Devido a diversas ocupações, somente hoje tomei conhecimento de um esplendido artigo que dele só lamento uma coisa: tê-lo lido (saboreado) apenas há pouco. Foi publicado na “VEJA” de 22 de abril deste mês e seu autor, José Roberto Guzzo, explicita magistralmente uma questão que toca na pele de todos nós.
Com certa frequência, devido aos temas “politicamente INcorretos” que temos tratado neste blog, recebo e-mails adjetivando-o de “blog reacionário”. O que nos causa júbilo, pois quem reage é sinal que está vivo. O morto, ou o doente em estado terminal, não reagem. O médico não poderá acusá-los de “reacionários”...
Por que não reagir? Graças a Deus somos reacionários! Mas para a turma dos tolerantes a tudo, por mais absurdo que seja, não se pode discordar de nada. Entre tantas coisas, não se pode manifestar opinião própria criticando certos “dogmas” do mundo atual; não se pode dizer que sim é sim, que não é não; não se pode dizer que o errado é errado, que o certo é certo; não se pode dizer que bandido abaixo dos 18 anos é bandido (ele é “dimenor”); não se pode dizer que branco é branco, que negro é negro. Então o que é? — “Mais ou menos cinza, ora bolas”, poderia responder a turma (ou a ditadura) do “politicamente correto”.
É dessa maneira que tal “ditadura” espera calar a boca daqueles que desejariam expressar opinião, mas ficam com medo de manifestá-la e, assim, entrar numa encrenca. Então preferem ficar omissos ou concordar com todo mundo.
É o nosso mundo invertido com os pés para cima e a cabeça no chão. A continuar desse jeito, terei que dar razão ao jornalista Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly — que se tornou famoso com o pseudônimo Barão de Itararé — quando afirmou que "Este mundo é redondo, mas está ficando muito chato”...
Abaixo transcrevo o mencionado artigo, recomendando uma atenta leitura e sua difusão entre os Amigos que ainda não entraram na UTI deste mundo e que, portanto, ainda reagem.
Um mundo escuro
§ José Roberto Guzzo
“Veja”, 22-4-13
As noções de certo ou errado, de bem ou mal ou de justo e injusto, cada vez mais, são definidas por dezenas de "causas", em relação às quais é indispensável estar do lado correto. E que lado é esse? É o lado dos donos ou dos militantes dessas causas — tarefa complicada, considerando-se que elas se multiplicam sem parar, não têm conexão nenhuma entre si e sua própria existência, muitas vezes, é completamente desconhecida do público em geral. Com o desmanche cada vez mais rápido de qualquer valor ou princípio na atividade política, e o falecimento da ideia geral de "direita" e "esquerda", o campo do "bem" vai sendo ocupado por movimentos que defendem ou condenam todo tipo de coisa. Importa cada vez menos, também, o divisor de águas formado pelo conjunto de valores morais como integridade, decência, gratidão, generosidade, honradez, cortesia e tantos outros que marcavam a correção do indivíduo, do ponto de vista pessoal, na vida de todos os dias. O cidadão, hoje, pode ser tudo isso ao mesmo tempo, mas ainda assim não será inocente — basta não concordar com as bandeiras em voga, ou ser indiferente a elas, ou não saber que existem.
Todas essas cruzadas se declaram proprietárias exclusivas do bem e têm, cada vez mais, a certeza de que a lógica, os argumentos baseados em latos e o livre debate devem ceder lugar à fé — a fé dos dirigentes e militantes das "causas", que se julgam moralmente superiores e, portanto, autorizados a exigir que todos abram mão de seu direito a raciocinar e simplesmente concordem com eles. O lado escuro disso tudo é que a defesa de tais bandeiras está se tornando cada vez mais fanática — e o resultado é a criação, pouco a pouco, de um novo totalitarismo. Nega-se às pessoas o direito de discordar de qualquer delas e, principalmente, de criticar seja lá o que proponham: não é permitida nem a simples neutralidade, pois quem é neutro é considerado cúmplice do mal.
