principal deste artigo, que revela a grande personalidade do literato Paulo Setúbal, pai da admirável e virtuosa adolescente Maria Teresa Setúbal, precisamos fazer uma retificação.

Catolicismo publicou como matéria de capa, em sua edição de abril passado, o artigo Teresinha Setúbal, adolescente paulista morta em odor de santidade. Na identificação que fizemos dela na foto, onde aparece com o pai e os irmãos, cometemos um equivoco. Imaginávamos que ela fosse a mais nova dos três filhos do escritor, entretanto a caçula chamava-se Maria Vicentina. Teresinha era a segunda, a filha do meio [foto acima]. 

E na edição de junho, na legenda da página 44, repetimos o mesmo equivoco. Na foto do escritor com seus filhos, Teresinha é a primeira da direita. 

Só recentemente, ao visitarmos a sepultura da família Paulo Setúbal no Cemitério São Paulo, constatamos nosso equívoco. Observando as datas nas lápides do túmulo [foto abaixo], descobrimos o erro, o que posteriormente confirmamos em outros documentos. Pedindo desculpas pela informação equivocada, entramos no tema deste artigo. 

Paulo de Oliveira Leite Setúbal, advogado, deputado estadual, jornalista, ensaísta, poeta e romancista, membro das Academias Paulista e Brasileira de Letras, de Institutos Históricos e Geográficos de São Paulo e do Brasil, nasceu em Tatuí, no interior de São Paulo, em 1º de janeiro de 1893. Órfão de pai aos quatro anos, coube à sua mãe o ônus de cuidar de nove filhos pequenos. Depois de seus primeiros estudos em sua cidade natal, o adolescente Setúbal mudou-se para São Paulo, onde estudou por seis anos no Ginásio Nossa Senhora do Carmo, dos irmãos maristas. 

Morando no mesmo quarto que seu irmão mais velho, estudante de Direito, sofreu a má influência dos amigos dele, tornando-se cético e quase ateu. Afirma ele em sua obra CONFITEOR: “Deus desaparecera de minha vida. Desaparecera totalmente. Igreja? Não mais pisei a nave de uma só. Missa? Nunca mais. Nem mesmo de sétimo dia. Reza? Oh, que coisa ridícula... Nunca mais disse uma ‘ave-maria’. E padre? De padre nem é bom falar”. 

Matriculou-se também na Faculdade de Direito. Ainda frequentava o 2º ano, quando decidiu tornar-se jornalista. Tal foi o êxito de suas primeiras poesias publicadas no diário A Tarde, que se tornou seu redator. Foi nessa época que começou a sentir os primeiros sinais da tuberculose, que o obrigaria a frequentes interrupções no trabalho, para repouso.

Com o organismo enfraquecido pela tuberculose, Paulo Setúbal foi fácil presa para a terrível pandemia da “gripe espanhola”, em 1918. A fim de se recuperar, partiu para Lages (SC), onde morava seu irmão mais velho. Lá se tornou um advogado bem-sucedido e muito procurado. Entretanto, levava uma vida dissoluta. Dois anos depois, cansado de tudo, voltou para São Paulo e se estabeleceu como advogado, tendo razoável sucesso. 

No começo de 1920 ocorreu ao então jovem advogado, que trouxera de Lages muitas poesias, juntá-las a outras escritas anteriormente. Com o livro de poesias A alma cabocla, teve início a principal fase da produção literária de Paulo Setúbal. 

O escritor sabia como romancear os fatos do passado, tornando-os vivos e agradáveis à leitura. Os livros que escreveu sobre o ciclo das bandeiras, tinham o sentido social, segundo os críticos da época, de levantar o orgulho do povo bandeirante na fase pós-Revolução constitucionalista (1932) em São Paulo, trazendo o passado em socorro do presente. 

Em 1922, Paulo se casou com Francisca de Souza Aranha, de uma das mais aristocráticas famílias de São Paulo, de quem teve três filhos: Olavo, Maria Teresa — ou Teresinha, a que morreu em odor de santidade, sobre a qual já tratamos — e Maria Vicentina. Deve-se dizer que o casamento de Paulo com Francisca teve o apoio integral do pai dela, Olavo Egídio de Souza Aranha, e constituiu a feliz união de duas almas ardorosas. Com sua profunda piedade, ela conseguiu aos poucos levar o marido de volta à prática da Religião. 

Em sua autobiografia, Confiteor, Paulo Setúbal explica sua metamorfose: “Transformação nas ideias, transformação nos gostos, transformação nas leituras, transformação no modo de encarar a vida. Transformação até mesmo — que se havia de dizer? — na escolha dos amigos. Cheguei a ponto de pensar que eu havia mudado radicalmente. Que eu me tornara o ‘homem novo’ do Evangelho”. Sobre a brasinha de fé que ele sempre conservou, apesar do aparente ateísmo, ele afirma: “fui um cristão que se converteu ao cristianismo”

Sobre essa autobiografia, recomendamos leitura [no post que publicaremos amanhã] do depoimento do líder católico Plinio Corrêa de Oliveira — então com apenas 29 anos, futuro fundador da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade —, publicado em O Legionário no dia 26 de setembro de 1937. 

Francisca procurava sempre dar alento a Paulo em sua terrível doença, incentivando-o em suas obras literárias, datilografando seus livros. Dedicada ao extremo, nunca deixou de se mostrar carinhosa, de animá-lo, e quando ele estava ausente, de lhe transmitir notícias sobre seus inteligentes filhos Olavo, Teresinha e Vicentina. 

Paulo atuou como deputado por cerca de dois anos, mas por sentir-se doente, com os pulmões tomados pela tuberculose mal curada, renunciou ao cargo em 1930. 

No seu discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras, Paulo Setúbal fez um sentido preito de homenagem à sua extremosa mãe: “Deixai, pois, senhores acadêmicos, que o meu coração voe para a casa modesta do bairro sem luxo, entre no quarto do oratório, ajoelhe-se diante da velha branquinha, beije-lhe as mãos e, na brilhante noite engalanada deste triunfo, diga-lhe por entre lágrimas: minha mãe, Deus lhe pague!”

Finalmente, em maio de 1937, chega para o ilustre escritor, tornado um praticante católico, a hora de se apresentar diante do trono de Deus. Ele quer morrer com dignidade e humildade. Deseja enterro humilde, e como mortalha o hábito da Ordem do Carmo, à qual entrara como Irmão Terceiro na juventude. 

Eis sua recomendação para os que se reuniram em torno de seu leito de morte: “Diga aos meus amigos que morro feliz, porque tenho fé. Não quero viver ou morrer, seja o que Deus quiser. Deixo o mundo, que nada vale, para ir me encontrar com Cristo. Não fiquem tristes. Que são vinte ou trinta anos de separação diante da eternidade, onde estaremos todos juntos? Morro feliz, vou enfim ver o meu Jesus”. 

