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Fonte desta matéria aqui reproduzida: Revista Catolicismo, Nº 807, março/2018 |
Selecionamos para esta Semana Santa, ligeiramente adaptados, trechos da excelente obra Jesus Cristo, Vida, Paixão e Triunfo, do Pe. Augustin Berthe.(1) No capítulo 7 — Paixão e Morte de Jesus — o autor narra o divino oferecimento de Nosso Senhor no Horto das Oliveiras, aceitando o sacrifício supremo de ser crucificado e morto para redimir o gênero humano. Destaca ainda a ignóbil farsa montada no processo contra Jesus, resultado de uma diabólica conspiração para condenar de antemão o Inocente por excelência.
O Pe. Berthe expõe com muita eloquência os conciliábulos feitos no julgamento do Sinédrio dirigido por Anás e Caifás. Esses velhos e astutos sumos sacerdotes dos judeus quiseram inicialmente dar certa aparência de legitimidade ao julgamento, a fim de não levantar suspeitas no povo e não dar pretexto ao governador romano para anular a sentença condenatória. Mas não conseguiram dissimular suas iniquidades: praticaram gravíssimas ilegalidades, violaram todas as leis, não respeitaram sequer as formalidades normais de um processo legal.
Como na época o Sinédrio não tinha o poder de emitir sentenças capitais, por isso Jesus Cristo foi enviado depois ao governador romano, que em nome do Imperador detinha o poder de condenar à morte os habitantes da Judeia, encerrando-se o julgamento no palácio de Pôncio Pilatos.
A Direção de Catolicismo
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Jesus Cristo diante de Pilatos –
Munkácsy Mihály, séc. XVIII. Coleção Particular. |
O Inocente condenado à morte num processo infame e ilegal
Jesus
acabara de entrar no horto de Getsêmani, cujo nome significa lagar de azeite. Naquele momento, o Pai
Celeste considerou n’Ele apenas o representante da humanidade decaída,
degradada por todos os vícios e manchada por todos os crimes. E Jesus consentiu
em ser desde aquele momento unicamente o homem das dores. Deixou que a sua
divindade se eclipsasse, e que lutasse sozinha com o sofrimento sua humanidade,
com as suas debilidades, fraquezas e desolações.
Para
não submeter os seus discípulos a uma prova dura demais, mandou-lhes que o
esperassem à entrada do Horto: Sentai-vos
aqui, enquanto Eu vou além para orar
(Mt 26, 36). E tomou consigo Pedro, Tiago e João, aquelas três testemunhas da
sua gloriosa transfiguração no Tabor. Só eles, fortalecidos com aquela grande
lembrança, eram capazes de assistir ao espetáculo da sua angústia, sem se
esquecerem de que era o Filho de Deus.
Não
se faça a minha vontade, mas a tua
Na
sua condição humana, o Filho de Deus encontrou-se diante da aterradora visão do
suplício que ia sofrer. Um tédio profundo e um horror imenso, junto a uma
tristeza que ninguém poderia sequer imaginar, apoderaram-se da sua alma, a tal
ponto que irrompeu naquela exclamação angustiosa: A minha alma está numa tristeza de morte! Sem um milagre, a
humanidade de Jesus sucumbiria ao peso da dor. Os três discípulos, comovidos e
aterrados, olhavam para ele com ternura, mas sem ousar pronunciar uma palavra.
Disse-lhes Jesus com voz trêmula: Ficai
aqui e vigiai, enquanto Eu também vou orar (Mt 26, 38).
Afastou-se
e andou com dificuldade até a gruta, que desde então passou a chamar-se Gruta da Agonia. Mas a terrível visão O
seguia. Logo que ali chegou, viu perpassarem-lhe diante dos olhos os diversos
instrumentos de suplício: cordas, flagelos, cravos, espinhos e uma cruz;
verdugos, com a boca cheia de zombarias e blasfêmias, e uma turba em delírio a
oprimi-lo com vilanias sem nome. Por um momento recuou horrorizado. Mas enfim,
caindo de joelhos e com o rosto em terra, exclamou: Meu Pai, se é possível, afaste-se de mim este cálice; todavia não se
faça a minha vontade, mas a tua (Mt 26, 39).
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Oração no Horto (La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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Não
pudeste velar uma hora comigo
Deus
Pai, porém, queria que Ele bebesse o cálice até o fim, por isso nenhuma voz do
Céu respondeu ao seu queixume. Aterrado, trêmulo e coberto de suor, levantou-se
e caminhou com dificuldade para onde estavam os três discípulos, a fim de neles
buscar alguma consolação, mas encontrou-os prostrados pela tristeza. Tão grande
era a prostração deles, que mal reconheceram o seu Mestre. Queixou-se Ele
daquele abandono, e dirigiu-se mais especialmente a Pedro, que momentos antes fizera
tão belas promessas: Tu dormes, Simão.
Não pudeste velar uma hora comigo? Vigiai
e orai, para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é
fraca (Mt 26, 40-41).