Os efeitos práticos são muito parecidos com os que se produzem nas ditaduras — e sua primeira vítima é a liberdade de pensar e de exprimir o que se pensa.
Muito de todo esse ruído é simplesmente cômico: além disso, ao contrário do que acontece nas tiranias, os líderes das novas causas não têm a seu dispor a força armada para obrigar o público a obedecer a suas decisões. Mas, em ambos os casos, sua atividade está gerando cada vez mais consequências na vida real. Ainda há pouco, um anúncio da agência AlmapBBDO [foto acima] mostrava um gato preto subindo no capô de um Volkswagen, numa brincadeira 100% inocente a respeito de sorte e azar. Ideia proibida, hoje em dia. Grupos que defendem a causa dos gatos, de qualquer cor, decidiram que o comercial estimulava a "perseguição" e o "desrespeito" ao gato preto, e exigiram da empresa que o comercial fosse retirado do ar. Ganharam: a Volkswagen, uma das maiores companhias do mundo, com mais de noventa fábricas, 550.000 empregados e faturamento superior a 200 bilhões de dólares em 2012, ficou com medo do pró-gato e topou, sim, cancelar o anúncio. Há uma coisa muito parecida com isso — ela se chama censura. A AlmapBBDO, uma das agências de publicidade mais respeitadas do Brasil, queria levar o comercial ao público, como a imprensa queria publicar notícias durante a ditadura militar. Mas a cruzada dos gatos, como acontecia na época em que o governo cortava as notícias que lhe desagradavam, não quis. Nas duas situações — uma pela força bruta, a outra pela pressão bruta — o resultado prático é o mesmo: aquilo que deveria ter sido publicado não o foi. Qual é a diferença?
Episódios como esse vão se tornando comuns e, para piorar as coisas, deixam atrás de si uma nuvem radioativa que contamina o ambiente do pensamento e faz com que as pessoas fujam das áreas de perigo. É muito pouco provável que a AlmapBBDO volte a criar comerciais com algum gato no enredo, ou qualquer outro animal. Para quê? Outras agências vão tomar, ou já tomaram, a decisão de cortar o reino animal do seu universo criativo — e também, por via das dúvidas, o reino vegetal e o reino mineral, pois é possível que provoquem objeções dos movimentos que atribuem direitos civis às árvores, ou às pedras, ou sabe-se lá ao que mais. Os jornalistas e os órgãos de imprensa, com frequência, vão pegando uma alergia cada vez maior a tratar de certos assuntos. "Isso vai dar confusão", ouve-se todos os dias nas redações. "Melhor a gente ficar fora dessa". O mesmo se aplica a políticos, por seu natural pavor de perder votos, a artistas que não querem ficar mal "na classe" e a mais um caminhão de gente capaz de ter posições claras, mas incapaz de arrumar coragem para falar delas em público.
É apenas natural que a situação tenha ficado assim. Não vale a pena, para a maioria, dizer o que pensa e ser imediatamente amaldiçoado como racista, cruel com os animais, homofóbico, nazista, destruidor da natureza, inimigo da fauna e da flora, poluidor de rios, lagos e mares, vendido aos interesses das "grandes empresas", carrasco das "minorias", assassino de bagres e por aí afora. Ser um mero defensor da luz elétrica, e achar natural, para isso, que sejam construídas usinas geradoras de energia passou a ser, no código da "causa ambiental", um delito grave. Pior ainda é ser chamado de "agricultor" ou "pecuarista" — as duas palavras passaram a ser utilizadas pelos militantes como um puro e simples insulto. Eis aí, por trás de todo o seu verniz de atitude moderna, democrática e defensora da virtude, a essência do totalitarismo que vai sendo imposto pelas "causas" do bem. O alicerce central de sua postura é raso e estreito: "Ou você pensa como eu, ou você é um idiota; ou você pensa como eu, ou você está errado". Ou você é coisa ainda muito pior, dependendo do grau de ira que sua opinião despertou neste ou naquele movimento.
