Um leitor da revista Catolicismo enviou uma pergunta, para ser respondida pelo Monsenhor José Luiz Villac, que muito interessa àqueles que costumam acompanhar os temas deste espaço especialmente apropriado às famílias. Segue a muito instrutiva resposta, publicada na edição deste mês da revista (Edição Nº 801, Setembro/2017).
Pergunta — Conversando recentemente com um canonista, ele me disse que, no casal, o marido e a mulher mandam em igualdade de condições. Que nas últimas décadas houve uma evolução no modo de a Igreja considerar a autoridade na família, pelo que a versão mais tradicional, segundo a qual prevalece a autoridade do marido, deu lugar a um conceito mais igualitário. Creio que a última encíclica do Papa Francisco “Amoris Laetitia” trata de algo sobre isto. Será que o Sr. poderia me esclarecer e, se for o caso, inclusive me dizer se existe algum ensino infalível da Igreja sobre esta matéria?Resposta — Para responder com profundidade a essa “polêmica” pergunta do nosso caro missivista — que se situa na contracorrente da escalada feminista na sociedade —, é preciso relembrar, ainda que de modo sucinto, a teologia do matrimônio cristão e da família.
O casamento foi divinamente instituído para três finalidades elevadas: propagação do gênero humano, educação dos filhos, auxílio mútuo dos esposos. Para assegurar essas altíssimas finalidades, o casamento possui duas características essenciais: a indissolubilidade e a unicidade ou monogamia.
Assim, através do pacto matrimonial pelo qual os esposos se dão inteiramente um ao outro para formar “uma só carne” (Gn 2, 24), eles são constituídos num estado que pode ser definido como uma união perpétua e exclusiva entre um homem e uma mulher com a finalidade principal de gerar filhos e educá-los, e, secundariamente, para se prestarem mútuo apoio.
Essa foi a instituição primitiva do casamento. Deturpado pelo pecado dos homens, Nosso Senhor Jesus Cristo veio restaurá-lo na sua plenitude, elevando-o, além do mais, à condição de sacramento, que transmite a graça e simboliza a união entre Cristo e a Igreja.
Na pequena comunidade que é a sociedade doméstica, Deus estabeleceu, no IV Mandamento da sua Lei, as regras que devem governar as relações entre os pais e os filhos e que Leão XIII assim descreve: “Pelo que respeita aos filhos, devem submeter-se e obedecer a seus pais, honrá-los e venerá-los por dever de consciência, e, por outro lado, os pais devem aplicar todos os seus pensamentos e cuidados em proteger seus filhos e, sobretudo, em educá-los na virtude: ‘Pais [...] educai os vossos filhos na disciplina e nos mandamentos do Senhor' (Ef. 6, 4)” (Enc. Arcanum divinae sapientiae, n° 8).
Duas existências numa só
Mas Deus também estabeleceu as regras que devem governar as relações dos esposos entre si. Quanto à finalidade principal de procriar e educar os filhos, pelo pacto matrimonial os esposos são obrigados ao débito conjugal, conforme ensina São Paulo: “O marido cumpra o seu dever para com a sua esposa e da mesma forma também a esposa o cumpra para com o marido. A mulher não pode dispor de seu corpo: ele pertence ao seu marido. E da mesma forma o marido não pode dispor do seu corpo: ele pertence à sua esposa” (1 Cor 7, 3-4).As obrigações decorrentes da finalidade secundária, ou seja, o fundir-se de duas existências numa só e o apoio mútuo que marido e mulher devem prestar-se, o mesmo São Paulo as formulou na sua Epístola aos Efésios.
Aos maridos, o Apóstolo diz que eles devem se sacrificar por suas respectivas esposas: “Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e se entregou por ela [...] Assim os maridos devem amar as suas mulheres, como a seu próprio corpo. Quem ama a sua mulher, ama-se a si mesmo. Certamente, ninguém jamais aborreceu a sua própria carne; ao contrário, cada qual a alimenta e a trata, como Cristo faz à sua Igreja porque somos membros de seu corpo. Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois constituirão uma só carne” (5, 25-31).
