27 de maio de 2024

INTREPIDEZ ANGÉLICA DE UM IMORTAL PONTÍFICE

Audiência de São Pio X no Pátio de São Dâmaso, em 1904 


“A sua palavra era trovão, era espada, era bálsamo [...]. Com seu olhar de águia, mais perspicaz e mais seguro do que a visão estreita de pensadores míopes, via o mundo tal qual era, via a missão da Igreja no mundo, via com olhos de santo Pastor, o dever que lhe incumbia no seio de uma sociedade descristianizada, de uma cristandade contaminada, ou ao menos infiltrada dos erros do tempo e perversão do século” (Palavras do Papa Pio XII a respeito de São Pio X).

 Paulo Roberto Campos

 

A Santa Igreja celebra neste ano três importantes efemérides relacionadas a um grande Papa, que foi também um grande defensor da Fé, um grande Santo. Falamos de São Pio X. 110 anos de seu falecimento, em 20 de agosto de 1914; 80 anos da exumação de seu corpo, encontrado incorrupto, em 19 de maio de 1944; 70 anos de sua canonização por Pio XII, em 29 de maio de 1954.

O governo pontifício de São Pio X (1903-1914) foi marcado pelo profundo combate que empreendeu com inteligência e destemor contra os erros que se infiltravam na Igreja, sobretudo os erros do modernismo, heresia dissimulada e perniciosíssima para a Cristandade e com muitos traços semelhantes ao progressismo impulsionado maximamente pelo Concílio Vaticano II (1962-1965), convocado por João XXIII e encerrado no Pontificado de Paulo VI.1

Eis que em nossos dias o progressismo (dito católico) atinge o clímax na tentativa de “modernizar” e deturpar os dogmas, o Magistério perene e as tradições católicas — tradições majestosas que tanto aborrecem os progressistas “teólogos da libertação”.

O Movimento Modernista pretendia uma reforma na Igreja sob o pretexto de uma suposta necessidade de renovações, de progresso e de seguir as leis da evolução nos costumes e até na Fé.

De uma bondade e afabilidade angelicais em relação aos filhos fiéis da Igreja, entretanto de uma firmeza e intrepidez igualmente angélicas, São Pio X primeiramente repreendeu e exortou os seguidores de tal movimento à conversão, acolheu os convertidos e depois — não obtendo o arrependimento — os condenou com vigor como um Anjo empunhando a espada de fogo da ortodoxia.

No Decreto Lamentabili sane exitu, de 3 de julho de 1907, São Pio X condenou formalmente 65 proposições modernistas relativas à natureza da Igreja, à revelação, aos sacramentos, à divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo, a erros na exegese da Sagrada Escritura e na interpretação de dogmas.

Medalha comemorando a Encíclica Pascendi Dominici Gregis com a qual São Pio X condenou o Movimento Modernista  


Inimigos ocultos no próprio seio da Igreja


Como nem com o Decreto nem com as medidas mais suaves os modernistas não se emendaram, mas continuaram arrogantes na conduta e obstinados no erro, dois meses depois o Romano Pontífice se viu obrigado a tomar medidas mais severas. Aprofundou a problemática, escrevendo sua magistral Encíclica sobre os erros do modernismo, a Pascendi Dominici Gregis, de 8 de setembro de 19072, que marcou profundamente os ambientes católicos e intelectuais do século XX.

Considerado como sendo um dos maiores lances na História da Igreja, o documento, redigido com ‘mão de ferro sob luvas de pelica’, fulminou a artimanha, uma verdadeira conspiração interna concebida pelo Movimento Modernista que visava debilitar a Religião Católica apresentando-a não tanto como obra divina, mas humana, ou de meras concepções filosóficas.

         A fim de contestar os erros do modernismo, afirma o santo autor:

“Exige que sem demora falemos, é antes de tudo que os fautores do erro já não devem ser procurados entre inimigos declarados; mas, o que é muito para sentir e recear, se ocultam no próprio seio da Igreja, tornando-se destarte tanto mais nocivos quanto menos percebidos.

“Aludimos, Veneráveis Irmãos, a muitos membros do laicato católico e também, coisa ainda mais para lastimar, a não poucos do clero que, fingindo amor à Igreja e sem nenhum sólido conhecimento de filosofia e teologia, mas, embebidos antes das teorias envenenadas dos inimigos da Igreja, blasonam, postergando todo o comedimento, de reformadores da mesma Igreja; e cerrando ousadamente fileiras se atiram sobre tudo o que há de mais santo na obra de Cristo, sem pouparem sequer a mesma pessoa do divino Redentor que, com audácia sacrílega, rebaixam à craveira de um puro e simples homem”.3

São Pio X estigmatizou tal heresia como sendo a “síntese de todas as heresias”:

“Não se trata de doutrinas vagas e desconexas, mas de um corpo uno e compacto de doutrinas em que, admitida uma, todas as demais também o deverão ser. Por isso, também quisemos servir-nos de uma forma quase didática, e nem recusamos os vocábulos bárbaros, que os modernistas adotam. Se, pois, de uma só vista de olhos atentarmos para todo o sistema, a ninguém causará pasmo ouvir-Nos defini-lo, afirmando ser ele a síntese de todas as heresias”.4

Erros do Modernismo serpeavam nos meios católicos

Carta Pastoral do Cardeal
Arcebispo do Rio de Janeiro
comunicando ao clero e aos
fiéis da arquidiocese 
a
Encíclica de São Pio X
(1908) 

Na citada encíclica resta evidenciado que aquele movimento articulava uma pérfida (e muito poderosa) conjuração anticatólica, organizada por pessoas muito labiosas que se apresentavam dissimuladas de católicas e davam aos “erros do Modernismo” uma aparência de verdade. Assim, iludiam mais facilmente muitos fiéis, redobrando o malefício às almas com a pregação de concepções contrárias à doutrina católica, teorias protestantizantes conformes à “reforma” revolucionária do heresiarca Matin Lutero.