Às quatro horas da madrugada do dia 4 de maio de 1937, após receber piedosamente a extrema-unção, ele morreu placidamente, sem nenhuma queixa, aos 44 anos de idade.
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* Fonte: Revista Catolicismo, Nº 848, Agosto/2021

15 de agosto de 2021

O LEÃO E A LEGITIMIDADE


Ele tem o direito de ser rei, ele manda, tem a garra do rei, o colorido próprio das coisas régias, que é o áureo 

  Plinio Corrêa de Oliveira 


E
scolhi o leão como símbolo da TFP* porque ele sempre me lembrou de um princípio do qual sou muito cioso e faço muita questão de mantê-lo em todos os assuntos: o princípio da legitimidade. Que o poder, a influência, a sabedoria, a glória, estejam em mãos de quem de direito, esse seria um modo muito resumido de definir o princípio da legitimidade.

É evidente que o leão é entre os animais o que a rosa é entre as flores. A rosa é naturalmente rainha. Coloque-se uma rosa verdadeiramente bonita no meio de qualquer outra espécie de flores, inclusive entre as nossas orquídeas tantas vezes lindas, e a rosa supera.

Coloque-se um leão entre todos os outros animais, estes se eclipsam. O elefante é maior, mas que massa bruta! O camelo anda muito, mas não tem a marcha garbosa. O leão marcha garbosamente e salta, [enquanto] o camelo anda. 

Observem a raposa. Ela é esperta, mas frágil; quando a esperteza não lhe traz resultado, ela está perdida. Tomem todos os outros animais, eles têm alguma qualidade eminente, mas não têm aquele conjunto de qualidades pelo qual o leão é o leão. 

O leão é o rei. Ele tem o direito de ser rei, ele manda, tem a garra do rei, o colorido próprio das coisas régias, que é o áureo. 

 



* O leão heráldico é o símbolo da TFP — Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade — fundada pelo Prof. Plinio fundada em 1960. 











Excertos da conferência proferida por Plinio Corrêa de Oliveira em 7 de fevereiro de 1987. Esta transcrição não passou pela revisão do autor.

13 de agosto de 2021

A maravilhosa Assunção de Nossa Senhora


“A Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de sua vida terrestre, foi assunta em corpo e alma à glória celestial” 

Com essas imorredouras palavras, o Santo Padre Pio XII definiu o dogma da Assunção da Santíssima Virgem ao Céu em corpo e alma, solenemente proclamado no dia 1º de novembro de 1950, pela Constituição dogmática “Munificentissimus Deus”
A mais importante festividade mariana deste mês é a celebração dessa gloriosa subida ao Céu. Em recordação do grandioso acontecimento, oferecemos a nossos leitores o seguinte excerto de uma palestra do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, em 14-8-65: 
*   *   *
“O dogma da Assunção de Nossa Senhora foi ardentemente desejado pelas almas católicas do mundo inteiro, porque é mais uma das afirmações a respeito da Mãe de Deus que A coloca completamente fora de paralelo com qualquer outra mera criatura e justifica o culto de hiperdulia que a Igreja lhe tributa.

“Nossa Senhora teve uma morte suavíssima, tão suave que é qualificada pelos autores, com uma propriedade de linguagem muito bonita, a “Dormição da Bem-Aventurada Virgem Maria” (Dormitio Beatae Mariae Virgine), indicando que Ela teve uma morte tão suave, tão próxima da ressurreição que, apesar de constituir verdadeira morte, entretanto é mais parecida a um simples sono. Nossa Senhora, depois da morte, ressuscitou como Nosso Senhor Jesus Cristo, foi chamada à vida por Deus e subiu aos Céus na presença de todos os Apóstolos ali reunidos, e de muitos fiéis. 

O gáudio da Igreja triunfante (no Céu), da Igreja militante (na Terra) e da Igreja padecente (no Purgatório) 

“Essa Assunção representa para a Virgem Santíssima uma verdadeira glorificação aos olhos dos homens e de toda a humanidade até o fim do mundo, bem como proêmio da glorificação que Ela deveria receber no Céu. 

“A Igreja triunfante inteira vai recebê-la, com todos os coros de anjos; Nosso Senhor Jesus Cristo a acolhe; São José assiste à cena; depois Ela é coroada pela Santíssima Trindade. É a glorificação de Nossa Senhora aos olhos de toda a Igreja triunfante e aos olhos de toda a Igreja militante. Com certeza, nesse dia, a Igreja padecente também recebeu uma efusão de graças extraordinárias. E não é temerário pensar que quase todas as almas que estavam no Purgatório foram então libertadas por Nossa Senhora nesse dia, de maneira que ali houve igualmente uma alegria enorme. Assim podemos imaginar como foi a glória de nossa Rainha. 

“Algo disso repetir-se-á, creio, quando for instaurado o Reino de Maria, quando virmos o mundo todo transformado e a glória de Nossa Senhora brilhar sobre a Terra”.

7 de agosto de 2021

A homo-heresia se introduzindo na Igreja?

Martinho Lutero, o frade sem vocação, pregou seu libelo de revolta na porta da igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, Saxônia

Em uma detonação simbólica, as bênçãos da Igreja alemã a parceiros do mesmo sexo desencadeiam uma rebelião
 

✅  Luiz Sérgio Solimeo 

Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero, o frade sem vocação, pregou seu libelo de revolta na porta da igreja de Todos os Santos, em Wittenberg, Saxônia. Embora tudo já tivesse sido meticulosamente preparado para essa revolta, aquele gesto simbólico desencadeou no seio da Igreja Católica a apostasia de grande parte da Europa. 

A essa altura, as universidades já ensinavam filosofias subjetivistas que, ao negarem a realidade, negavam a verdade. Parte do clero tornou-se mundana e aderiu às novas doutrinas. Por sua vez, uma nobreza cobiçosa e decadente estava de olho nos bens da Igreja. Carlos V, um fraco imperador católico, e Leão X, um Papa da Renascença, mais preocupado com política e prazeres, permitiram que a revolta se espalhasse.[1] 

Novo gesto simbólico: abençoando “casais” homossexuais 

Cinco séculos depois, as chamas dessa revolta voltaram a arder. No dia 22 de fevereiro de 2021, a Congregação para a Doutrina da Fé respondeu negativamente a uma pergunta (dubium) sobre a licitude de abençoar as uniões do mesmo sexo. O Papa Francisco aprovou essa resposta . 

Declarações individuais de bispos, grupos de sacerdotes e teólogos começaram imediatamente a aparecer, preparando o terreno para um ato aberto de desafio à Fé. 

Em 10 de maio de 2021, padres e diáconos católicos — com o apoio ativo ou passivo dos bispos — abençoaram pares do mesmo sexo em cerca de 100 igrejas na Alemanha, localizadas em aproximadamente 80 cidades. Foi um ato de rebelião aberta[3] contra a Santa Sé, que havia condenado a prática. 

Como Lutero ao pregar suas 95 teses na porta da igreja do castelo de Wittenberg em 1517, as recentes bênçãos ilícitas a pares homossexuais, mais do que simplesmente contradizerem a nota da Congregação para a Doutrina da Fé, constituíram um gesto cheio de simbolismo. Tratou-se de uma negação pública da doutrina perene da Igreja de que qualquer ato sexual contrário aos fins do casamento, especialmente o ato contra a natureza, é pecado gravíssimo. Aqueles que vivem em uma união afetiva contrária à Lei de Deus e à lei natural estão em estado objetivo de pecado e revolta contra o Criador. Como afirma o documento da CDF, não é lícito abençoar esse estilo de vida pecaminoso. 

