Para hoje seguem novos trechos do livro “A HISTÓRIA DA POLIDEZ — de 1789 aos nossos dias”, nos quais o autor, o Prof. Frédéric Rouvillois. Depois de tratar de uma como que agonia da polidez (no período da Revolução Francesa), mostra que em seguida ocorreu entre os franceses uma enorme apetência pelo retorno das boas maneiras, um horror pela impolidez grosseira imposta pelos revolucionários em nome do mito igualitário.
No entanto, o movimento se esgota rapidamente. Sofre, como uma chicotada, a queda dos hebertistas e da extrema-esquerda da Revolução, eliminados pelo comitê de saúde pública no fim de março de 1794, e o subsequente refluxo do partido dos sans-culottes.
É nesse momento que um certo Bouin, num libelo intitulado Reflexões sobre os abusos de autoridade cometidos pelo comitê revolucionário da seção do templo, denuncia como perigosa para a Revolução aqueles que a ‘encaram como algo que nos leva a um estado de grosseira e rusticidade’, notadamente ao tratar com rudeza e por tu as mulheres, ‘em relação às quais o tratamento tu é inconveniente em todos os sentidos, pouco generoso e pouco moral’.
Ocorre então a estocada de Parthe: ‘Sem dúvida, esse tratamento é a linguagem da igualdade, mas por que empregá-lo em relação às mulheres, que, em todos os outros níveis, nós nos recusamos a encarar como nossas iguais, já que não lhes concedemos os mesmos direitos?’. [...]
Esse refluxo da antipolidez se acelera após o termidor e a queda de Robespierre — tornando-se então o fato de zombar da ‘civilidade’ jacobina uma forma de tomar partido, e um meio também de exorcizar a malfadada lembrança do Terror. [...]
Retorno do tratamento proibido durante a Revolução Francesa
Muito cedo, os antigos usos recuperarão seu direito de cidadania... Predição rapidamente confirmada, sobretudo no nível da linguagem, com o retorno dos termos interditos senhor ou senhora...
Pouco a pouco a palavra cidadão tende a parecer irrisória e ridícula, e muitos não a empregam senão para os subalternos, como para lhes acentuar a inferioridade, o que tem por efeito exasperar os ‘patriotas’.(1) Antes sacralizado, o título se torna risível.
Em fevereiro de 1798, o deputado bretão Jean-René Gomaire propõe adotar uma lei visando abolir o uso das palavras seu e senhor nas letras de câmbio, onde elas tendem a reaparecer cada mais com mais frequências; no dia 16 de abril, uma comissão especial produz um primeiro relatório que renova, com todas as firulas, a antipolidez jacobina: ‘Certamente’, concede o relator, Gerla, ‘eu não pretendo banir a polidez do comércio da sociedade, mas a urbanidade republicana não tolera as fórmulas de um regime escravo’, como senhor, que significa padrão, e, portanto implica ideias ‘incompatíveis com nosso pacto social’. Daí a necessidade de ir ainda mais longe, estendendo a proibição a ‘toda sorte de relações sociais’.(2) A proposta será adotada por unanimidade pelo conselho. Mas as coisas não param por aí.
Num segundo relatório, datado de 22 de julho do mesmo ano, Gerla declara com ênfase que é preciso cogitar sanções; e, a esse propósito, desenvolve o lado desesperado de seu intento. É preciso, escreve ele, agir com severidade, principalmente contra o uso verbal, o uso cotidiano desses termos. Isso é preciso ao mesmo tempo porque a maioria republicana ‘aguarda medidas penais com impaciência’, a fim de que o mal não prospere, e para ‘propagar’ o uso do título cidadão entre todos aqueles que ‘hoje o desdenham’.(3)
À falta de uma lei que não será adotada, o governo republicano, apegado a seus símbolos, exige ainda, em 1799, que as camareiras dos teatros parisienses digam cidadão aos espectadores, em vez de senhor.(4)
Nesse época, um comissário de administração ou um agente público que empregue esse termo suspeito (senhor ou senhora) é passível de perseguições. Mas nada disso acontece: o uso antigo retorna numa irresistível restauração que de resto suscita inúmeros incidentes, como em 1795, quando um jovem vendedor de refrescos é chamado às falas por um padeiro que ele havia chamado de cidadão.