“Já vimos essas ideias condenadas pelo Concílio Vaticano I [convocado pelo bem-aventurado Papa Pio IX em 1869]. Veremos ainda como, com semelhantes teorias, unidos a outros erros já mencionados, se abre caminho para o ateísmo”.5

Abrasado com o zelo que deve ter o Vigário de Cristo na Terra, o modernismo foi fulminado como sendo uma seita dos mais perigosos inimigos da Igreja, agindo dentro d’Ela. E por essas razões seus líderes foram desmascarados, alguns excomungados e interditadas suas publicações, jornais, livros etc.

Na época, eles galgavam postos-chaves junto à hierarquia eclesiástica, elevavam-se nos púlpitos e nas cátedras, agiam tanto nos confessionários quanto nas ruas, para introduzir na Igreja a mania das novidades, os erros do mundo moderno. Eram lobos vorazes disfarçados de dóceis ovelhas para enganar os fiéis (mas incautos) católicos, além de menosprezarem as belas e seculares tradições da Igreja, sugerindo-lhes “reformas” opostas às tradições da Cristandade e à doutrina de sempre ensinada no Evangelho.

Condenados aqueles que arrastam outros ao erro

O Pontífice afirmou que os modernistas infiltraram na Igreja para mais eficazmente destruí-la, relativizando e adulterando seu ensino perene e infalível:

“Não se afastará, portanto, da verdade quem os tiver como os mais perigosos inimigos da Igreja. Estes, em verdade, como dissemos, não já fora, mas dentro da Igreja, tramam seus perniciosos conselhos; e por isto, é por assim dizer nas próprias veias e entranhas d’Ela que se acha o perigo, tanto mais ruinoso quanto mais intimamente eles a conhecem. Além de que, não sobre as ramagens e os brotos, mas sobre as mesmas raízes que são a Fé e suas fibras mais vitais, é que meneiam eles o machado”.6

Assim deve proceder o Bom Pastor na defesa de suas ovelhas, usando seu cajado para expulsar os lobos do redil. Referindo-se aos modernistas, o Pastor dos Pastores, com palavras da Escritura, os increpa:

“Devido ao inimigo do gênero humano, nunca faltaram homens de perverso dizer (At 20,30), vaníloquos e sedutores (Tit 1,10), que caídos eles em erro arrastam os demais ao erro (2 Tim 3,13). Contudo, há mister confessar que nestes últimos tempos cresceu sobremaneira o número dos inimigos da Cruz de Cristo, os quais, com artifícios de todo ardilosos, se esforçam por baldar a virtude vivificante da Igreja e solapar pelos alicerces, se dado lhes fosse, o mesmo reino de Jesus Cristo. Por isto já não Nos é lícito calar para não parecer faltarmos ao Nosso santíssimo dever, e para que se Nos não acuse de descuido de nossa obrigação, a benignidade de que, na esperança de melhores disposições, até agora usamos.

“Cegos, na verdade, a conduzirem outros cegos, são esses homens que inchados de orgulhosa ciência, deliram a ponto de perverter o conceito de verdade e o genuíno conceito religioso, divulgando um novo sistema, com o qual, arrastados por desenfreada mania de novidades, não procuram a verdade onde certamente se acha; e, desprezando as santas e apostólicas tradições, apegam-se a doutrinas ocas, fúteis, incertas, reprovadas pela Igreja, com as quais homens estultíssimos julgam fortalecer e sustentar a verdade (Gregório XVI, Encíclica Singulari Nos 7 julho 1834)”7.

 


Semelhança dos modernistas com os progressistas atuais

         Logo na primeira parte deste artigo destacamos a luta do Santo Pontífice contra o Movimento Modernista. A razão se deve à grande semelhança com a luta que hoje travamos contra o progressismo. Os neomodernistas — também estes infiltrados nos ambientes (incredibile dictu, mesmo nos mais altos) da Santa Igreja — continuam a ação, e herdaram os mesmos erros daquele movimento condenado no início do século XX.

Mas o governo de São Pio X não se restringiu a esse combate para destruir os inimigos, foi também um frutuoso período de muitas construções de fortalezas espirituais visando “Restaurar o Reinado Social de Jesus Cristo”. [vide quadro no final].

         No mínimo, precisaríamos de um livro para elencar os grandes lances desse glorioso Pontificado, por exemplo, seus trabalhos dedicados à reorganização do Código de Direito Canônico — depois promulgado pelo sucessor, o Papa Bento XV. Um monumento inaugurado por Pio XI, em 28 de junho de 1923, sintetiza em títulos algo do período de São Pio X no Vaticano. Na base da imagem do santo há oito painéis em bronze representando atributos primordiais daquele curto período de 11 anos:

·        * Papa da Eucaristia;

·        * Defensor da Fé;

·        * Apoiador da França Católica;

·        * Patrono das Artes;

·        * Guardião dos Estudos Bíblicos;

·        * Reorganizador do Direito Canônico;

·        * Reformador da Música Sacra;

·        * Pai dos Órfãos e dos Abandonados.