Pronunciamento que parece ter sido o gatilho 

Desde algum tempo, maus padres católicos abençoam parceiros do mesmo sexo em inúmeros lugares. A maioria dos bispos e o Vaticano permaneceram totalmente passivos, aparentemente sem perceber o que se passava. 

A repentina intervenção da Congregação para a Doutrina da Fé faz com que se pergunte se a consulta (dubium) e sua resposta negativa de fevereiro não representaram um movimento astuto para provocar a Santa Sé a fazer um pronunciamento oficial sobre o assunto, o qual desencadearia a revolta preparada há muito tempo. 

Na esteira dessa ostensiva revolta do dia 10 de maio, não há notícias de que o Papa Francisco ou a Congregação para a Doutrina da Fé tenham punido um único rebelde. Ou sequer se manifestado contra essa negação pública da moralidade e da doutrina católica. Ou ainda tomado medidas adequadas para impedi-la. Não consta que algum bispo tenha corrigido um padre rebelde de sua diocese que está dando bênçãos a pares homossexuais. 

O silêncio e a falta de medidas disciplinares falam por si. A questão que se coloca é se a inação do Papa levará à consolidação dessa heresia, como aconteceu com o protestantismo na época do Papa Leão X. Em outras palavras, o pecado homossexual se torna regularizado e aceito na Igreja como um fato consumado. 

Isso é tanto mais temível quanto, por meio de palavras e atitudes, o Papa Francisco tem mostrado aos homossexuais ativos não apenas tolerância, mas apoio, a partir de 2013, com as cinco palavras mais famosas de seu pontificado: “Quem sou eu para julgar?”[4]Depois de outros gestos de endosso,[5] ele novamente defendeu a legalização das “uniões civis” do mesmo sexo em uma entrevista divulgada em 2020, já tendo feito isso anos antes na Argentina, quando era cardeal-arcebispo de Buenos Aires.[6] 

“A homo-heresia é uma recusa do Magistério da Igreja” 

O teólogo polonês Pe. Dariusz Oko, professor de Teologia da Pontifícia Academia de Cracóvia
e da Universidade João Paulo II, define essa nova heresia da seguinte forma: “A homo-heresia
é uma recusa do Magistério da Igreja Católica sobre a homossexualidade. Os proponentes da
homo-heresia não aceitam o fato de que a tendência homossexual seja um transtorno de
personalidade. Eles questionam que os atos homossexuais são contrários à lei natural
e favorecem o sacerdócio para homossexuais. A homo-heresia é uma versão eclesiástica
da homossexualidade”.
 

A defesa doutrinária do pecado homossexual ou “casamento” do mesmo sexo é uma heresia moral que foi chamada de “homo-heresia”. 

O teólogo polonês Pe. Dariusz Oko, professor de Teologia da Pontifícia Academia de Cracóvia e da Universidade João Paulo II, define essa nova heresia da seguinte forma: “A homo-heresia é uma recusa do Magistério da Igreja Católica sobre a homossexualidade. Os proponentes da homo-heresia não aceitam o fato de que a tendência homossexual seja um transtorno de personalidade. Eles questionam que os atos homossexuais são contrários à lei natural e favorecem o sacerdócio para homossexuais. A homo-heresia é uma versão eclesiástica da homossexualidade”.[7] 

O Magistério da Igreja sempre ensinou a verdade da Escritura e da Tradição de que a prática homossexual — como todo pecado consumado de luxúria — é um pecado grave. No entanto, não é apenas qualquer pecado mortal, mas um dos quatro que “clama ao Céu por vingança”[8]. Negar essa verdade constitui heresia, que é uma “negação obstinada ou dúvida obstinada, após o recebimento do batismo, de alguma verdade que é para ser acreditada pela fé divina e católica” (Can. 751). 

Paralelamente às bênçãos massivas de pares do mesmo sexo em igrejas alemãs no dia 10 de maio, um grupo de teólogos publicou um manifesto tentando justificar sua falsa doutrina[9]. O documento foi assinado, entre outros, pela notória irmã Jeannine Gramick, cofundadora do Ministério New Ways, condenado em 1999 pela Congregação para a Doutrina da Fé por negar que os atos homossexuais são intrinsecamente malignos[10]. Assinou-o também o escandaloso Mons. Krzysztof Charamsa, que em 2015 foi demitido de seu posto na Congregação para a Doutrina da Fé após dar uma entrevista com seu parceiro homossexual para o documentário polonês Artigo 18.[11] 

A linha de argumentação dos teólogos da homo-heresia é a mesma do Modernismo: os dogmas da Igreja devem evoluir e acompanhar a cultura do mundo moderno.[12] 

Exortação de São Pedro: Resistir forte na Fé 

Nessas situações mais difíceis, devemos seguir o ensinamento apostólico de São Pedro, que nos exorta a “resistir… fortes na fé”, porque “o Deus de toda graça, que nos chamou para a sua glória eterna em Cristo Jesus, depois de ter sofrido um pouco, Ele mesmo te aperfeiçoará, e confirmará e estabelecerá” (1 Ped. 5: 9, 10). 

Não desanimemos diante das provações apocalípticas da presente crise na Igreja. Nosso Senhor zela por sua Esposa e não permitirá que Ela seja dominada pelas forças infiltradas do mal. As próprias palavras do Evangelho no-lo asseguram. 

Encoraja-nos o fato de a própria Santíssima Virgem ter prometido em Fátima o triunfo de seu Imaculado Coração. Confiemos n’Ela, esmagadora de todas as heresias e, portanto, também da atual, que glorifica o pecado pelo qual Sodoma e Gomorra foram destruídas pelo fogo[13].

Assumindo uma postura impessoal baseada em princípios 

Como católicos praticantes, somos cheios de compaixão e rezamos por aqueles que lutam contra a tentação violenta de pecar, seja o pecado homossexual ou outro pecado. 

Temos consciência da enorme diferença entre essas pessoas que lutam contra suas fraquezas e se esforçam para superá-las, e outras que transformam seu pecado em motivo de orgulho e tentam impor seu estilo de vida à sociedade como um todo, em flagrante oposição à tradição cristã, à moralidade e à lei natural. No entanto, oramos por elas também. 

Segundo a expressão atribuída a Santo Agostinho, “odiamos o pecado, mas amamos o pecador”. E amar o pecador, como explica o mesmo Doutor da Igreja, é almejar-lhe o melhor que podemos desejar para nós mesmos, a saber, “que ame a Deus com um afeto perfeito”. (Santo Agostinho, Of the Morals of the Catholic Church, No. 49, www.newadvent.org/fathers/1401.htm)

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Notas:

[1] “Leão X, na mais grave de todas as crises que ameaçavam a Igreja, não se mostrou o guia adequado para ela. [...] Ele não reconheceu a gravidade da situação nem as causas subjacentes da revolta. Medidas vigorosas de reforma podem ter-se mostrado um antídoto eficaz, mas o Papa estava profundamente enredado nos assuntos políticos e permitiu que a eleição imperial obscurecesse a revolta de Lutero; além disso, ele se entregou irrestritamente aos seus prazeres e não conseguiu cumprir plenamente os deveres de seu alto cargo.” KlemensLöffler, “Papa Leão X”, em The Catholic Encyclopedia, vol. 9, (Nova York: Robert Appleton Company, 1910). Recuperado em 16 de maio de 2021 de New Advent em http://www.newadvent.org/cathen/09162a.htm.