E às esposas, São Paulo ensina que devem obedecer aos seus maridos: “As mulheres sejam submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos” (5, 22-24).
“Toda a família é uma sociedade”
Nesse santo consórcio, ao marido cabe a autoridade, porque a força física e de caráter com que Deus dotou o sexo masculino serve de apoio à delicadeza de sua mulher e à fraqueza de seus filhos. À mulher cabe principalmente educar os filhos e influenciar toda a família pela sua delicada sensibilidade de coração, sua dedicação, sua benignidade, seu carinho.Em uma das suas alocuções aos recém-casados, de 10 de setembro de 1949, afirma o Papa Pio XII:
“Toda a família é uma sociedade, e toda a sociedade bem ordenada reclama um chefe, todo o poder de chefe vem de Deus. Portanto, a família que vós fundastes tem também seu chefe, um chefe que Deus investiu de autoridade sobre aquela que se deu a ele para ser sua companheira, e sobre os filhos que virão, pela bênção de Deus, crescer e alegrar a família, tais como os rebentos verdes em torno do tronco de oliveira. Sim, a autoridade do chefe de família vem de Deus, assim como de Deus que Adão recebeu a dignidade e a autoridade de primeiro chefe do gênero humano e todos os dons que ele transmitiu à sua posteridade”.
Ele não fazia senão repetir a doutrina salutar reiterada pelo Papa Pio XI na sua famosa encíclica Casti connubii, na qual especifica a “ordem do amor” que deve revestir a hierarquia doméstica:
“Essa ordem implica de um lado a superioridade do marido sobre a mulher e os filhos, e de outro a pronta sujeição e obediência da mulher, não pela violência, mas como a recomenda o Apóstolo [...] Tal sujeição não nega nem tira à mulher a liberdade a que tem pleno direito, quer pela nobreza da personalidade humana, quer pela missão nobilíssima de esposa, mãe e companheira, nem a obriga a condescender com todos os caprichos do homem, quando não conformes à própria razão ou à dignidade da esposa [...] Se efetivamente o homem é a cabeça, a mulher é o coração; e, se ele tem o primado do governo, também a ela pode e deve atribuir-se como coisa sua o primado do amor. O grau e o modo desta sujeição da mulher ao marido podem variar segundo a variedade das pessoas, dos lugares a dos tempos; e até, se o homem menosprezar o seu dever, compete à mulher supri-lo na direção da família. Mas em nenhum tempo e lugar é lícito subverter ou prejudicar a estrutura essencial da própria família e a sua lei firmemente estabelecida por Deus” (n° 26-27).
Família
na Alemanha do séc. XIX – Ludwig Knaus (1829 – 1910). Märkisches Museum,
Berlim.
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A família não é uma sociedade igualitária
A exortação pós-sinodal Amoris laetitia, pelo contrário, saúda a “superação de velhas formas de discriminação e o desenvolvimento de um estilo de reciprocidade” no casamento, afirmando ver nessa superação “a obra do Espírito no reconhecimento mais claro da dignidade da mulher e dos seus direitos”, embora nessa evolução tenham aparecido “formas de feminismo que não podemos considerar adequadas” (n° 54). E acrescenta: “No lar, as decisões não se tomam unilateralmente, e ambos [marido e mulher] compartilham a responsabilidade pela família”. Assim, “em cada nova etapa da vida matrimonial, é preciso sentar-se e negociar novamente os acordos, de modo que não haja vencedores nem vencidos, mas ganhem ambos” (n° 220).A Exortação apostólica não hesita em “reinterpretar” a epístola do Apóstolo dos Gentios aos Efésios, acima citada. O preceito paulino de que “as mulheres sejam submissas a seus maridos” não significa “submissão sexual”, diz o Papa Francisco. “São Paulo exprime-se em categorias culturais próprias daquela época”; trata-se, segundo ele, apenas de uma “roupagem cultural” que “nós não devemos assumir” (n° 156).