 

O Papa por excelência do Santíssimo Sacramento

Pelo menos de passagem, poderíamos discorrer um pouco sobre o primeiro título, “O Papa da Eucaristia”. Um dos pilares de seu Pontificado foi seu desempenho incrementando enormemente a devoção ao Santíssimo Sacramento. Ele incentivou ao máximo essa devoção, aconselhou a comunhão quotidiana e a comunhão às crianças. A tal ponto que passou para a História com a honra de tal título.

         “A sagrada comunhão é o caminho mais curto e seguro para o Céu”, afirmava São Pio X. Declarou que “todos os fiéis têm liberdade de receber a sagrada comunhão com frequência e até diariamente, como é desejo de Jesus Cristo e de Sua Igreja; e que, portanto, não se deve negá-la a ninguém, que se aproxime da Sagrada Mesa em estado de graça e com reta e devota intenção”.

Certa vez uma senhora da alta sociedade perguntou ao Papa: “Que posso fazer pela Igreja de Deus?”. — “Ensinai o catecismo”, foi a sua resposta.8

O Santo Padre foi um apóstolo da Primeira Comunhão às crianças. Propagou em todos os países o ensino do catecismo a elas, a fim de que desde cedo conhecessem as noções elementares da doutrina católica e pudessem comungar a partir da “idade da discrição” (fase em que os pequenos alcançam a capacidade de discernir entre o certo e o errado). Para a Primeira Comunhão bastava que elas “soubessem distinguir entre o ‘Pão Eucarístico’ e o ‘pão material ordinário’”, e que se exigisse delas apenas que tivessem “certo conhecimento dos rudimentos da fé”.

O próprio Papa pessoalmente ensinava o catecismo às crianças, insistia na prática da confissão frequente e as preparava para a Primeira Comunhão. Numa dessas catequeses, recomendou-lhes que fossem “obedientes e desprendidos de vós mesmos, aplicados na oração e no estudo, diligentes para com Deus e seu santo serviço, mas principalmente assíduos na recepção dos sacramentos e na devoção à santa eucaristia, esse deverá ser o apostolado junto aos vossos companheiros”.9

Com seu apostolado da Sagrada Hóstia dificultou que as heresias modernistas e jansenistas se expandissem nos meios católicos. O jansenismo10 negava a infinita misericórdia de Deus, o que diminuía a confiança n’Ele e esfriava o fervor da devoção ao Santíssimo Sacramento.

Pelo contrário, São Pio X assegurou: “A devoção à Eucaristia é a mais nobre de todas as devoções, porque tem o próprio Deus por objeto; é a mais salutar porque nos dá o próprio autor da graça; é a mais suave, pois suave é o Senhor. Se os anjos pudessem sentir inveja, nos invejariam porque podemos comungar”.

 

Três décadas após sua morte, no dia 19 de maio de 1944, exatamente há 80 anos, abriram o sarcófago de São Pio X na presença dos prelados membros do Tribunal do Processo Apostólico. Para admiração de todos, seu corpo foi encontrado incorrupto, sem que tivesse sido embalsamado — como era costume — devido a um pedido expresso dele

O defensor da fé católica entrega sua alma a Deus

         Nos primórdios da Primeira Guerra Mundial, em 20 de agosto de 1914, os grandes sinos do Vaticano anunciaram que o Santo Papa havia morrido. Uma morte um tanto suspeita e misteriosa, pois aqueles que com ele conviviam, que conheciam seu estado de saúde, não esperavam esse trágico desfecho, apesar de sua saúde debilitada e de sua enorme preocupação com os rumos que poderiam tomar a Grande Guerra que acabava de eclodir.

Contudo, os líderes modernistas pareciam esperar tal desfecho. Eles se exultaram com a morte do santo, pois assim ficavam livres para agir sem aquele obstáculo quase intransponível. Alguns autores chegam a suspeitar de uma morte “encomendada”.

         O último gesto de São Pio X foi beijar um crucifixo que segurava muito devotamente. “Das mãos de seu amigo, Mons. Bressan, recebeu [São Pio X] devota e alegremente os últimos sacramentos. ‘Seja feita a vontade do Senhor, a Ele sem reservas me entrego’, foram as suas últimas palavras.

Respondia ainda às orações, que junto dele se faziam, mas a sua voz ia se enfraquecendo cada vez mais, até extinguir-se completamente. Na noite de 19 para 20 [de agosto] não lograva mais falar. Reconhecia, porém, os que o rodeavam, apertava-lhes a mão, abençoando-os. De quando em quando traçava um largo sinal da cruz. Logo depois de uma e um quarto da madrugada entregou sua nobre alma ao Criador. Era o dia 20 de agosto de 1914. Morreu como tinha vivido: tranquilo e resignado”.11

Corpo encontrado incorrupto e assim se mantém até hoje

O Papa João XXIII observa
o corpo incorrupto de São Pio X
Três décadas após sua morte, no dia 19 de maio de 1944, exatamente há 80 anos, abriram o sarcófago de São Pio X na presença dos prelados membros do Tribunal do Processo Apostólico. Para admiração de todos, seu corpo foi encontrado incorrupto, sem que tivesse sido embalsamado — como era costume — devido a um pedido expresso dele.