[2]Ver Luiz Sérgio Solimeo, “Papa Francisco aprova nota da Cúria condenando 'casamento' do mesmo sexo ao nomear homossexual notório para a Comissão Pontifícia”, TFP.org, 7 de abril de 2021, https://www.tfp.org/pope-francis-aprova-curia-nota-condenando-casamento-do-mesmo-sexo-enquanto-nomeando-notório-homossexual-para-comissão pontifícia /.

[3]Christoph Strack, "congregações católicas alegram-se com a bênção renegada de casais do mesmo sexo", DW.com, 11 de maio de 2021, https://www.dw.com/en/catholic-congregations-rejoice-at-renegade-blessing-of -mesmo-sexo-casais / a-57495305.

[4]Tracy Connor, “'Quem sou eu para julgar?'”: A frase mais poderosa do Papa em 2013, ”NBC News, https://www.nbcnews.com/news/world/who-am-i-judge-popes- frase-mais-poderosa-2013-flna2D11791260.

[5]- Vídeo do Papa Francisco abraçando um casal do mesmo sexo na Embaixada do Vaticano em Washington, DC, Eamon Javers, "Papa Francisco encontrou-se com o casal gay Yayo Grassi e Iwan Bagus durante seu tempo nos EUA", CNBC, 2 de outubro de 2015, https://www.nbcnews.com/storyline/pope-francis-visits-america/pope-francis-met-gay-couple-yayo-grassi-iwan-bagus-during-n437651; John Henry Westen, “Ativista homossexual Elton John: Pope Francis 'is my hero'”, LifeSiteNews.com, 29 de outubro de 2014, https://www.lifesitenews.com/news/homosexual-activist-elton-john-pope -francis-is-my-hero; John Henry Westen, “Papa Francisco chama a mulher com operação de mudança de sexo de 'homem' e chama os parceiros de 'casados', LifeSiteNews.com, 3 de outubro de 2016, https://www.lifesitenews.com/news/pope-francis-liga-mulher-com-mudança-de-sexo-operação-um-homem-e-liga-parceiros; Claire Giangravé, “Papa Francisco incentiva freira ajudando comunidade trans na Argentina,” Religion News Service, 25 de agosto de 2020, https://religionnews.com/2020/08/25/pope-francis-encourages-nun-helping-trans -comunidade-em-argentina /

[6]- CNA, "Papa Francisco Solicita Lei da União Civil para Casais do Mesmo Sexo, em Mudança da Posição do Vaticano", Agência de Notícias Católica, 21 de outubro de 2020, https://www.catholicnewsagency.com/news/46295/pope- francis-calls-for-civil-union-law-for-mesmo-sexo-casais-em-turno-de-vaticano-postura. Ver também Luiz Sérgio Solimeo, “Papa Francisco Endossa Uniões Civis entre Pessoas do Mesmo Sexo, mas Algo Intrinsecamente Mal Não Pode Ser o Objeto de Direitos Legais”, TFP.org, 4 de dezembro de 2020, https://www.tfp.org/pope-francis-endossa-uniões-civis-do-mesmo-sexo-mas-algo-intrinsecamente-mal-não-pode-ser-o-objeto-de-direitos-legais /.

[7]- Marco Tosatti, "L'Omoeresia nella Chiesa attuale," 13 de novembro de 2014, https://kairosterzomillennio.blogspot.com/2014/11/lomoeresia-nella-chiesa-attuale.html.

[8]Dom Gregory Manise, O.S.B., s.v. “Pecados que Clamam ao Céu por Vingança”, no Dicionário de Teologia Moral, comp. Francesco Cardinal Roberti, ed. Pietro Palazzini, trad. Henry J. Yannone (Westminster, Md .: Newman Press, 1962).

[9]- “Declaração Acadêmica sobre a Ética em Relações entre Pessoas do Mesmo Sexo Livre e Fiel”, acessado em 19 de maio de 2021, https://www.wijngaardsinstitute.com/academic-statement-ethics-same-sex-relationships/#Foreword.

[10]“Congregação para a Doutrina da Fé é obrigada a declarar para o bem dos fiéis católicos que as posições defendidas pela irmã Jeannine Gramick e pelo padre Robert Nugent a respeito do mal intrínseco dos atos homossexuais e da desordem objetiva da inclinação homossexual são doutrinariamente inaceitáveis porque não transmitem fielmente o ensino claro e constante da Igreja Católica nesta área.” Congregação para a Doutrina da Fé, "Notificação sobre a irmã Jeannine Gramick, SSND e o padre Robert Nugent, SDS," 31 de maio de 1999, https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_19990531_gramick- nugent-notification_en.html.

[11]Stephanie Kirchgaessner, “Ex-funcionário do Vaticano Krzysztof Charamsa:‘ Sou um homem gay. I'm not a monster '”, The Guardian, 28 de outubro de 2015, https://www.theguardian.com/world/2015/oct/28/ex-vatican-official-krzysztof-charamsa-im-a-gay-man-im-not-a-monster.

[12]“Declaração acadêmica sobre a ética nas relações homossexuais livres e fiéis”, prefácio.

[13]Gênesis 19: 24-25. Para um estudo bem documentado da doutrina católica sobre o assunto, consulte TFP Committee on American Issues, Defending a Higher Law: Por que devemos resistir ao “casamento” do mesmo sexo e ao movimento homossexual (Spring Grove, Penn .: The American Society for a Defesa da Tradição, Família e Propriedade, 2004). Para baixar este livro em formato pdf, vá para https://www.tfp.org/images/books/Defending_A_Higher_Law.pdf.

 

6 de agosto de 2021

São Domingos de Gusmão na perspectiva de Plinio Corrêa de Oliveira

São Domingos (detalhe) – Fra Angélico, 1441. Convento de São Marcos, afresco, Florença.

No post de ontem reproduzimos a Parte I 

da matéria principal da revista Catolicismo deste mês 

[800 anos da morte de São Domingos de Gusmão ]

 neste post de hoje segue segunda parte.


Catolicismo já publicou a vida de São Domingos de Gusmão em algumas edições (vide, por exemplo, o nº 632, de agosto/2003), mas para esta efeméride especial do oitavo centenário de seu falecimento, pesquisamos em conferências do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira comentários sobre o destemido santo dominicano, de quem era grande admirador. Encontramos muitos, e oferecemos aos nossos leitores uma seleção extraída de quatro conferências (de 4-8-64, 4-8-65, 4-8-67 e 12-1-70). Fizemos apenas ligeiras adaptações da linguagem falada para a escrita e inserimos subtítulos. Os comentários que seguem foram extraídos de gravações em fita magnética, sem revisão do autor. 


Missão de perseguir as falsas doutrinas e extirpá-las 

Tal é a crise na Igreja, corroída pelo progressismo dito católico, que se São Domingos de Gusmão tivesse alguma vez na vida parado o seu cavalo diante de um herege, tivesse dele apeado e dado ao herege um pouco de pão para comer e um pouco de água para beber, haveria muitos quadros e poesias a respeito desse gesto. Isso estaria mencionado pelos progressistas na liturgia, haveria iluminuras, falariam ao máximo sobre esse gesto de caridade do santo. Mas ele enquanto fundador da Inquisição é um capítulo sobre o qual não se fala. 