Tendo
assim estimulado os discípulos, voltou uma segunda vez à gruta. Reapareceu-lhe
a visão ainda mais aterradora. Ele, o santo dos santos, viu-se coberto com uma
montanha de pecados. Todas as abominações e todos os crimes, desde a
prevaricação de Adão até o último pecado cometido pelo último dos homens, se
levantaram diante d’Ele e a ele se juntaram, como se fosse Ele o culpado de
todos. E bradou-lhe uma voz: Olha para
todas essas monstruosidades. Pertence a ti expiá-las com sofrimentos
proporcionados ao número e enormidade dos atentados cometidos contra Deus. Prostrado
no pó, com o coração triturado e a morrer de dor à vista do pecado, ainda assim
encontrou força bastante para tornar a dizer com sublime resignação: Meu Pai, se for preciso que Eu beba este
cálice, faça-se a tua vontade. Tendo dito estas palavras, tornou outra vez
aos discípulos, na esperança de encontrar junto deles algum conforto para a sua
alma exausta; mas tinham os olhos sonolentos, e de tal modo se sentiam
oprimidos pela tristeza, que não acharam uma só palavra para lhe responder.
Monstruosa
ingratidão dos homens
Entrou
pela terceira vez na gruta, para ali sofrer uma agonia mortal. Coberto com
todos os pecados dos homens, e sofrendo tormentos inauditos no seu Corpo e na
sua Alma, viu milhões de pecadores que, depois de resgatados por Ele, O
perseguiam com os seus desprezos e ódios implacáveis através dos séculos.
Viu-os perseguindo a Igreja, calcando aos pés a Hóstia Santa, profanando a
cruz, blasfemando da sua Divindade, decapitando-lhe os filhos, trabalhando com
todas as forças para conduzir ao inferno as almas, pelas quais iria dar o seu
Sangue! À vista de tão monstruosa ingratidão, caiu Jesus ao chão como que
aniquilado. O seu corpo estava banhado de suor e de sangue. Gotas de sangue
saíam-lhe de todos os poros, corriam-lhe pelo rosto e caíam em terra. Contudo
não cessava de orar, e com voz enfraquecida repetia ao Pai que estava pronto
para beber até o fim o cálice das dores.
Inevitavelmente
culminaria com a morte aquela inexprimível angústia, quando desceu do Céu um
anjo para O consolar e fortalecer. No mesmo instante voltou Jesus à sua calma e
serenidade; e aproximando-se dos discípulos, disse-lhes com aquela sua habitual
indulgência: Agora dormi e descansai,
pois já não precisais de velar comigo. Porém, mal haviam cerrado os olhos,
disse-lhes: Levantai-vos e vamos. É
chegada a hora em que o Filho do Homem vai ser entregue nas mãos dos pecadores.
Está perto aquele que me vai entregar (Mt 26, 36-46). E ao clarão dos
archotes que alumiavam o vale, puderam ver bandos de gente armada que se
dirigiam para o jardim de Getsêmani. Era Judas à frente dos soldados que deviam
prender Jesus.
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A Traição de Judas (La
Maestà, detalhe)
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo,
Siena |
Traição
dissimulada com um beijo
Não
tinha o infeliz Judas perdido tempo desde que saíra do cenáculo. Foi dizer aos
membros do Supremo Conselho que Jesus se dirigia com os discípulos para o Monte
das Oliveiras, e pernoitaria num lugar solitário (perfeitamente conhecido do
traidor); e que, por conseguinte, muito fácil seria prendê-lo durante a noite,
sem excitar nenhum rumor no povo. Bem satisfeitos, adotaram os príncipes dos
sacerdotes aquele plano, e formaram uma chusma de gente armada para o pôr logo
em execução. Compunha-se o pelotão de um destacamento de soldados encarregados
de guardar o Templo, servos do sumo sacerdote e um punhado de populares com
lanças, varapaus, tochas e lanternas. Acompanhavam aquela noturna expedição
alguns membros do Sinédrio, para tomar as decisões exigidas pelas
circunstâncias.
Os
soldados não conheciam Jesus, e receberam ordem de esperar à entrada do horto enquanto
Judas avançaria sozinho para o seu Mestre, e o indicaria a todos com um sinal inconfundível:
Aquele a Quem eu der um beijo, esse é.
Prendei-o e levai-o com toda a precaução, porque bem pode suceder que vos
escape (Mt 26, 48). Dado o sinal, devia Judas misturar-se com os discípulos,
como se não tivesse parte no crime que se ia perpetrar. Disfarçava assim a
traição ao seu Mestre, poupando aos príncipes dos sacerdotes a vergonha de ter
recorrido a um vil expediente para satisfazer a sua vingança. Todos, porém, haviam
feito os cálculos sem contar com a sabedoria e o poder de Deus.
Era
meia-noite quando os soldados chegaram perto do jardim. No vale reinava um
pesado silêncio, e a própria tropa evitava fazer barulho, a fim de não
despertar o povo. Naquele momento Jesus descia com os discípulos para a porta
do jardim. Conforme o pacto, Judas avançou sozinho ao encontro de Jesus. Aproximou-se
do Mestre sem o mínimo acanhamento, como se viesse dar-lhe conta de qualquer
incumbência, e disse: Salve, Rabbi! Ao
mesmo tempo deu-lhe o beijo que os judeus costumavam dar aos amigos e parentes.
Em vez de rejeitar o traidor, Jesus disse-lhe com brandura divina: Amigo, a que vieste? Judas, é com um beijo
que entregas o Filho do Homem? (Lc 22, 48).
Em
lugar de cair de joelhos, para suplicar o perdão do seu pecado, Judas ouvia as
invectivas indignadas dos discípulos, e decidiu retroceder para os da sua
tropa. Imaginaram os soldados que ele lhes daria alguma explicação, seguindo-se
daí um momento de hesitação, dando lugar a uma cena de majestade inigualável.
