O Supremo e o homicídio uterino
- Ives Gandra da Silva Martins
Tenho pelo ministro Marco Aurélio pessoal admiração, pela coragem de suas decisões e pelo acentuado amor ao Direito, à Justiça e à cidadania que sempre demonstrou nutrir. Por essa razão, é com imenso desconforto que escrevo este artigo discordando da decisão favorável à morte de nascituros, que proferiu nos estertores do primeiro semestre.
Estou convencido — apesar de ser eu um modesto advogado de província e ele, brilhante guardião da Constituição — de que a decisão é manifestamente inconstitucional. Macula o artigo 5º da lei suprema, que considera inviolável o direito à vida. Fere o § 2º do mesmo artigo, que oferta aos tratados internacionais que cuidam de direitos humanos a condição de cláusula imodificável da Constituição. Viola o artigo 4º do Pacto de São José, tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção.
Juridicamente, a antecipação, pelo aborto, da morte do anencéfalo é vedada pelo texto maior brasileiro.
O argumento de que o anencéfalo pode ser abortado porque está condenado à morte escancara o caminho para a eutanásia de todos os doentes terminais ou afetados por doenças incuráveis. Possibilita a cultura do eugenismo, no melhor estilo do nacional-socialismo, que propugnava uma raça pura, eliminando os imperfeitos ou socialmente inconvenientes. Fortalece a hipocrisia dos que defendem o aborto de seres humanos, embora considerem crime hediondo provocar o aborto em uma ursa panda ou eliminar baleias. Os animais merecem, de alguns — e tenho a certeza de que meu prezado amigo ministro Marco Aurélio não está entre eles —, mais proteção do que o ser humano, no ventre materno. Enfim, a decisão do antigo presidente da suprema corte abre uma enorme avenida para os cultores da morte, os homicidas uterinos, os que pretendem transformar o ser humano em lixo hospitalar.
Nos Estados Unidos, a Suprema Corte americana, no caso Dred Scott, em 1857, defendeu a escravidão e o direito de matar o escravo negro, à luz dos seguintes argumentos:
§ 1) o negro não é uma pessoa humana e pertence a seu dono;
§ 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano;
§ 3) só adquire personalidade perante a lei ao nascer, não havendo qualquer preocupação com sua vida;
§ 4) quem julgar a escravidão um mal, que não tenha escravos, mas não deve impor essa maneira de pensar aos outros, pois a escravidão é legal;
§ 5) o homem tem o direito de fazer o que quiser com o que lhe pertence, inclusive com seu escravo;
§ 6) a escravidão é melhor do que deixar o negro enfrentar o mundo.
Em 1973, no caso Roe y Wae, os argumentos utilizados, naquele país, para hospedar o aborto foram os seguintes:
§ 1) o nascituro não é pessoa e pertence à sua mãe;
§ 2) não é pessoa perante a lei, mesmo que seja tido por ser humano;
§ 3) só adquire personalidade ao nascer;
§ 4) quem julgar o aborto mau, não o faça, mas não deve impor essa maneira de pensar aos outros;
§ 5) toda mulher tem o direito de fazer o que quiser com o seu corpo;
§ 6) é melhor o aborto, do que deixar uma criança malformada enfrentar a vida. (Roberto Martins, Aborto no Direito Comparado , in “A Vida dos Direitos Humanos”, Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999).
Como se percebe, a corte americana usou os mesmos argumentos para justificar a escravidão e o aborto.
Meu caro amigo ministro Marco Aurélio — de quem divergir no episódio causa-me profundo desconforto —, ao justificar o aborto, que é a pena de morte, no caso do nascituro anencéfalo, por ser ele um condenado à morte, está, também, justificando a pena de morte a todos os doentes terminais, pela eutanásia, e abrindo a porta para o culto à raça pura, inclusive às manipulações genéticas para que sejam produzidos somente seres humanos perfeitos e saudáveis, e — o que é pior — valorizando a cultura da morte e não a defesa da vida. Uma vez aberto o caminho, por ele passarão todas as teses antivida.
Espero — pois a Constituição garante a todos os seres humanos, bem ou malformados, sadios ou doentes, o direito à vida desde a concepção, sendo a morte apenas a decorrência natural de sua condição e não a decorrência antecipada de convicções ideológicas — que venha a rever seu voto, quando a questão for levada ao plenário. Espero, também, que seus pares homenageiem a vida, proscrevendo a morte antecipada.
(Ives Gandra da Silva Martins, presidente do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo)
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