 




Um dos presentes documentou:

“Abrindo o caixão, encontraram o corpo intacto, vestido com as insígnias papais tal como foi enterrado 30 anos antes. Sob a firme pele que cobria a face, o contorno do crânio era claramente reconhecível. As cavidades dos olhos pareciam escuras, mas não vazias; estavam cobertas pelas pálpebras muito enrugadas e afundadas. O cabelo era branco e cobria o topo da cabeça completamente. A cruz peitoral e o anel pastoral brilhavam reluzentes. Em seu último testamento, Pio X pediu especialmente que seu corpo não fosse tocado e que o tradicional embalsamamento não fosse realizado. Apesar disso, seu corpo estava excelentemente preservado. Nenhuma parte do esqueleto estava descoberta, nenhum osso exposto. Enquanto o corpo estava rígido, os braços, cotovelos e ombros estavam totalmente flexíveis. As mãos eram belas e magras, e as unhas nos dedos estavam perfeitamente preservadas”.

 O fato prodigioso de seu corpo ter sido encontrado incorrupto na exumação, e assim permanecer até hoje, o que pode representar para nós? — Além de um evidente grande milagre, poder-se-ia dizer que se trata de símbolo de um Pontificado que combateu todo tipo de corrupção e um sinal de Deus de que o ensinamento desse seu Vigário na Terra foi sempre fundamentado na doutrina incorruptível da Santa Igreja de Deus.

Na lápide de seu sarcófago original, uma modesta inscrição foi gravada:

“Papa Pio X, pobre e contudo rico, manso e humilde de coração, defensor invicto da fé católica, desejoso de instaurar tudo em Cristo, falecido piedosamente aos 20 de agosto do ano do Senhor de 1914”.12

 


Beatificação e canonização do Paladino da Igreja

Por ocasião da beatificação do Santo Pontífice (3 de junho de 1951), o Papa Pio XII falou da virtude da fortaleza e da arguta percepção dos acontecimentos; grandes dons que a Providência Divina prodigalizou a seu santo predecessor:

“A sua palavra era trovão, era espada, era bálsamo: comunicava-se intensamente a Vida a Igreja e tinha eficácia para ser ouvida fora e ao longe; vinha cheia de irresistível vigor, graças não só à substância incontestável do conteúdo, como também ao seu profundo e penetrante calor. Sentia-se nela arder a alma de um Pastor que vivia em Deus e de Deus, sem outro fim senão conduzir a Ele os seus cordeiros e as suas ovelhas [...].

“Com seu olhar de águia, mais perspicaz e mais seguro do que a visão estreita de pensadores míopes, via o mundo tal qual era, via a missão da Igreja no mundo, via com olhos de santo Pastor, o dever que lhe incumbia no seio de uma sociedade descristianizada, de uma cristandade contaminada, ou ao menos infiltrada dos erros do tempo e perversão do século.

“Iluminado pela claridade da verdade eterna, guiado por uma consciência delicada, lúcida, de rígida firmeza, tinha ele, frequentemente acerca do dever do momento e das resoluções a tomar, intuições cuja exatidão perfeita desconcertava os que não eram dotados das mesmas luzes”.13

Três anos depois, o mesmo Papa Pio XII declarou à multidão na Praça de São Pedro, lotada para assistir a canonização de São Pio X, em 29 de maio de 1954:

“A santidade, que se revela inspiração e guia dos empreendimentos de Pio X, brilhou ainda mais fulgurantemente nas suas ações quotidianas. Foi primeiro em si mesmo que realizou, antes de realizá-lo nos outros. Seu programa: reunir tudo, reconduzir tudo à unidade em Cristo. Como humilde pároco, como bispo, como Sumo Pontífice, esteve sempre convencido de que a santidade à qual Deus o destinou era a santidade sacerdotal. Que santidade pode de fato agradar mais a Deus por parte de um sacerdote da nova Lei, senão aquela que convém a um representante do Supremo e Eterno Sacerdote, Jesus Cristo, Aquele que deixou à Igreja a memória contínua, a renovação perpétua do sacrifício da Cruz na Santa Missa, até que Ele venha para o julgamento final; Aquele que mediante o sacramento da Eucaristia se entregou como alimento para as almas: ‘Quem comer deste pão viverá para sempre’?” 14

Desde os primórdios, a Igreja tem assegurada a vitória

Neste ano em que se comemora o centésimo décimo aniversário do passamento de São Pio X da Terra para o Céu; o octogésimo de sua exumação e o septuagésimo de sua canonização, desejaríamos que inúmeras homenagens oficiais da Santa Igreja lhe fossem prestadas. Entretanto, com muita dor e tristeza, somos obrigados a reconhecer que nosso desejo certamente não será realizado. Por quê?

Infelizmente, como é de conhecimento de nossos leitores — e sobre isso nunca é suficiente insistir —, retomando o mesmo processo iniciado pelos modernistas, a Igreja passa por um misterioso processo de autodemolição “golpeada também pelos que d’Ela fazem parte”, e que Ela “atravessa hoje um momento de inquietação. Alguns praticam a autocrítica, dir-se-ia até a autodemolição”, como confessou Paulo VI em alocução aos alunos do Seminário Lombardo, em 7 de dezembro de 1968.15

Quatro anos depois, o mesmo Paulo VI confirmou, na Alocução Resistite fortes in fide, que “por alguma fissura tenha penetrado a fumaça de Satanás no templo de Deus”.16

Transcorridos 110 anos do final de um Pontificado que barrou a entrada da “fumaça de satanás” — a “autodemolição” em sua época —, vemos que os neomodernistas escancaram as janelas e as portas do Templo de Deus para a entrada da fumaça diabólica.