Não esperou Jesus que O viessem prender, mas avançando para os soldados,
perguntou-lhes com voz firme:
— A quem buscais?
— A Jesus de Nazaré – responderam eles.
— Sou Eu! – disse Jesus.
E
com esta simples palavra, soldados, criados e sinedritas, tomados de um terror
súbito, recuaram um passo e caíram todos ao chão. Depois que se levantaram,
Jesus, sempre de pé diante deles, repetiu-lhes a pergunta:
— A quem buscais?
— A Jesus de Nazaré – repetiram eles,
trêmulos.
— Sou Eu Jesus de Nazaré, como acabo de declarar. Mas se é a mim que
buscais, deixai ir estes.
Jesus
acompanhou estas últimas palavras com um gesto imperioso. Desejava salvar seus
discípulos, conforme a oração que dirigira ao Pai algumas horas antes — De todos os que me confiaste, não perdi um
só (Jo 18, 7-9).
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Jesus preso pela soldadesca
(La
Maestà, detalhe)
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo,
Siena. |
A
hora do poder das trevas
Os
discípulos viram como Jesus prostrara os soldados, imaginaram que se defenderia,
e preparavam-se para a resistência. Quando a tropa se aproximou para prendê-lo,
rodearam-no os onze, cheios de indignação, e bradaram: Senhor, permitis que desembainhemos a espada? Pedro não deu a Jesus
tempo de responder, brandiu sua espada sobre a cabeça de um servo do sumo
sacerdote, chamado Malco, e cortou-lhe a orelha direita.
Ia
travar-se uma luta, mas logo interveio Jesus, que disse a Pedro e aos seus
companheiros: Basta. E então, mostrando
mais uma vez o seu divino poder, aproximou-se de Malco e tocou-lhe na orelha,
que logo ficou curada do golpe. Depois, dirigindo-se a Pedro e a todos os
assistentes, declarou que não precisava ser defendido contra os seus inimigos;
e se estes lhe punham agora as mãos, era porque se entregava voluntariamente a
eles. A Pedro, Jesus ordenou: Pedro, embainha a tua espada. Os que se servem de espada morrerão pela espada.
Não devo beber Eu o cálice que meu Pai me deu? Julgas que não posso pedir a meu
Pai, que logo me enviaria mais de doze legiões de anjos? O que agora está
acontecendo foi antes profetizado, e é preciso que se cumpram as Escrituras
(Mt 26, 52-54; Jo 18,11).
Essa
oblação voluntária, Jesus a fez notar aos membros do Sinédrio que acompanhavam
os soldados. Voltando-se para eles, disse: Viestes
prender-me com espadas e varapaus, como se estivésseis perante um ladrão. Todos
os dias estava Eu sentado no Templo, ensinando no meio de vós, e não me
prendestes. Mas tudo isto aconteceu para que se cumprissem as Escrituras dos
profetas. Esta é a vossa hora, a hora do poder das trevas (Mt 26, 55-56; Lc
22, 53).
Aqueles
homens estavam cegos e endurecidos. Quanto mais Jesus fazia brilhar a sua
divindade, mais ia crescendo neles o ódio. Por ordem deles, tendo-se apoderado
de Jesus, os soldados o prenderam como se fosse um malfeitor. O divino Mestre
estendeu as mãos aos algozes, transtornando os discípulos e fazendo-os perder a
coragem. Ao verem que Ele não rompia as cadeias, que os soldados O ultrajavam
impunemente, que os sacerdotes e escribas blasfemavam contra Ele, e que a
populaça começava a vociferar ameaças e imprecações contra eles, esqueceram-se
de todas as suas promessas e fugiram, cada qual para o seu lado.
Como
Jesus tinha anunciado, ficou sozinho no meio dos seus inimigos.
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Fuga dos Apóstolos no Horto
(La
Maestà, detalhe)
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo,
Siena. |
Jesus
tratado como um criminoso vulgar
Os
fariseus, senhores enfim de Jesus, puderam satisfazer o ódio feroz que lhe
tinham votado. E para humilhar aquele profeta, que se fazia passar pelo
Messias, quiseram que fosse tratado como um criminoso vulgar. Deram ordem aos
soldados para atarem os seus braços sobre o peito. E depois, por meio de cordas
presas a uma cadeia que lhe cingiram à volta do corpo, os esbirros obrigaram-no
a caminhar diante deles, como se se tratasse de um ladrão ou de um assassino. O
cortejo pôs-se em marcha do jardim de Getsêmani para o Monte Sião, onde se
encontrava o palácio dos pontífices. Era lá que Jesus devia ser julgado.
Ao
atravessar a ponte do Cedron, por instigação dos fariseus os soldados precipitaram
Jesus ao leito do riacho. Caindo Ele sobre as pedras, redobraram os sarcasmos e
insultos. Espetáculo divertido para aqueles chefes de Israel, ao verem
prostrado no lodo aquele taumaturgo que tirava os mortos do sepulcro! Mal
sabiam eles que, naquele mesmo momento, se verificavam em Jesus aquelas
palavras proféticas: No caminho beberá da
água da corrente, e por isso levantará a cabeça.2
A
sórdida farsa do Sinédrio
Depois
daquela queda, o prisioneiro avançou com dificuldade para o palácio do sumo
sacerdote. Os habitantes de Jerusalém ignoravam o crime que os seus chefes
acabavam de cometer, mas alguma agitação já se iniciava na cidade adormecida.