Se discordar, por exemplo, de uma mudança na lei trabalhista, vão acusá-lo de ser a favor da volta da escravatura. Se criticar a doação de latifúndios a tribos de índios, pode ser chamado de genocida. Se achar errado o Bolsa Família, vai ser condenado como defensor da miséria. Se sustentar que o sistema de cotas para negros nas universidades tem problemas sérios, vira um racista na hora. Se julgar que os governos do PT são um exemplo mundial de incompetência, ignorância e vigarice, será incluído na lista negra dos que são contra o povo, contra a pátria e contra as eleições. Falar mal do ex-presidente Lula, então, é um caso perdido. Como ele diz em seus discursos que o seu segundo objetivo na vida é governar para os pobres (o primeiro, segundo uma confissão que fez há pouco, é "viver o céu aqui mesmo na terra"), quem não gosta do ex-presidente só pode ser contra os pobres. A alternativa é ouvir que você, até hoje, não se conforma com o fato de que "um operário tenha checado à Presidência" etc. etc., como o próprio Lula nos diz todo santo dia, há mais de dez anos.
Com certeza há pessoas boníssimas, e sinceramente interessadas no bem comum, na maioria das "causas" em cartaz hoje em dia — não lhes passaria pela cabeça, também, imaginar que estão construindo um mundo totalitário. Mas sua recusa em raciocinar um pouco mais, e em agredir a lógica um pouco menos, acaba levando-as, mesmo que não percebam, a uma postura de autoritarismo aberto diante da vida.
Um outro tóxico que alimenta essa marcha da insensatez é a ignorância. Somada à decisão de atirar primeiro nos fatos, e perguntar depois quais eram mesmo esses fatos, leva a episódios de circo como o movimento "Gota d"Água" — no qual um grupo de atores e atrizes tentou demonstrar, no fim de 2011, que a usina de Belo Monte seria uma catástrofe sem precedentes para o Rio Xingu e para a ecologia brasileira em geral. No vídeo que gravaram com o propósito de provar suas razões, confundiram o Pará com Mato Grosso, colocaram a usina a mais de 1.000 quilômetros do lugar onde está sendo construída e denunciaram a inundação de terras ocupadas por índios — quando não há um único índio na área a ser alagada. Foi um desempenho digno de entrar na lista das piores respostas do Enem. Mas os artistas continuam achando que estão certíssimos; sua "causa" é justa, dizem eles, e meros fatos como esses não têm a menor importância, pois o que interessa é o triunfo do bem.
"Não há expediente ao qual o homem deixará de recorrer para evitar o real trabalho de pensar", disse, no fim dos anos 1700, o grande mestre da arte inglesa do retrato, sir Joshua Reynolds. Hoje, mais de 200 anos depois, sua tirada é um resumo praticamente perfeito da turbina-mãe que faz girar a máquina das "causas" justas. Nada as incomoda tanto quanto o ato de pensar. Preferem receber insultos, porque podem responder com insultos — o que não toleram é a tarefa de raciocinar em cima de fatos, reconhecer realidades e convencer pelo uso da inteligência. Algum tempo atrás esta revista publicou, com a assinatura do autor do presente artigo, um conjunto de considerações sobre o que julgava serem exageros, equívocos ou distorções do chamado "movimento gay". Tudo o que foi escrito ali recebeu uma fenomenal descarga de ódio, histeria e ofensas, nas quais foram incluídas diversas maldições desejando uma morte rápida para o autor. Mas o que realmente deixou a liderança gay fora de si, acima de qualquer outra coisa, foi a afirmação de que casamento de homem com homem, ou de mulher com mulher, não gera filhos. É apenas um fato da natureza — mas é exatamente isso, o fato, o pior inimigo das "causas". Não pode ser anulado por abaixo-assinados, redes sociais ou passeatas. A única saída é mantê-lo oculto pelo silêncio.
Por essa trilha, caminhamos para um mundo de escuridão.