Eles parecem levar a Igreja ao paroxismo no processo de autodemolição com o estabelecimento de uma “nova-igreja”, na qual no próprio Vaticano se cultuou um ídolo pagão, a Pachamama, que nada tem a ver com a Santa Igreja Católica Apostólica Romana como instituída por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Mas, apesar de tudo, d’Ele temos assegurada, desde os primórdios da Igreja, a vitória final, quando prometeu que “portae inferi non praevalebunt” — as portas do inferno não prevalecerão.

O atual e sinistro mar de demolições no qual navega a Barca de Pedro, parecendo naufragar de um momento para outro, não nos mete medo. Pelo contrário, nos dá mais coragem para continuar a navegação, para lutar ainda mais pela completa realização do lema de São Pio X no sentido da plena restauração da Igreja e do Mundo, o que se alcançará com o Reinado do Imaculado Coração de Maria, como profetizado em Fátima em 1917.

Que São Pio X, o grande Papa Defensor da Fé, interceda do Céu por nós, e obtenha que Deus envie seus Anjos para colocarem freio nesse processo revolucionário universal, antecipem o desmantelamento dos inimigos da Igreja, e realizem o quanto antes o nosso pedido, feito diariamente no Pai-Nosso: “Venha a nós o Vosso reino, seja feita a Vossa vontade assim na Terra como no Céu”.

 

Síntese biográfica


Nascido em Riese (Lombardia) no dia 2 de junho de 1835, Giuseppe Melchiorre Sarto — assim se chamava o futuro Papa São Pio X — foi sucessivamente Vigário em sua cidade natal, Cônego em Treviso, Bispo de Mântua e Patriarca de Veneza. Eleito Papa no dia 4 de agosto de 1903, foi o 257º Sumo Pontífice da Santa Igreja Católica. Exerceu seu glorioso Pontificado até seu último dia nesta terra de exílio, que deixou aos 79 anos, em 20 de agosto de 1914. Pio XII o beatificou em 3 de junho de 1951 e o canonizou exatamente há 70 anos, em 29 de maio de 1954.



 


Restaurar o Reinado Social de Jesus Cristo

“Instaurare omnia in Christo” (Restaurar todas as coisas em Cristo) era o dístico do seu pontificado e resumo de seu prodigioso empenho: restaurar o Reinado Social de Nosso Senhor Jesus Cristo. Era a principal solução que indicava o Santo Padre: “Se alguém pedir uma palavra de ordem, sempre daremos esta e não outra: Restaurar todas as coisas em Cristo”.

            Objetivo que definiu claramente com suas indefectíveis palavras expressas na Encíclica Notre Charge Apostolique*, de 25 de agosto de 1910:

“Devemos repetir com toda energia nestes tempos de anarquia social e intelectual, quando cada um se faz passar por mestre e legislador: a Cidade não pode ser edificada de outra forma senão como Deus a construiu; a sociedade não pode ser estabelecida a menos que a Igreja estabeleça as bases e supervisione o trabalho; não, a civilização não é algo a ser inventado, nem a Cidade Nova para ser construída nas nuvens; ela existiu e ainda existe: é a civilização cristã, é a cidade católica. Trata-se apenas de ser instaurada e restaurada continuamente contra os ataques incessantes de utópicos insanos, revoltados e malfeitores. OMNIA INSTAURARE IN CHRISTO”.

(*) https://www.papalencyclicals.net/pius10/p10notre.htm

 

Notas:

1. O Concílio Vaticano II foi classificado por Plinio Corrêa de Oliveira como “uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja”. “O êxito dos êxitos alcançado pelo comunismo pós-staliniano sorridente foi o silêncio enigmático, desconcertante, espantoso e apocalipticamente trágico do Concílio Vaticano II a respeito do comunismo. […] Seu silêncio sobre o comunismo deixou aos lobos toda a liberdade. A obra desse Concílio não pode estar inscrita, enquanto efetivamente pastoral, nem na História, nem no Livro da Vida. É penoso dizê-lo. Mas a evidência dos fatos aponta, neste sentido, o Concílio Vaticano II como uma das maiores calamidades, se não a maior, da História da Igreja. A partir dele penetrou na Igreja, em proporções impensáveis, a “fumaça de Satanás”, que se vai dilatando dia a dia mais, com a terrível força de expansão dos gases. Para escândalo de incontáveis almas, o Corpo Místico de Cristo entrou no sinistro processo da como que autodemolição”. (Plinio Corrêa de Oliveira, Revolução e Contra-Revolução, Editora Artpress, São Paulo, Parte III, capítulo II, 4, A, pp. 166-168).

2. A respeito da monumental Encíclica Pascendi Dominici Gregis, Catolicismo publicou uma série de três artigos de seu principal colaborador, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira. Artigos que os leitores podem conferir na edição de setembro/2007.

3. Os trechos aqui transcritos (entre aspas) da Encílica Pascendi Dominici Gregis foram extraídos como publicados no site oficial do Vaticano, disponíveis no link: https://www.vatican.va/content/pius-x/pt/encyclicals/documents/hf_p-x_enc_19070908_pascendi-dominici-gregis.html

4. Ibid.

5. Ibid.

6. Ibid.

7. Ibid.

8. Constantino Kempf S.J., A Santidade da Igreja, oitava edição do original alemão, Edição da Livraria do Globo, Porto Alegre, 1936, p. 25.