Decididos a concluir o assunto naquela mesma noite, os chefes do Sinédrio
tinham mandado prevenir os príncipes dos sacerdotes e os escribas, para que se
juntassem no palácio de Caifás. Corriam emissários em todas as direções, à
procura de testemunhas falsas, com o fim de encobrir a sua infâmia com
aparências de legalidade. Como era preciso dar ao julgamento uma certa
publicidade, dirigiram-se para o tribunal os fariseus mais opostos a Jesus e às
suas doutrinas, para assistir ao interrogatório e aplaudir os juízes. A
populaça, sempre pronta a amotinar-se contra o inocente, já começava a
agitar-se na sombra ao comando dos seus mentores.
Chegou
o cortejo ao palácio dos pontífices a uma hora da manhã. Os soldados levaram
Jesus para uma das salas onde estava o magistrado incumbido de formular a
acusação. Esse juiz instrutor, chamado Anás, era sogro de Caifás, sumo
sacerdote que devia pronunciar a sentença. Anás ocupara o sumo pontificado durante
longos anos, e tinha feito passar o cargo a diversos membros da sua família,
ficando ele sempre com a primeira autoridade no Sinédrio. Caifás nada fazia sem
a direção do astuto velho.
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Jesus diante de Anás
(La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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Introduzido
à presença do ex-pontífice, Jesus manteve atitude firme e semblante calmo e
sereno. Tinha Anás preparado com cuidado o seu interrogatório. Fez ao preso
muitas perguntas sobre os seus discípulos e doutrinas, com a esperança de
colher qualquer indício de maquinações tenebrosas contra a Lei mosaica, mas
aquela esperança foi logo desfeita. Dos seus discípulos não disse Jesus uma só
palavra, pois era d’Ele pessoalmente que se tratava, e não dos que O tinham
seguido. Quanto à sua doutrina, contentou-se em responder: Eu ensinei nas sinagogas e no Templo diante do povo reunido, não disse
nada em segredo. Para que me interrogas sobre a minha doutrina? Pergunta
àqueles que me ouviram. Eles bem sabem o que ensinei, e darão testemunho da
verdade.
Nada
mais acertado que esta resposta, tanto assim que o velho pontífice ficou
sumamente desconcertado. Mas um dos servos veio-lhe em socorro. Aproximou-se de
Jesus, deu-lhe uma vigorosa bofetada e perguntou em tom furioso: É assim que falas ao pontífice? Jesus,
sem deixar transparecer nenhuma emoção, respondeu àquele miserável: Se falei mal, dize-me em quê. Mas se falei
bem, por que me bates? (Jo 18, 19-23). O indigno servo ficou calado, bem
como o seu amo. Confuso e perplexo, Anás suspendeu bruscamente a sessão a fim
de não se expor a novas humilhações, e ordenou aos soldados que levassem o
preso ao tribunal de Caifás, onde se encontravam reunidos os membros do
Sinédrio.
Contra
todas as leis e formalidades
Aquela
assembleia composta de fariseus e saduceus inimigos declarados de Jesus, de
pontífices invejosos da sua glória, e de escribas que Ele mil vezes confundira
perante todo o povo, não pretendia dar uma sentença justa, mas executar um
projeto de vingança. Basta lembrar que em conciliábulos secretos aqueles mesmos
juízes já tinham condenado Jesus três vezes, excomungado os seus partidários, e
por fim decretado a sua morte. Caifás, numa daquelas reuniões, afirmara que o
triunfo de Jesus arrastaria consigo a destruição da nacionalidade, portanto a
sua morte se tornava uma necessidade de salvação pública (Jo 11, 50). Jesus estava
condenado de antemão pelo presidente do tribunal e pelos seus conselheiros, que
eram todos da mesma opinião.
Naquele
processo, aqueles homens iníquos violaram as leis. Era proibido aos juízes dar
audiência na véspera ou no dia de sábado, pois a execução do criminoso devia
seguir-se imediatamente à sentença, e assim os preparativos do suplício levariam
à violação do descanso do dia santificado. A lei proibia também, sob pena de
nulidade, que se julgasse durante a noite um pleito de vida ou morte, porque as
sessões deviam ser públicas, e por este motivo o tribunal funcionava só depois
do sacrifício que se oferecia de manhã.
O
Sinédrio passou por cima de todas as formalidades legais. Prendeu Jesus durante
a festa da Páscoa, na véspera do sábado, à meia-noite, e procedeu ao julgamento
uma hora depois da prisão. O ódio não podia esperar pelo nascer do sol. E mais:
era preciso que o povo, ao despertar, soubesse que Jesus já estava condenado,
caindo assim por terra o seu entusiasmo, ao saber que o supremo tribunal de
justiça condenara o falso profeta como réu de lesa-majestade divina e de
lesa-nação.
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Cristo acusado pelos fariseus
(La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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Levado
ao matadouro como um cordeiro
O
Salvador compareceu na sala do pretório, diante de todo o Sinédrio. Para
motivar uma sentença de condenação, tinham os juízes fantasiado uma conspiração
contra a Lei mosaica e subornado testemunhas falsas, que deviam sustentar a
acusação. Mas estas, por se contradizerem umas às outras, foram colhidas em
flagrante delito de mentira e impostura, fato que as expunha a graves castigos.