Como seria bom se tivéssemos um artista capaz de representar São Domingos estudando e meditando a fundação da Inquisição. Por exemplo, se tivéssemos uma boa reprodução daquela pintura, obra de Fra Angélico [acima], do santo sentado revestido com o hábito dominicano, pensativo, puro, casto, direito, fazendo a leitura de um livro, e publicássemos com o título: “São Domingos medita a fundação da Sagrada Inquisição contra a perfídia dos hereges”. 

Fra Angélico, na sua pintura de São Domingos, faz notar os traços característicos da gravidade e da concentração que o mostram inteiramente aplicado no que está lendo, revelando a capacidade de transcender o concreto. Percebe-se a dificuldade que o espírito do santo encontra em compreender determinada coisa. Sua mente está embrenhada num labirinto e quer resolver um ponto que oferece resistência. A gravidade é acentuada e completada pela inteira serenidade do seu ser. Um esforço sério, sem agitação, sem estar representando para si mesmo. Ele está sozinho aos olhos de Deus, e almejando encontrar a verdade. 

A Ordem Dominicana teve exatamente essa missão de perseguir as falsas doutrinas e extirpá-las. Daí a missão dos tribunais da Santa Igreja, o Santo Ofício, que, conforme revelação recebida por Santa Catarina de Siena, tinha a missão de ser o gládio de duas lâminas para converter e castigar. 

São Domingos é o santo da Inquisição, mas também o santo pregador do rosário de Nossa Senhora. Esse é capítulo da vida dele muito importante de se focalizar, que é o seguinte: o bom católico contra-revolucinário reza o rosário; e as pessoas que rezam o rosário se tornam bons contra-revolucionários. 

Há uma espécie de ordem especial do demônio contra a devoção ao rosário, pois há uma capacidade especial do rosário de incutir terror aos demônios. Também há uma espécie de zelo especial pelo rosário de quem é bom católico e o reza todos os dias. Em sentido contrário, quem vai abandonando o uso diário da sua recitação está no caminho de se tornar tíbio e deixar de ser autenticamente católico. 

Assim se compreende a beleza de ver que o santo da Inquisição, nascida da Igreja Católica e das Ordens de Cavalaria, tenha sido ao mesmo tempo o grande pregador do rosário. 

Aquele que verdadeiramente ama a Deus, odeia o mal 

Auto de Fé presidido por
São Domingos de Gusmão (c. 1493-1499)
– Pedro Berruguete, séc. XV.
Museu do Prado, Madri.
Na vida de qualquer santo, escrita na concepção mole e sentimental, adocicada e relativista que eu costumo denominar concepção “heresia branca”, figura sempre isto: foi muito bom, perdoou muito, curou muitos doentes, agradava muito as criancinhas etc. Ou seja, segundo tal concepção, a santidade quer dizer ser dulçuroso no trato. E nunca os seguintes elogios: que ele velou pela doutrina, odiou os hereges e extirpou a heresia. Porque isto parece uma cogitação de caráter intelectual, e não moral. Os adeptos da concepção sentimental não consideram a firmeza nos princípios como virtude. Acham que isso é antipático. Para eles, é antipático combater a heresia, rejeitar os hereges. 

Havia um alto personagem da Igreja aqui no Brasil que deu ao seu secretário o seguinte conselho: “Padre Fulano, o senhor tome como norma de santidade o seguinte: qualquer ato que lhe pareça bom na vida, mas que possa fazer alguém sofrer, não o faça porque não é bom.” Segundo ele, o bem nunca faz sofrer a ninguém. Esta é a mentalidade estritamente molenga e sentimental, pois não compreende nem de longe a necessidade de defender a doutrina, de corrigir aqueles que erram e, menos ainda, a necessidade de combater aqueles que erram na doutrina. 

Entretanto, a verdade é que o amor de Deus tem como expressão necessária o amor a Ele como Ele é, como Nosso Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus encarnado, ensinou. E aquele que verdadeiramente ama a Deus, odeia o mal. Ser catolicamente ortodoxo sem odiar o mal é outro absurdo. Seria como pretender ter virtude sem ter ortodoxia. 

Por isso vemos a boa doutrina cantando as glórias de São Domingos de Gusmão, dizendo que ele foi um extirpador das heresias; um dom que Nossa Senhora lhe deu foi a virtude da combatividade. Quanto mais uma pessoa é combativa, mais ela é ortodoxa, mais ama a Deus. 

Amor de Deus que pode também ser manifestado defendendo a legitimidade da Inquisição, a legitimidade das guerras santas, a legitimidade da polêmica, que o irenismo tanto quer negar. 

Sempre que se dá ao erro a possibilidade de se alastrar, está-se apoiando uma perseguição à verdade. Sempre que se dá ao mal a liberdade, apoia-se uma perseguição ao bem. Porque está na índole do erro de ser contagioso. Depois do pecado original, o homem tem uma apetência de erro. O filósofo espanhol Donoso Cortés (1809-1853) dizia que o milagre da Igreja não consistiu em se impor à aceitação dos homens por ser boa e santa, mas apesar de ser boa e santa. Isto porque os homens têm uma enorme atração pelo erro e pelo mal. Se deixamos o erro e o mal livres, nós permitiremos que eles dominem os homens. Portanto, não há pior tirania e crueldade do que advogar a liberdade para o erro e para o mal. 

Nobreza da cavalaria que combate o erro e o mal 

O que é mais importante: defender almas ou defender corpos? Evidentemente é defender almas. Dom Prosper Guéranger (1805-1875) comenta muito bem: o que fazia o cavaleiro andante? Ia de um lado para o outro para defender as viúvas, os órfãos e os fracos. Ora, todos os homens, em consequência do pecado original, têm maus pendores e estão expostos ao erro. De maneira que toda a nobreza de uma cavalaria andante em nossos tempos dever-se-ia concentrar naqueles que combatem o erro e o mal denodadamente. 

Nos presentes dias, essas reflexões são muito oportunas. Outrora tínhamos a combatividade da Ordem Dominicana, mas hoje, para exemplificar com o Brasil, temos frades do convento dos dominicanos (em São Paulo) que rejeitam aquela combatividade do fundador que foi São Domingos. Constatamos então a enorme decadência das melhores instituições em nosso século. 

O pior mal de nosso tempo não consiste em que os comunistas sejam o que são e que tenham o poder que têm. Mas que aqueles — como no caso dos dominicanos — que deveriam combater o comunismo sejam o que são e adotem as posições erradas, como a doutrina igualitária comunista. O que diria São Domingos se ressuscitasse e aparecesse diante de seus pobres filhos espirituais hoje! 

Vem a propósito rezar e fazer atos de reparação ao Fundador dos Dominicanos por toda a ofensa que essa deformação de sua admirável Ordem sofre em tantas partes, e pedir que ele nos defenda de seus filhos que tenham se transviado. 