9. Ibid. p. 26.

10. Heresia que constituiu uma corrente semiprotestante no interior da Igreja. Era de um rigorismo hirto e despropositado. Tal heresia, uma das mais perniciosas da História da Igreja, foi instituída pelo holandês Cornélio Jansênio, bispo de Ypres (1636). Este negava a infinita misericórdia de Deus e defendia a predestinação. Infectou grande parcela de bispos, sacerdotes e leigos na França e em outros países da Cristandade. A heresia jansenista foi condenada por diversos Papas, entre os quais Inocêncio X, na bula papal Cum occasione (1653). Mesmo assim, a heresia projetou-se nos séculos XVIII e XIX, e só foi debelada quando São Pio X publicou o decreto favorecendo a comunhão frequente.

11. Constantino Kempf S.J., op. cit. p. 27.

12. Ibid. p. 23.

13. Breve por ocasião da Beatificação de Pio X, Documentos Pontifícios, n° 83, Vozes, 1958, 2ª edição.

14. https://www.vatican.va/content/pius-xii/it/speeches/1954/documents/hf_p-xii_spe_19540529_pio-x.html

15. Em alocução aos alunos do Seminário Lombardo, no dia 7 de dezembro de 1968, Paulo VI afirmou que “a Igreja atravessa hoje um momento de inquietação. Alguns praticam a autocrítica, dir-se-ia até a autodemolição. É como uma perturbação interior, aguda e complexa, que ninguém teria esperado depois do Concílio. Pensava-se num florescimento, numa expansão serena dos conceitos amadurecidos na grande assembleia conciliar. Há ainda este aspecto na Igreja, o do florescimento. Mas, posto que bonum ex integra causa, malum ex quocumque defectu, fixa-se a atenção mais especialmente sobre o aspecto doloroso. A Igreja é golpeada também pelos que d´Ela fazem parte” (cfr. Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. VI, p. 1188).

16. Cfr. Alocução “Resistite fortes in fide” (29 de junho de 1972), Insegnamenti di Paolo VI, Tipografia Poliglotta Vaticana, vol. X, p. 707. 

23 de maio de 2024

O que Nossa Senhora Auxiliadora representa para nós


 

Neste dia 24 de maio celebramos a invocação Auxiliadora dos Cristãos, instituída por Pio VII em 1814. 


➤  Plinio Corrêa de Oliveira

A palavra família indica uma pluralidade de pessoas. Mas há outra palavra, de especial significado, que indica uma só pessoa: mãe.

Mãe é a quintessência da família, porque é a quintessência do amor, a quintessência do afeto; e, nessas condições, a quintessência da bondade e da misericórdia. 

Assim, a alma da criança em contato com a mãe começa a compreender o que é a bondade que não se cansa, o que é a graça, o favor, o amor que não se exaure. E também aquela forma de afeto que inclina a mãe a jamais achar tedioso estar com o filho. Carregar seu filho nos braços, brincar com ele, soltá-lo no chão, vê-lo correr de um lado para outro, ser importunada por ele incontáveis vezes durante o dia com perguntinhas, com brinquedinhos. Para a boa mãe, nisto consiste a alegria da vida. 

Se alguém, no começo de sua existência, percebe o que é a alegria de ter uma boa mãe, compreende que a vida na Terra pode ser muito difícil; mas, enquanto conservar a recordação de sua mãe, guardará a lembrança paradisíaca da sua infância.

Retendo essa recordação, a pessoa mantém a esperança do Paraíso Celeste, onde a boa Mãe vai nos receber. E assim compreendemos tudo quanto representa Nossa Senhora Auxiliadora para nós.
_____________________________ 

Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para sócios e cooperadores da TFP em 24 de maio de 1995. 
Esta transcrição não passou pela revisão do autor.

22 de maio de 2024

Eis a minha maior confiança e toda a razão da minha esperança

 

A Virgem da Humildade – Fra Angelico (ca. 1433-35).
 Museu Nacional Thyssen-Bornemisza, Madri


(Oração composta por São Bernardo de Claraval)

 

Ó doce Virgem Maria, minha augusta soberana, minha amável Senhora, minha Mãe amorosíssima, ó doce Virgem, eu coloquei em Vós toda minha esperança e não serei confundido.

Doce Virgem Maria, creio tão firmemente que do alto do Céu Vós velais dia e noite sobre mim e sobre aqueles que esperam em Vós; estou tão intimamente convencido de que jamais pode faltar nada quando se espera tudo de Vós, que resolvi viver doravante sem nenhuma apreensão, e descarregar inteiramente sobre Vós as minhas iniquidades.

Doce Virgem Maria, Vós me estabelecestes na mais inabalável confiança.

Oh, mil vezes obrigado por uma graça tão preciosa. Ficarei daqui por diante em paz sob o vosso coração tão puro.

Não pensarei mais senão em Vos amar, em Vos obedecer, enquanto Vós gerireis, Vós mesma, minha boa Mãe, os meus mais caros interesses.

Ó doce Virgem Maria, que entre os filhos dos homens, uns esperem sua felicidade de sua riqueza, outros a procurem em seus talentos; que outros se apoiem sobre a inocência de sua vida ou sobre o rigor de sua penitência, ou sobre o fervor de suas orações, ou sobre o grande número de suas boas obras.

Por mim, ó Mãe, esperarei só em Vós, só em Vós depois de Deus. E todo o fundamento de minha esperança será mesmo minha confiança em vossa bondade materna.