Os juízes pareciam muito embaraçados quando dois homens ali foram formular a
acusação. Disse um deles: Nós o ouvimos
dizer “Posso destruir o Templo de
Deus e reconstruí-lo em três dias” (Mt 26, 61). O depoimento do segundo foi
um tanto diferente, pois Jesus ter-se-ia expressado da seguinte forma: Eu destruirei este Templo feito por mãos de
homem, e em três dias reconstruirei outro que não será feito com mãos humanas
(Lc 14, 58).
Aos
olhos dos judeus, esta acusação era de suma gravidade, porque o Templo
simbolizava a nação, a Lei e a Religião. Mas como transformar as palavras
proferidas por Jesus em atentado contra o Templo de Deus? Ele não dissera posso destruir, ou destruirei este Templo em três dias. Pelo contrário, afirmara: Destruí vós este Templo — isto equivale
a dizer “Na hipótese da destruição do
Templo” — e Eu o reconstruirei em três dias. A ameaça contra o Templo
constituiria delito, se não fosse pura invenção das testemunhas. Por outro
lado, dava-se às palavras de Jesus um sentido absolutamente alheio ao seu
pensamento. As expressões de que se servira provavam claramente que falava do
Templo do seu Corpo, daquele Corpo que os seus inimigos iam destruir; e que
Ele, em prova do seu divino poder, ressuscitaria depois de três dias.
Depois
que os acusadores acabaram de falar, apontou Caifás ao divino Mestre um olhar
interrogador e intimou que respondesse. Mas Jesus permaneceu em silêncio.
Erguendo-se então encolerizado, como quem se sentisse insultado, tomou Caifás a
palavra: Então! Não respondes nada à
acusação que estes formulam contra ti? E Jesus continuou em silêncio. Não
há que responder a testemunhas falsas, cujos depoimentos nem ao menos são
concordes; nem a juízes que pagaram àqueles caluniadores. E não responde à
acusação de ter conspirado contra o Templo Aquele que expulsou os vendilhões
desse mesmo Templo, para impedir a profanação da casa de Deus. Calando-se,
provava Jesus quanto eram indignos os seus acusadores, e ao mesmo tempo dava
cumprimento à profecia de David: Foi
maltratado e resignou-se, não abriu a boca, como cordeiro levado ao matadouro,
como ovelha emudecida nas mãos do tosquiador (Is 54, 7).
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O Sinédrio confundido pelo
silêncio de
Jesus
(La Maestà,
detalhe)
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena
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Sem
exame, condenaram à morte o Filho de Deus
Aquele
silêncio não deixava de inquietar os conselheiros. Pois, se Ele tantas vezes os
confundira com a sua ciência e eloquência, mas agora se recusava a responder às
acusações, era porque as julgava indignas de uma instituição respeitável como o
Sinédrio. Também Caifás assim o entendia, e aquela humilhação enfurecia-o ainda
mais. Deixou de lado as acusações, que para nada serviam, e passou a fazer
perguntas que obrigariam Jesus a acusar-se a si próprio. Exclamou em voz
ameaçadora: Eu Te ordeno, pelo Deus vivo,
que nos digas se Tu és o Cristo, o Filho de Deus (Mt 26, 63).
Não
estava Jesus obrigado a obedecer a esta intimação, pois a Lei mosaica proibia
impor juramento ao acusado, para não o colocar na alternativa de jurar
falsamente ou acusar-se a si mesmo. Caifás, porém, contava com que Jesus não
hesitaria em afirmar a sua divindade naquela circunstância solene. Em todo o
caso, afirmando ou negando, estaria perdido do mesmo modo: se nega, será
condenado como impostor e profeta falso, já que muitas vezes afirmou perante o
povo que era o Cristo e igual ao Pai que está nos Céus; e se afirma, nós lhe infligimos
a pena ditada pela lei contra os blasfemadores e usurpadores dos títulos
divinos.
Não
se enganou Caifás. Jesus, ao ver-se interpelado pelo pontífice sobre a sua
personalidade divina e sobre a sua qualidade de Messias, quebrou o silêncio que
tinha guardado desde o começo da sessão. Sabendo bem que os juízes esperavam
apenas uma afirmação da sua boca para lhe decretar a morte, respondeu ao sumo
sacerdote com soberana dignidade: Acabais
de dizer quem Eu sou. Sim, Eu sou o Cristo, o Filho de Deus vivo. E agora
escutai-me todos: Vereis um dia o Filho do Homem, sentado à direita de Deus,
descer sobre as nuvens do Céu, para julgar todos os homens.
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Caifás rasga as vestes
(La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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Mal
tinha formulado esta empolgante declaração, quando Caifás, sem tomar um momento
para examiná-la, bradou irado: Blasfemou!