E para tentar justificar teologicamente esse novo modelo de casamento igualitário, o Papa Francisco se apoia num ensinamento de S.S. João Paulo II, na audiência geral de 11 de agosto de 1982, no qual ele afirma que a comunidade constituída pelos cônjuges “realiza-se por meio de uma recíproca doação, que é também submissão mútua”, porquanto o Apóstolo aconselha: “Submetei-vos uns aos outros” (Ef. 5,21). Seis anos mais tarde, na carta apostólica Mulieris dignitatem, o mesmo Papa afirmou que “enquanto na relação Cristo-Igreja a submissão é só da parte da Igreja, na relação marido-mulher a ’submissão’ não é unilateral, mas recíproca!” (n° 24).
O grande problema dessa interpretação é que ela não se baseia em nenhum texto escriturário, patrístico ou magisterial, tratando-se, portanto, de uma interpretação puramente pessoal e gratuita, que contradiz o que a Igreja Católica sempre ensinou durante quase dois mil anos.
O modelo ideal é a família patriarcal
Em segundo lugar, a expressão “submissão mútua” é um contrassenso, uma contradição nos termos, porque é impossível alguém mandar em outrem e ao mesmo tempo lhe estar submetido a respeito de uma mesma esfera de assuntos. Mesmo imaginando um marido que fosse empregado de sua mulher na vida profissional, não se poderia falar de “submissão mútua”, porque enquanto ele mandaria na casa, a mulher mandaria no escritório, e um seria súdito do outro, mas em momentos e áreas diferentes.Além de o versículo 21 (“submetei-vos uns aos outros no temor de Cristo”) constituir uma advertência a toda a comunidade, nele a expressão “uns aos outros” não pode ser entendida como uma reciprocidade de relações pela qual todos se submetem a todos (coisa impossível, como visto), mas antes no sentido de que alguns da comunidade devem se submeter a outros da mesma comunidade (os jovens aos idosos, os discípulos aos mestres, as mulheres aos maridos, os filhos aos pais, etc. todos eles membros da mesma comunidade).
Algo semelhante ocorre na Epístola aos Colossenses, na qual São Paulo exorta: “A palavra de Cristo permaneça entre vós em toda a sua riqueza, de sorte que com toda a sabedoria vos possais instruir e exortar uns aos outros” (3,16). Ora, é sabido que no Novo Testamento o ensino e a exortação são atividades claramente restritas aos detentores dessa missão eclesial.
Se essas considerações não fossem suficientes, bastaria relembrar a analogia que São Paulo estabelece entre marido e mulher, e Cristo e a Igreja: é inimaginável supor que Nosso Senhor e sua Esposa mística estejam “submetidos um ao outro”! Pelo contrário, ele diz que a mulher deve submeter-se ao marido “em tudo”, como a Igreja é submissa a Cristo. Aliás, se a mulher deve se submeter ao marido em tudo, no que poderia ele ser submisso a ela?
É exercendo sua autoridade que o marido imita Nosso Senhor, o qual, como os Papas João Paulo II e Francisco ressaltaram, “não veio para ser servido, mas para servir, e dar a sua vida em redenção por muitos”, e que, assim fazendo, introduziu um modelo cristão de exercício do poder, radicalmente diferente do pagão.
Após cinco décadas de igualitarismo no exercício do hoje chamado “poder familiar”, substituto do “pátrio poder” do antigo Código Civil, nunca a família brasileira padeceu semelhante crise, nem o número de divórcios foi tão elevado, com indizível custo psicológico e moral para suas principais vítimas: os filhos.
Somente retornando ao modelo austero e hierárquico da família patriarcal, fundada no matrimônio indissolúvel e na prole numerosa, é que a família brasileira poderá recuperar seu vigor de outrora.
Que São José, modelo do exercício virtuoso da autoridade paterna na Sagrada Família — onde era menor a outros títulos —, nos ajude nessa obra fundamental de restauração!