Doce Virgem Maria, os maus poderão roubar-me a reputação e o pouco de bem que possuo. As doenças poderão tirar-me as forças e a faculdade exterior de Vos servir. Eu poderei mesmo, infelizmente, minha terna Mãe, perder vossas boas graças pelo pecado.

Mas minha amorosa confiança em vossas maternais bondades, esta jamais perderei. Eu conservarei essa confiança inabalável até o meu último suspiro. Todos os esforços do inferno não a roubarão.

Morrerei repetindo mil vezes vosso nome bendito e fazendo repousar sobre vosso Imaculado Coração toda a minha esperança.

E se estou tão firmemente seguro de esperar sempre em Vós, não é senão porque Vós mesma me ensinastes, ó doce Virgem, que Vós sois toda misericórdia?

Estou, portanto, seguro, ó boa e amorosa Mãe, de que Vos invocarei sempre, e de que Vós me consolareis.

Eu Vos agradecerei sempre, porque Vós sempre me aliviareis. Vos servirei sempre, porque Vós sempre me ajudareis.

Vos amarei sempre, porque Vós sempre me amareis. Obterei tudo de Vós, porque vosso amor, sempre generoso, irá além de minha esperança.

Sim, é somente de Vós, ó doce Virgem, que, apesar de minhas faltas, espero o único bem que desejo, o meu Jesus, no tempo e na eternidade.

É somente de Vós, porque sois Vós que meu Divino Salvador escolheu para me dispensar todos os favores, para me conduzir seguramente até Ele.

Sim, sois Vós, Mãe, que depois de ter aprendido a participar das humilhações e sofrimentos de vosso Divino Filho, me introduzireis na glória e nas delícias, para O louvar e bendizer, junto a Vós e convosco, pelos séculos dos séculos. Assim seja.

Eis a minha maior confiança e toda a razão da minha esperança. Ecce mea maxima fiducia et tota ratio spei mei.

Imagem de São Bernardo
na casa natal,
 em Fontaine-lès-Dijon, França.
 (Foto Frederico Viotti) 


____________

COMENTÁRIOS DA ORAÇÃO

Em uma conferência no dia 3 de janeiro de 1967, Plinio Corrêa de Oliveira comenta essa abrasadora e belíssima oração de São Bernardo de Claraval, que reproduzimos como homenagem e agradecimento a Nossa Senhora neste mês de maio consagrado a Ela. 

A oração foi extraída da obra Acte d'aveugle abandon et d'amoureuse confiance en la douce Vierge Marie. Cfr. “Livre d'Or – Manuel complet de la parfaite dévotion à la très sainte Vierge d'après S. Louis-Marie de Montfort", 6ª edição, Pères Montfortains, Louvain, 1960, pp. 689-692.

 

No auge da tormenta, é hora de preparar o incenso para cantar o “Magnificat”

Quando o sofrimento chegar ao auge, Nossa Senhora intervirá e nos salvará. Devemos ter uma confiança inabalável, durante a vida e na hora de nossa morte.

A oração é verdadeiramente maravilhosa! Ela tem as características da oração de São Bernardo: com um misto de humildade e de arrojo, de ternura e de fogo, de varonilidade, que é difícil encontrar reunidas nas expressões de um só homem.

De um lado, a ternura para com Nossa Senhora chega ao último limite a que pode chegar. Sobretudo, chega ao último limite a persuasão da ternura d’Ela para conosco.

De outro lado, no modo de cantar a ternura d’Ela, há uma espécie de audácia nessa ternura, de audácia encorajada por essa ternura, estimulada por essa ternura, que faz exatamente dessa oração uma obra-prima, porque tem toda a suavidade própria a uma pomba, mas com voo de águia.

Vai até o Coração Imaculado de Maria diretamente. E com uma liberdade, com um desembaraço — eu ousaria dizer, com uma familiaridade cheia de veneração —, mas de intimidade, que verdadeiramente causa espanto.

Ele fala aqui da virtude da confiança e mostra no que essa virtude consiste. Mostra as razões dessa virtude. Consiste fundamentalmente em saber que Nossa Senhora é toda ternura, que n’Ela não há senão ternura.

Quer dizer, não há severidade, não há juízo, não há justiça, não existe outra coisa n’Ela a não ser isso. E como isso é assim e essa é a disposição d’Ela em relação a todos os homens, é lógico, é forçoso, é inevitável que cada homem que sabe que isso é assim, tenha n’Ela uma confiança sem limites.

Uma confiança no quê? Em duas gamas: em primeiro lugar, quanto à vida terrena; em segundo lugar, quanto à vida eterna.

Confiança de que Nossa Senhora vai gerir os interesses dele nesta vida. E é uma confiança que abrange, portanto, de algum modo, também os interesses terrenos verdadeiramente ditos.

É verdade que São Bernardo era religioso e que não tinha, nesse sentido, interesse terreno. Ele tinha voto de pobreza, de castidade e de obediência; os interesses materiais dele estavam todos atendidos no convento.

Mas é verdade também que ele fala aqui em termos gerais, não só para o religioso, mas é uma oração que qualquer fiel pode repetir e fazê-la sua. E aqui se entende que nós, nos nossos próprios interesses terrenos, naquilo que eles têm de legítimo, de santificante, devemos confiar em Nossa Senhora.

*   *   *

Devemos pedir a Nossa Senhora que Ela faça por nós aquilo que não somos capazes de fazer.