Bem o ouvistes. É inútil interrogar novas testemunhas (Mt 26, 64-65). E
rasgou os vestidos com indignação, para protestar contra a injúria feita a Deus,
conforme prescrevia a lei. Mas o criminoso contra Deus era ele, o injusto e
indigno pontífice. Com que direito declarava ele que Jesus tinha blasfemado? Para
conformar-se à lei, devia ouvir o parecer dos seus colegas, não impor-lhes
brutalmente a sua opinião. A mais elementar equidade exigia que se examinassem
seriamente as afirmações do acusado, antes de as reprovar como blasfemas. Por
que motivo não seria Jesus o Messias e o Filho de Deus, segundo o texto da sua
declaração? Acaso não correspondiam maravilhosamente a Jesus de Nazaré os
caracteres do Messias, indicados nas Escrituras? Não tinha Ele aparecido na
época anunciada por Daniel, no momento em que o cetro saía de Judá; segundo o
oráculo de Jacob; na cidade de Belém, como tinha profetizado Miqueias? (Miq 5,
1-3). Não revelavam a sua divindade, da maneira mais evidente, a sua doutrina,
a sua vida, os seus milagres operados durante três anos diante de todo o povo,
os doentes curados, os mortos ressuscitados? Que razão havia, pois, para
condená-lo por se ter proclamado Messias e Filho de Deus?
Mas
Caifás, dominado pelo rancor, não quis aliviar a sua consciência. Dirigindo-se
aos colegas, verdadeiramente dignos dele, bradou-lhes de novo:
— Blasfemou! Que vos parece? Que pena merece?
— A morte! – responderam eles (Mt 26, 66).
Friamente
e sem exame, condenavam à morte o Filho de Deus. Calmo e impassível, Jesus
escutou aquela sentença monstruosa. Olhava com majestade para eles, pois
antevia o dia em que desceria do Céu para anular aquela sentença execrável e
tratar os seus autores conforme as regras da justiça inexorável.
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Negação de São Pedro
(La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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És
um dos discípulos desse homem?
Enquanto
assim caminhava o julgamento no palácio dos pontífices, qual era a situação dos
discípulos? Depois de terem declarado que jamais abandonariam o seu Mestre, todos
se haviam esmorecido ao vê-lo deixar-se prender pelos seus inimigos, e nenhum
teve coragem para O acompanhar até Jerusalém. Fugiram do jardim de Getsêmani, favorecidos
pelas trevas, e entraram no sombrio vale da Geena, onde umas grutas nos
rochedos ofereceram-lhes abrigo até o dia seguinte.3
Passado
o primeiro momento de terror, Pedro e João resolveram seguir de longe a tropa
que levava Jesus. Queriam saber o que aconteceria ao Mestre, sem se exporem a
ser presos e tratados como Ele. Quando chegaram ao Monte Sião, ia Jesus
comparecer diante dos juízes. João, menos comprometido que Pedro, e por outro
lado conhecido como era no palácio dos pontífices, entrou primeiro, enquanto Pedro,
por prudência, ficava à porta. João espreitou os grupos que estavam no interior,
e não notando sinal de perigo para os dois, foi chamar Pedro e o fez entrar no
pátio.
O
vasto recinto quadrangular formado pelos corpos de construções do palácio era vigiado
por grande número de soldados e criados. Como a noite estava fria, puseram-se
em círculo à volta de um braseiro aceso no meio do pátio, a conversar sobre a
expedição daquela noite. João dirigiu-se para a sala onde se encontravam
reunidos os membros do Sinédrio, mas Pedro ficou aquecendo-se, à espera do
resultado do julgamento.
À
sua volta, Pedro só via inimigos do Mestre, pondo em ridículo o Profeta de
Nazaré. Ouvia os rumores sinistros que já corriam, relativos à sentença que os juízes
pronunciariam. Tinha a alma amargurada, e apesar dos seus esforços não
conseguia ocultar inquietação e tristeza. A porteira do palácio que o
introduzira, vendo-o assim triste e silencioso, disse aos que o rodeavam: Este também estava com Jesus, o Nazareno. Todos
os olhares se voltaram para Pedro, e ela lhe disse: Não és um dos discípulos desse homem? Com esta inesperada
interpelação, Pedro julgou-se perdido. Imaginou-se já preso, manietado e
arrastado ao tribunal, como o seu divino Mestre, e disse: Mulher, não sabes o que dizes. Eu não conheço o homem de quem falas
(Mt 27, 71; Jo 18, 17).
Pedro
renega o Divino Mestre
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O galo canta pela primeira vez
(La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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Com
esta negação formal, a porteira se calou. Ainda assim, vendo Pedro que era
suspeito, esquivou-se o melhor que pôde e dirigiu-se precipitadamente para a
porta do palácio. Eram quase duas horas, e cantou o galo a primeira vez; mas Pedro,
fora de si naquele momento, não se lembrou do vaticínio de Jesus. Quando se
preparava para sair, no vestíbulo outra escrava disse para os que ali estavam
reunidos: Este estava também com Jesus de
Nazaré. Pedro negou mais uma vez. Porém, a fim de não dar a entender que
fugia, voltou atrás e colocou-se entre os soldados e a criadagem. Foi logo
rodeado de curiosos, que de todos os lados o interrogavam com grande
vivacidade: Com certeza tu és um deles,
pois a tua maneira de falar denuncia-te
(Mt 26, 69-73). Atemorizado, desta vez Pedro não se contentou em negar, mas
protestou com todas as forças que não conhecia Jesus, e que não tinha nada a
ver com os seus discípulos.
Deixaram-no
tranquilo durante uma hora, pois toda a atenção estava concentrada no
julgamento do preso. De quando em quando saíam alguns emissários do tribunal e
contavam as cenas sinistras às quais acabavam de assistir. Pedro ouvia e fazia
perguntas para se informar. Um dos que estavam próximo notou a sua pronúncia
regional de galileu, que era muito característica, e lhe disse: Bem podes negar ser galileu e discípulo
deste homem; a tua maneira de falar atraiçoa-te. Com esta observação, mais
uma vez se voltaram todos os olhos para o discípulo, e um dos servos do sumo
pontífice, parente daquele Malco a quem Pedro cortara a orelha, disse-lhe do
seu lado: Sim, é verdade; eu bem te vi no
horto de Getsêmani (Jo 18, 26).