Apesar das ordens, ninguém mais se incomoda, mesmo em público, ao empregar as palavras interditas ou ao conspurcar os títulos obrigatórios: apenas um ano após a queda de Robespierre, o autor de um panfleto antijacobino não hesita em introduzir seu libelo com o uso desta frase, que soa como uma afronta ao igualitarismo: ‘Recebi, senhor, a carta infinitamente polida que vós me fizestes a honra de endereçar...’.(5)
A velha e aristocrática polidez francesa
Assim como a palavra cidadão, e pelas mesmas razões, o tratamento tu não sobreviverá por muito tempo ao termidor. No dia 13 de março de 1795 (23 do ventoso do ano II), no Café de Foy, eclode um pequeno tumulto porque alguém ousou tratar por tu a um general.(6) [...]
A antipolidez igualitária e democrática parece ter desaparecido na prática — mesmo entre os republicanos militantes e na classe operária, e só as individualidades excepcionais, os ‘desbocados das fábricas’, continuam a afetar uma grosseria de princípio, diluviana e contestatária. Em 1869, Ernest Renan, revertendo a perspectiva, vê exatamente aí a garantia de que esse país [França] jamais se tornará (verdadeiramente) republicano: ‘A monarquia’, escreve ele, ‘responde às necessidades profundas da França. Nossa amabilidade só é suficiente para fazer de nós maus republicanos. Os charmosos exageros da velha polidez francesa, a cortesia que nos põe aos pés daqueles com quem nos relacionamos é o contrário dessa secura, que dá ao democrata o sentimento perpétuo dos seus direitos. A França não se sobressai senão no raro, não ama senão o distinto, não sabe realizar senão o aristocrático’.(7)
Se a antipolidez persiste é, portanto, de modo marginal, no interior de grupos mais radicais, ou em certos momentos de crise.
Tentativas de retorno da trilogia revolucionária
A revolução de 1848, notadamente nos primeiros dias, parece, porém, estar a ponto de reatar com a antipolidez dos sans-culottes. É o que se ressente Balzac, ao escrever à madame Hanska, que estava na Polônia, em carta de 26 de fevereiro de 1848: ‘Paris está em poder da canalha mais vil. Penso em preparar minha partida, pois as medidas mais revolucionárias se sucedem com rapidez. Qualquer cidadão é guarda nacional. Enfim, já foi pronunciada a trindade fatal: LIBERDADE, IGUALDADE, FRATERNIDADE. Toda gente se trata por tu’.(8)
Em Paris, no clima de insurreição que sucede à queda da Monarquia de Julho, aqueles que a si próprios se qualificam de ‘montanheses’, a exemplo de seus modelos de 1793, não usam o termo senhor senão como forma de insulto, para se dirigir aos suspeitos de serem reacionários, inimigos da república. É o que relata certo Chenu, ex-capitão da guarda do chefe da polícia montanhesa, Caussidière. Interpelado por um subordinado, que o trata por ‘senhor chefe’, ele imediatamente o corrige: ‘Diga cidadão’. Um pouco depois ameaçado de ser substituído, o cidadão chefe se exalta: ‘O primeiro que vier tomar o meu lugar, eu acabo com ele na porta. Pois eu quero que esses senhores’ — e ele sublinha a palavra — ‘fiquem sabendo que ninguém substitui Caussidière [...] Tu, capitão, tu vais me organizar militarmente um exército revolucionário’.(9) O fortalecimento do partido da ordem e a repressão a esses partidos extremistas, após as jornadas de junho, porão um termo a isso”.
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Notas:
(1) Cf. F. Brunot, Histoire de la langue française, t. IX, 2ª parte, p. 686.
(2) Gerla, Rapport sur proposition d´abolir l´usage des mots sieur et monsieur dans les lettres de change, De l´Imprimerie nationale, germinal do ano VI, pp. 3, 5.
(3) Second rapport sur les anciennes qualifications, De l´Imprimerie nationale, termidor do ano VI, pp. 5, 8-9.
(4) Cf. F. Brunot, Histoire de la langue française, t. IX, 2ª parte, p. 687.
(5) Tous les parties dévoilés, C.F.Patris, 27 do fruidor do ano III, p. 1.
(6) A. Soboul, Les Sans-Culottes parisiens en l´na II, p. 657.
(7) Domestic Manners of the Americans, New York, Knopf, 1949, p. 186; ed francesa: Baudry, 1832. (8) H. de Balzac, Lettres à Mme Hanska, Les bibliophiles de l´original, 1971, t. IV, p. 212.
(9) A. Chenu, Les Conspirateurs, Garnier Frères, 9ª ed., 1850, pp. 87, 92.