O começo da misericórdia é a ameaça da justiça 

São Domingos e Simão de Montfort
(vitral da igreja dos dominicanos em Washington, D.C.)
– Foto de Frei Lawrence Lee, O.P.
Primeiramente, todas as medidas tomadas por São Domingos contra os albigenses tinham se manifestado baldas. E a heresia tinha manifestado uma resistência que sobrepujava todos seus esforços, apesar de ter operado grandes prodígios. 

O santo compreendeu então que, se não obtivesse novas graças de Deus, não haveria conversão, não haveria vitória. Ele, muito aflito pela dor da Igreja, se isolou e passou três dias e três noites em oração, jejuns e penitência. Nossa Senhora teve pena e falou com ele, ensinando-lhe a devoção do santo rosário e incentivando-o a divulgar essa devoção a fim de obter as conversões desejadas. 

São Luís Grignion de Montfort comenta — no já citado livro O Admirável Segredo do Rosário — que São Domingos foi para Toulouse, então capital da heresia albigense, faz uma pregação na igreja, há manifestações da cólera de Deus e de Nossa Senhora ameaçando com castigos. Ou seja, a cólera materna. Enquanto alguém é grato pelo menos à sua mãe, tudo vai bem. Mas se ouvirmos dizer que a mãe dele o detesta e lhe tem horror, nós dizemos então que para ele tudo acabou. 

Devido à apatia daquele povo, que não se convertia, Nossa Senhora manifestou a cólera de modo sublime. Mas depois veio a manifestação d’Ela enquanto “Arca da Aliança” — a manifestação de sua misericórdia. A violência da cólera e o temor preparam as almas para receber a misericórdia. E o começo da misericórdia é a ameaça da justiça, de tal maneira a justiça e a misericórdia se ligam. 

Como afirma o Livro do Eclesiástico, “O temor do Senhor é o início da sabedoria” (Ecle. 1,16). A maior das misericórdias é a sabedoria, mas ela começa pelo temor; o temor é o primeiro passo para o amor; o temor nos desliga das coisas a que estamos apegados e que nos impede de amar a Deus. Na narrativa de São Luís Grignion, nota-se que esse maravilhoso favor de misericórdia de Nossa Senhora foi o rosário. 

Admirável equilíbrio da Igreja no agir: a palavra e a espada 

São Domingos de Gusmão foi uma pessoa sobre a qual a Providência velou com um zelo muito especial, desde antes de seu nascimento. Quando ele estava para nascer, sua mãe teve uma visão de um cachorrinho andando e levando na boca uma tocha. Era exatamente o prenúncio do filho que haveria de ser como um cão, símbolo da fidelidade, levando na boca uma tocha que era o símbolo do ardor, do zelo por Deus, pela Igreja na luta contra seus inimigos. 

Ele foi um excelente pregador, dotado de lógica e virtude extraordinárias, que arrebatava todas as almas retas. Formou a Ordem Dominicana. Logo que fundada, essa ordem religiosa começou a atrair tanta gente para si, que não pôde receber todos os interessados. Ele formou uma Ordem Segunda para mulheres e uma Ordem Terceira só para receber os leigos que desejavam entrar para a Ordem de São Domingos. 

Mas, de outro lado, os hereges albigenses não se rendiam e começaram a discutir com ele, a debicar, a fim de ridicularizá-lo. Sofreu agressões e até mesmo tentaram matá-lo. Assim, o santo suscitou uma verdadeira cruzada contra os hereges, tão exitosa que em pouco tempo levou os albigenses de roldão. Foi uma cruzada de pregadores dominicanos, mas que também contou com o auxílio de senhores feudais do centro e do norte da França, bem como com a força dos soldados de Simon de Montfort, que invadiu o sul dominado pelos albigenses e desmantelou suas fortalezas. 

Devemos admirar tanto a mansidão quanto a coragem dos dominicanos daquele tempo, que empregaram as armas da persuasão pela palavra. Mas como os hereges — não tendo como replicar aos argumentos — passaram para a agressão física, chegou o momento da força. Os frades dominicanos se manifestaram como cruzados na extirpação daquela heresia irredutível. Caso contrário, ela poderia do sul da França expandir-se e tomar conta de todo o país, rompendo a unidade da Europa — como três séculos depois aconteceu com a heresia luterana que dilacerou o Ocidente. 

Imaginem que, se atacada, a Igreja não tivesse se defendido... O erro teria penetrado em toda a França e contagiado outras nações. Houve tempo de falar e outro de lutar. Primeiro uma luta pela palavra — a tentativa de converter os hereges — depois uma luta utilizando a força. Cada etapa em seu tempo, segundo as normas da moral católica. E deu resultado! 

É esse o admirável equilíbrio de todas as coisas que são verdadeiramente da Igreja. É esse o equilíbrio dos santos, de que a Igreja nos dá provas em todas as vidas dos santos. E é esse o equilíbrio que nós devemos admirar. Nada de moleza e covardia diante do adversário. Nada também de exacerbação. Tudo realizado com conta, peso e medida. 
Campanha da TFP contra a Reforma Agrária socialista e confiscatória no centro de São Paulo.

TFP — Uma analogia com fatos históricos 

Termino esta exposição com uma analogia histórica com as circunstâncias do nosso tempo. Os membros da TFP[1] percorrem as ruas de todas as cidades do Brasil, apresentam a doutrina católica e dão os argumentos com lógica e seriedade. Toda abordagem é feita com cortesia. Os transeuntes veem a beleza artística de nossas campanhas com as belas capas e estandartes rubro-áureos. O que acontece? 

Nessas campanhas — por exemplo, contra a implantação no Brasil da reforma agrária socialista e confiscatória — os adversários não refutam nossos argumentos por meios lógicos. O que fazem? Usam a arma do debique, caçoando de nossas campanhas. Nós refutamos com o contra-debique. Eles partem para a agressão física, como ocorreu em algumas cidades. Nosso contra-ataque não poderia ser outro: a defesa pessoal, reagindo varonilmente às agressões. Agimos com toda prudência, mas com toda valentia que as circunstâncias exigirem. Tudo segundo os princípios da doutrina católica. É o estilo TFP de agir. 

Aliás, a respeito escrevi um artigo publicado na Folha de S. Paulo,[2] intitulado “Estilo”, no qual mostrei que é notório aos olhos de todos que os jovens da TFP — quer em atividades de propaganda, quer no trato da vida quotidiana — primam pela cortesia. Mas, se agredidos, eles sabem se defender com energia. No final do artigo, escrevi sobre a linha de conduta da TFP: “Um estilo de viver, de agir, e de lutar, que é a versão, em termos contemporâneos, do espírito do cavalheiro cristão de outrora. No idealismo, ardor. No trato, cortesia. Na ação, devotamento sem limites. Na presença do adversário, circunspeção. Na luta, altaneria e coragem. E, pela coragem, vitória”. 
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Nossa Senhora fez de São Domingos de Gusmão o apóstolo do rosário, o fundador da Ordem dos Pregadores Dominicanos e da Inquisição, e, por excelência, um extirpador das heresias. Sua vida é um verdadeiro poema da luta contra os hereges. Ensinando o rosário e praticando a virtude da austeridade católica, trouxe de volta à Igreja incontáveis almas. Peçamos a ele uma alma ardente na defesa da fé, um horror a todas as heresias e uma ardente devoção ao santo rosário. 
____________ 
Notas: 
1. A TFP — Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade — foi fundada por Plinio Corrêa de Oliveira em 1960. Para conhecer mais a respeito, recomendamos o livro Um homem, uma obra, uma gesta, disponível no site: https://www.pliniocorreadeoliveira.info/Gesta_0000Indice.htm#.YPjzGOhKjIU 
2. https://www.pliniocorreadeoliveira.info/FSP%2069-09-24%20Estilo.htm