Ouvindo
isso, e lembrando-se da cutilada que dera, Pedro julgou estar já nas mãos dos
esbirros. Perdeu a cabeça, e começou a jurar e a dizer imprecações, negando
conhecer o Homem de quem falavam e repetindo que nada tinha a ver com Ele.
Eram
três horas. Mal Pedro tinha acabado de falar, ouviu-se o segundo canto do galo,
e logo ele se recordou da palavra do Mestre: Antes de o galo cantar duas vezes, ter-me-ás negado três vezes (Mc
14,72). Transtornado até o mais fundo da alma, compreendeu toda a gravidade do
seu pecado. Ele, o pobre pescador do lago de Genesaré, elevado à augusta
dignidade de discípulo e amigo de Jesus; ele, a pedra fundamental sobre a qual
o Mestre pensava edificar a sua Igreja; ele, a testemunha e o objeto de tantos
milagres, que há pouco proclamara bem alto a divindade de Jesus, acabava de O
renegar covardemente, e de jurar que não O conhecia. Ele havia jurado, algumas
horas antes, que O acompanharia à prisão e à morte, antes de o abandonar. E o
seu querido Mestre conhecia decerto o seu crime, pois nada escapava aos seus
divinos olhos.
Vigiai
e orai, para não cairdes em tentação
Este
pensamento de Pedro acabou de o prostrar. Concentrado em si mesmo, não viu nem
ouviu mais nada do que se dizia e passava em torno de si. Do íntimo do seu
coração despedaçado pelo remorso elevava-se este brado angustioso: Senhor, tende piedade de mim, que sou um
pobre pecador! Como outrora nas ondas, sentia-se Pedro sorvido pelo abismo,
e pedia socorro.
De
repente, as vociferações na sala onde estava sendo julgado o Mestre vieram
tirá-lo dos seus pensamentos sombrios. Ouviam-se clamores — A morte! A morte! Merece a morte! Todos
os olhos se voltaram para a porta do pretório, que se abriu com estrondo, e um
grupo de soldados desceu para o pátio. No meio deles, sempre encadeado,
apareceu Jesus com os olhos cheios de tristeza, mas com o rosto tão sereno como
no momento em que se entregara aos seus inimigos. A sentença fora dada, e
levavam-no agora para a prisão, onde devia passar o resto da noite.
Diante
daquela cena, Pedro sentiu-se cambalear. Seus olhos acompanhavam o Mestre, seguindo
atentamente todos os seus movimentos. O sinistro cortejo se dirigiu para onde
ele estava, Jesus aproximou-se dele, ia passar junto dele. Pedro tinha os olhos
arrasados de lágrimas, e a sua alma contrita pedia perdão. Jesus teve compaixão
dele, e pôs os seus olhos no discípulo infiel. Mas o fez com tanta bondade, tanto
amor temperado com tão suaves repreensões, que Pedro sentiu o coração desfalecer-lhe
no peito. Desatou a soluçar e saiu às pressas, pois precisava chorar
amargamente.
A
algumas centenas de passos, no sombrio vale da Geena, uma gruta solitária4 acolheu a desolação de
Pedro. Ele precisava chorar o seu pecado e meditar na advertência de Jesus, que
a presunção o tinha impedido de compreender, mas cuja divina sabedoria essa dolorosa
experiência lhe mostrava agora: Vigiai e
orai para não cairdes em tentação. O espírito está pronto, mas a carne é fraca
(Mt 26, 41).
Adivinha, Cristo, quem te bateu!
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Adivinha Cristo quem te bateu!
(La Maestà, detalhe)
Duccio di Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena
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Depois
de terem condenado Jesus à morte, separaram-se os membros do Supremo Conselho.
Mas, como aquele julgamento noturno constituía uma gravíssima ilegalidade,
convieram todos em reunir-se às cinco horas, para ditar a sentença com todas as
formalidades. Não porque a consciência deles protestasse contra o seu
monstruoso modo de proceder, mas urgia dissimular as iniquidades demasiado
revoltantes a fim de melhor enganar o povo, e sobretudo para não dar ao
governador romano pretexto para lhes anular a sentença.
Das
três às cinco da manhã, foi Jesus encerrado pelos guardas num lúgubre recinto,
que servia de prisão aos condenados. Com ele entrou um bando de soldados e
criados. Durante essas duas longas horas, julgaram aqueles bandidos que tudo
lhes era permitido contra aquele a quem Caifás tratara de blasfemo em plena
sessão do Sinédrio, e a quem um servo impunemente esbofeteara diante dos juízes.
Prodigalizaram insultos e desprezos, nomes odiosíssimos, e não se envergonharam
de lhe cuspir no rosto. Exasperados pela invencível paciência de Jesus, e
impelidos pelo demônio, deram-lhe pontapés e murros, atirando-o de um lado para
outro, como uma bola entre as mãos dos jogadores. Para variar o divertimento e
pôr em ridículo os títulos de Messias e Filho de Deus, que Jesus se atribuía,
vendaram-lhe os olhos e o esbofetearam; e depois, tirando-lhe a venda, gritavam
com escárnio: Adivinha, Cristo, quem te
bateu! E lançavam-lhe ainda as piores blasfêmias.