Todos sabemos que a Providência tem desígnios insondáveis e que pode, portanto, querer nos sujeitar, de um momento para o outro, a um sofrimento que nós não prevemos.

Sabemos também que a Providência quer, genericamente, daqueles a quem Ela ama, que passem por muitos sofrimentos. Sabemos, portanto, que nesta vida temos de sofrer.

Sem embargo disso, há interesses terrenos que por um movimento interno da graça, por um certo senso das proporções, nós sabemos e vemos que, muito provavelmente, a Providência não quer que se percam nem que se imolem. Esses interesses nós devemos entregar a Nossa Senhora.

Ela velará por eles, os apoiará, os protegerá, de tal maneira que não temos de estar com ansiedade, com “torcidas”, com sofreguidão e falta de distância psíquica.

No momento pior das nossas angústias e preocupações, devemos nos lembrar daquilo que diz o Abbé Saint-Laurent no Livro da Confiança: quando a tormenta tiver chegado ao auge, é hora de preparar o incenso e todo o necessário para cantar o “Magnificat”. Porque quando o sofrimento chegar ao auge, Nossa Senhora intervirá e nos salvará. Quer dizer, essa é uma confiança inabalável.

Confiança que cresce de ponto quando não se trata de nossos interesses terrenos individuais, mas das questões de apostolado.

Nossa Senhora quer nosso apostolado — Ela tem dado disso mil provas e está multiplicando essas provas continuamente —, e se Ela quer nosso apostolado, Ela levará o apostolado ao sucesso.

E não temos que nos colocar no ponto de vista péssimo: “Eu, por mim, resolvo os assuntos comuns do apostolado com minhas forças e minha capacidade. Nossa Senhora resolva o extraordinário”.



Nossa Senhora, como Medianeira onipotente junto a Deus, resolve tudo. Eu preciso de auxílio d´Ela para as coisas grandes e pequenas. Para as corriqueiras, como para as enormes.

E ainda que as coisas de apostolado possam parecer muito complicadas, muito comprometidas, eu devo confiar em que Ela resolva; eu ponho a minha confiança n’Ela e não penso noutra coisa.

Isso se aplica ainda mais à nossa vida espiritual. Nossa Senhora nos chamou, nos chama à santidade. Se Ela nos chama para a santidade, Ela não interromperá a obra que Ela começou e nos levará até lá, se soubermos confiar.

Alguém dirá: “Dr. Plinio, belas palavras… Na realidade, elas são vácuas e não correspondem a nada, porque se eu pecar eu estou criando obstáculos à ação de Nossa Senhora. E se eu estou criando obstáculos à ação d’Ela, não posso supor que Ela vá me santificar. Quer dizer, o senhor está dizendo uma coisa que é muito bonita, mas que não vale nada, não tem consistência. É uma quimera”.

A resposta está aqui mesmo em São Bernardo. Ainda que alguém tenha a dor enorme de ter gravemente ofendido Nossa Senhora, é preciso continuar a confiar n’Ela. Porque se desconfiar d’Ela, estará tudo perdido. A porta do Céu é Ela! E se nós, pela nossa falta de confiança, fecharmos a porta do Céu, nós mesmos nos condenamos.

*   *   *

Se, pelo contrário, continuarmos a confiar em Nossa Senhora contra toda esperança, Ela pelo menos receberá de nós essa forma de glória, que é a do pecador que confia n’Ela. É uma forma de glória, mesmo sendo o pecado um atentado à glória d’Ela.

O pecador que continua a confiar n’Ela dá-lhe uma forma de glória que nenhum justo pode dar, e que é exatamente a glória da confiança daquele que ofendeu.

Ter confiança, esperar contra toda esperança, mesmo dentro das dificuldades de nossa vida espiritual, é o que São Bernardo recomenda intensamente.

Lembremo-nos das palavras de São Francisco Xavier de que o pior do pecado — ainda que seja um horror — não é tanto o pecado, mas é o fato de o pecador perder a confiança em Deus. Aí é que vem o pior pecado.

Porque enquanto confia, o caminho ainda está aberto, tudo é possível. Mesmo para o pecado do tíbio, aquele sobre o qual Nosso Senhor disse: “Eu te vomitarei da minha boca”.

Coroação da Virgem – Fra Filippo Lippi, séc XV.
Catedral de Santa Maria Assunta, Espoleto (Itália)


Na oração, São Bernardo fala da vida eterna: quando chegar a hora da morte, ele confia que a confiança dele seja tal, que morra com o coração recostado sobre o Imaculado Coração de Maria. É expressão, naturalmente simbólica, mas é uma admirável expressão que tem um valor enorme.

Lembra aquela posição de São João Evangelista Jesus na Última Ceia, recostado sobre o Sagrado Coração de Jesus ouvindo as suas pulsações, perguntando quem é que haveria de traí-Lo.

São Bernardo revela uma esperança muito grande de que Nossa Senhora, na hora da morte, nos ajudará. Ela poderá diminuir os horrores desse transe, nos dar uma morte cheia dos sentimentos da presença d’Ela, se isso for para sua maior glória e para o bem de nossa alma.

Ainda que nossa morte deva ser muito árida, que essa aridez possa ser para o bem de nossa alma, para nós irmos para o Céu, passarmos o menor tempo possível no Purgatório, irmos para o mais alto possível do Céu, e que os sofrimentos da hora da morte nos ajudem a salvar muitas almas.

Este é o pensamento admirável contido na oração de São Bernardo.