5 de agosto de 2021

800 anos da morte de São Domingos de Gusmão


Fundador dos Dominicanos, apóstolo do santo rosário e cruzado contra a heresia, o Bem-aventurado Papa Pio IX o descreveu com estas palavras, estimulantes para todos nós: “Assim como São Domingos se valeu do rosário como de uma espada para destruir a nefanda heresia dos albigenses, assim também hoje os fiéis, exercitando o uso desta arma, facilmente conseguirão destruir os monstruosos erros e impiedades que por todas as partes se levantam”.[1] 

  Oscar Vidal

Fonte Revista Catolicismo, Nº 848, Agosto/2021

Ao ensejo dos 800 anos da morte de São Domingos de Gusmão, ocorrida no dia 6 de agosto de 1221 em Bolonha, a Santa Sé declarou “Ano Jubilar” o período compreendido entre 6 de janeiro de 2021 e 6 de janeiro de 2022. 

Como o dia do falecimento do santo (6 de agosto) é consagrado à comemoração da Transfiguração de Nosso Senhor Jesus Cristo, sua festa foi primeiramente transferida para o dia 4 de agosto, e depois para o dia 8 do mesmo mês. De ilustre família espanhola, São Domingos nasceu em 24 de julho de 1170 em Caleruega, no reino de Castela.

O Ofício registra que ele foi “varão de ânimo e espírito apostólicos, sustentáculo da fé, trombeta do Evangelho, luz do mundo, resplendor de Cristo, segundo precursor (sucedendo São João Batista) e grande provedor das almas”. 

E assim o descreve um de seus biógrafos: “Eis aqui um homem admirável que Deus fez nascer depois da metade do século XII para ser por si só e por seus religiosos a luz do mundo, a coluna da Igreja, o sustentáculo da religião cristã, o reformador dos costumes, o flagelo dos hereges, a ruína da idolatria e de todas as seitas de infiéis, e o muro de aço que a Santa Sé apostólica sempre opôs a todos seus inimigos”.[2] 

Caleruega, vila natal de São Domingos. Destaca-se o convento dos frades dominicanos, em cujo claustro se ergue a magnífica Torre dos Gusmão

Fundador, cruzado contra a heresia, apóstolo do santo rosário 

Dentre as inúmeras e extraordinárias obras de São Domingos de Gusmão, convém destacar quatro: 

• A fundação da Ordem dos Frades Pregadores — hoje mais conhecida como Ordem Dominicana — baluarte na defesa da ortodoxia católica e na pregação do Evangelho no mundo inteiro. Foi aprovada com a Bula de 1216 do Papa Honório III. 

• Fundador da Santa Inquisição em defesa da Fé contra a perfídia dos hereges — tribunal muito difamado, mas pouco conhecido, denominado atualmente Congregação para a Doutrina da Fé —, o qual foi aprovado pelo Papa Gregório IX em 1231, o mesmo pontífice que canonizou São Domingos em 1234. Vide a respeito a “Palavra do Sacerdote” de nossa edição anterior (pp. 5-10).[3] 

• Seu combate à heresia maniqueísta dos albigenses, que infestava o sul da França, pervertendo inúmeros católicos, atacando o culto exterior e os sacramentos da Igreja Católica; 

• A divulgação do santo rosário, cuja recitação a própria Santíssima Virgem ensinou a São Domingos em 1214 e por cuja intercessão ele obteve prodigiosas vitórias e extraordinárias graças para sua época. Essa incomparável arma sobrenatural continua operando maravilhas ao longo dos séculos. 

Graves danos causados à Santa Igreja pela seita albigense 

No fundo, a torre da família de São Domingos de Gusmão
Há um estreito vínculo entre a luta contra a heresia e a pregação do santo rosário. A Igreja sempre atribuiu à Santa Mãe de Deus o mérito de esmagar e vencer todas as heresias: “Só tu, ó Virgem, tens dado morte a todas as heresias no universo inteiro”. Foi na sua passagem por Toulouse que São Domingos se deu conta dos estragos causados na França pela seita dos albigenses. Como uma epidemia maldita, essa seita gnóstica contagiava com seus erros outros países, a partir do norte da Itália e da região de Albi, no sul da França. De onde o nome de albigenses atribuído a esses hereges, conhecidos também como cátaros (do grego: puros), pois assim se autodenominavam soberbamente. 

À maneira dos padres progressistas de nossos dias, eram lobos travestidos de ovelha que se infiltravam nos meios católicos fingindo grandes virtudes, como a da austeridade, a fim de mais facilmente enganar e captar simpatia. Entre outros erros, os hereges pregavam o panteísmo, o amor livre, a abolição das riquezas, da hierarquia social e da propriedade particular. Salta aos olhos a semelhança de sua doutrina com a do comunismo. 

Várias regiões da Europa do século XIII foram empestadas por essa heresia, e toda a reação católica visando contê-la mostrava-se ineficaz. Os hereges, após conquistar muitas almas, destruir altares e derramar muito sangue católico, pareciam definitivamente vitoriosos.

Santo rosário como arma sobrenatural contra a heresia 

A Virgem entrega o Rosário a São Domingos
– Bartolomé Esteban Murillo, 1640.
Palácio Episcopal de Sevilha
São Domingos percebeu então a urgente necessidade de combater energicamente a seita dos albigenses, e de fundar para esse fim uma Ordem de pregadores. 

Intrepidamente empenhou-se nesse bom combate. Mas como não conseguia sobrepujar o ímpeto dos hereges — que continuavam pervertendo os fiéis católicos e massacrando aqueles que resistiam —, suplicou à Virgem Santíssima que lhe indicasse uma arma eficaz para derrotar aqueles empedernidos adversários da Santa Igreja. 

Quando tudo parecia perdido, Ela interveio nos acontecimentos, revelando a São Domingos a devoção ao rosário, como meio para salvar a Europa e a Cristandade daquela heresia. 

A histórica pregação de São Domingos de Gusmão

O Bem-aventurado Alain de la Roche (1428–1475), célebre pregador dominicano, no livro Da dignidade do Saltério, narra a aparição de Nossa Senhora a São Domingos, ensinando-o a pregar o rosário — também chamado Saltério de Maria, em recordação dos 150 salmos de David —, para salvação das almas e conversão dos hereges. E em seu livro O admirável segredo do Santo Rosário, narra São Luís Maria Grignion de Montfort (1673 - 1716): 

“Vendo São Domingos que os crimes dos homens criavam obstáculos à conversão dos albigenses, entrou num bosque próximo a Toulouse e passou nele três dias e três noites em contínua oração e penitência, não cessando de gemer, chorar e macerar seu corpo com disciplinas para aplacar a cólera de Deus, até cair desfalecido. A Santíssima Virgem, acompanhada de três princesas do Céu, apareceu e lhe disse: 

— ‘Sabes tu, meu querido Domingos, de que arma se serviu a Santíssima Trindade para reformar o mundo?’ 

— ‘Ó Senhora! – respondeu ele – Vós o sabeis melhor do que eu, porque, depois de vosso Filho Jesus Cristo, fostes o principal instrumento de nossa salvação’. 

— ‘Sabes – acrescentou Ela – que a peça principal da bateria foi a saudação angélica, que é o fundamento do Novo Testamento; e, portanto, se queres ganhar para Deus estes corações endurecidos, reza meu Saltério’. 

São Domingos entrega o rosário a cavaleiros
– Oficina portuguesa, século XVII.
 Paróquia de São Nicolau de Santarém
“O Santo se levantou muito consolado, e abrasado de zelo pelo bem daquela gente, entrou na igreja catedral; no mesmo momento os sinos tocaram, pela intervenção dos anjos, para reunir os habitantes. No começo da pregação, formou-se uma espantosa tormenta; a terra tremeu, o sol se obscureceu, os repetidos trovões e relâmpagos fizeram estremecer e empalidecer os ouvintes; e aumentou seu terror ao ver uma imagem da Santíssima Virgem, exposta em lugar proeminente, levantar os braços três vezes ao Céu para pedir a Deus vingança contra eles, se não se convertessem e não recorressem à proteção da Santa Mãe de Deus. 

“O Céu queria por esses prodígios aumentar a nova devoção do santo rosário e torná-la mais notória. 

“A tormenta cessou, por fim, pelas orações de São Domingos. Ele continuou seu sermão, e explicou com tanto fervor e entusiasmo a excelência do rosário, que os moradores de Toulouse o abraçaram quase todos e renunciaram a seus erros, vendo-se em pouco tempo uma grande mudança na vida e nos costumes da cidade”.[4] 

A melhor “artilharia” contra o demônio e seus seguidores 

Empunhando a potente arma do rosário, São Domingos retornou ao combate, pregando incansavelmente na França, Itália e Espanha a devoção que a própria Senhora do Rosário lhe ensinara, reconquistando almas por todas as partes: os católicos tíbios se afervoravam; os fervorosos se santificavam; as Ordens religiosas floresciam; os hereges se convertiam aos milhares, abjurando seus erros e voltando à Igreja; os pecadores se arrependiam e faziam penitência; expulsava os demônios de possessos; operava milagres e curas. Somente na Lombardia, o ardoroso cruzado do rosário converteu mais de 100 mil hereges albigenses. 

Disputa entre São Domingos e os cátaros,
 em que após os livros de ambos serem atirados ao fogo,
os de São Domingos foram milagrosamente
preservados das chamas, confirmando assim
a falsidade dos ensinamentos dos cátaros
(Pedro Berruguete (1450–1504). Museu do Prado, Madri). 

Entre diversos milagres operados por São Domingos, citemos um transcorrido em Fangeux, na diocese de Carcassone. “Os líderes cátaros apareceram em grande número, trazendo o livro que continha todas as suas heresias. São Domingos levava um caderno no qual havia refutado a maioria desses erros. Como não chegavam a um acordo, decidiram apelar para a ‘prova do fogo’. O escrito que permanecesse incólume numa fogueira seria o verdadeiro. Fizeram uma grande fogueira e nela jogaram o livro dos cátaros. Pouco depois estava este reduzido a cinzas. Lançaram então ao fogo o escrito de Domingos. Este voou ao ar sem se queimar e foi pousar numa viga do teto, onde deixou uma marca de fogo. Por três vezes os hereges repetiram o ato, com o mesmo resultado...”.[5]  

São Domingos se tornou um incansável pregador da devoção ao rosário nessa cruzada contra a heresia, obtendo incontáveis êxitos e inúmeras conversões, entre elas as de muitos jovens que deram origem ao primeiro núcleo da Ordem dos Pregadores (Ordo Prædicatorum, O.P.). Aos 45 anos de idade, ele congregou seus primeiros discípulos numa casa em Toulouse e lhes impôs o hábito (túnica branca, roquete simples e capa negra com capuz). Um de seus objetivos com a nova Ordem — que contou com o inestimável apoio do Papa Inocêncio III e de seu sucessor Honório III — era fundar conventos nas principais cidades universitárias, a fim de atrair vocações junto à juventude acadêmica. 

Rosário e espada, espírito de oração e cruzada

Entretanto, as incontáveis e milagrosas conversões não eram suficientes para converter aqueles hereges mais empedernidos, que procuravam reverter sua derrota fazendo estragos em outros países. Para resolver o problema, Nossa Senhora, além do heroico São Domingos, suscitou outro herói para erradicar a heresia na Europa: o admirável Conde Simão de Montfort. Enquanto o primeiro empunhava a arma do rosário, o segundo empunhava a espada. Uma combinação perfeita: o espírito de oração com o espírito de cruzada em defesa da Fé Católica. 

São Domingos de Gusmão e Simão de Montfort na Batalha de Muret, em 12 de setembro de 1213, quando Simão de Montfort lutou contra Pedro II de Aragão, defensor dos cátaros (Antonio Acero de la Cruz, séc. XVII. Museu Colonial, Bogotá, Colômbia)

A história de Simão de Montfort é admirável e extensa. Citemos apenas um pequeno trecho, extraído de um livro de São Luís Grignion de Montfort (embora tenham o mesmo sobrenome, não há informação concludente de que fossem parentes): 

“Quem poderá contar as vitórias que Simão, Conde de Montfort, obteve contra os albigenses sob a proteção de Nossa Senhora do Rosário? Foram tão notáveis, que jamais se viu no mundo coisa parecida. Com quinhentos homens, desbaratou um exército de dez mil hereges. Outra vez, com trinta homens, venceu três mil. Depois, com mil infantes e quinhentos cavaleiros, fez em pedaços o exército do rei de Aragão, composto de cem mil homens, perdendo somente oito soldados de infantaria e um de cavalaria”.[6] 

O último reduto dos hereges albigenses caiu em 1256. Ficando a França livre deles, a devoção ao santo rosário atravessou as fronteiras. São Domingos a pregou incansavelmente nos países vizinhos, colhendo abundantes frutos. Essa incomparável e eficientíssima devoção mariana atravessou não somente as fronteiras europeias, mas também os continentes e os séculos, porquanto até os presentes dias o rosário é rezado com grande fruto no mundo inteiro.

[A Parte II desta matéria postaremos amanhã].

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Notas: 

1. Encíclica Egregiis, de 3 de dezembro de 1856.

2. Les Petits Bollandistes, Vies des Saints, d’après le Père Giry, Paris, Bloud et Barral, Libraires-Éditeurs, 1882, tomo IX, p. 273).

3. https://catolicismo.com.br/Acervo/Num/0847/P04-05.html  

4. San Luis Maria Grignion de Montfort, El secreto admirable del Santissimo Rosario, Biblioteca de Autores Cristianos, Madrid, 1954, pp. 314-315.

5. Plinio Maria Solimeo, São Domingos de Gusmão, in Catolicismo, agosto/2003.

6. Op. cit. El secreto admirable del Santissimo Rosario, pp. 366-367.