Aceitando
esses ultrajes, cumpria Jesus a profecia de Isaías: Não desviei o meu rosto dos que me ultrajavam e me cuspiam (Is 50,
6). Os seus olhos ensanguentados pousavam naqueles esbirros, sem exprimir
nenhum sentimento de indignação, e dos seus lábios torturados não saíam queixas
nem murmúrios. Com a sua calma soberana, estava à espera da hora em que se
abrisse aquela caverna de feras.
Vós
dizeis bem, Eu sou o Filho de Deus
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Aceitando
esses ultrajes,
cumpria Jesus a profecia de Isaías:
Não desviei o meu rosto dos
que me ultrajavam e me cuspiam (Is 50, 6).
(La Maestà, detalhe)
Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV.
Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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Pelas
cinco horas, os guardas foram avisados de que os juízes estavam de novo à
espera da sua vítima. Com os cabelos desalinhados, o rosto coberto de sangue e
saliva, as mãos bem atadas, Jesus foi reconduzido ao tribunal. Salvo Nicodemos
e José de Arimateia, que recusaram ter voz naquele processo, os outros membros
do Sinédrio encontravam-se todos reunidos. Aquele aparato solene tinha o
objetivo de encobrir as ilegalidades do julgamento noturno, fazer esquecer os falsos
testemunhos e os furores do juiz. Cegos pela ânsia de acabar com este caso,
passavam mais uma vez por cima da lei, que proibia aos juízes dar audiência em
dia de festa, na véspera de sábado e antes do sacrifício da manhã.
Naquela
audiência já não se tratava de acusações mal definidas, de palavras equívocas,
de testemunhas mais ou menos seguras. O Supremo Conselho queria condenar Jesus
unicamente porque Ele se dizia o Messias prometido a Israel. Segundo alegavam,
Jesus não aceitava as tradições que os fariseus acrescentaram à Lei de Moisés,
não tinha estudado nas escolas dos doutores, não tinha envergadura para fundar
um reino judaico sobre as ruínas do império romano. Portanto, era um falso
Messias, um impostor que merecia a morte. Por isso, quando Jesus compareceu
perante a assembleia, o presidente só lhe pediu uma simples declaração: Declara-nos se Tu és o Messias! Jesus
respondeu-lhe: Por que me perguntais? Se
disser que sou o Messias, vós não me crereis. E se Eu vos dirigir perguntas,
com o fim de vos fazer ver a verdade, vós não me respondereis nem me soltareis.
Isto
equivalia a dizer claramente aos membros do Conselho: Não vejo em vós juízes
que buscam a verdade, mas esbirros decididos a proferir uma sentença de morte. Jesus
desvendou assim diante deles a criminosa deslealdade, fitou-os de frente e
acrescentou, em tom pleno de majestade: Depois
que tiverdes dado a morte ao Filho do Homem, ficai sabendo que Ele se sentará à
direita de Deus onipotente (Lc 22, 67-69).
Ao
ouvir esta palavra, ergueram todos a cabeça, pois uma simples criatura não se
senta à direita de Deus onipotente.
— Tu és então o Filho de Deus? – bradaram-lhe
de todos os lados.
— Vós dizeis bem. Eu sou o Filho de Deus.
Esperavam
apenas esta afirmação solene, para desatar os seus furores. Mal o ouviram,
bradaram todos em coro: Ele mesmo acaba
de se acusar. Não precisamos de mais testemunhos! Merece a morte! (Lc 22,
70-71). E condenaram-no ao último suplício, como culpado de lesa-nação, por ter
usurpado o título de Messias; e de lesa-majestade divina, por ter ousado
chamar-se Filho de Deus. Consideraram-se então obrigados a levar o condenado ao
pretório do governador romano, a fim de que a sentença fosse ratificada e
executada naquele mesmo dia.
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Judas recebe as 30 moedas (La Maestà, detalhe) – Duccio di
Buoninsegna, séc. XIV. Museo dell’Opera del Duomo, Siena.
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O
maldito traidor, Judas Iscariotis
Durante
aquela noite tenebrosa, andava um homem sombrio e silencioso em torno do
palácio do pontífice, procurando saber as peripécias do espantoso drama que se
desenrolava no pretório de Caifás. Era Judas, o traidor que vendera e entregara
o seu divino Mestre por trinta moedas de prata. Depois da prisão de Jesus no
Jardim das Oliveiras, a vergonha e o remorso invadiram-lhe a consciência, não cessando
de o atormentar. O demônio dissimulara a enormidade do seu crime; mas, uma vez
cometida a traição, pôs-lhe diante dos olhos toda a monstruosidade do que
fizera.
Caim,
por ter matado seu irmão, foi amaldiçoado por Deus, e o sangue de Abel clama e
clamará eternamente vingança contra o assassino. Mas o inocente Abel era apenas
um homem, ao passo que Jesus era o Filho de Deus. ‘Judas, o sangue do Filho de
Deus será derramado, e eternamente clamará vingança contra ti!’ — assim lhe
falava o demônio. E a alma de Judas fechava-se como a de Caim, insensível ao
amor e ao arrependimento, para dar entrada ao desespero e ao ódio a Deus!
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Judas sentia
pesar e remorso,
mas o Sinédrio não os tinha
e lançava toda a culpa sobre ele.
Judas atirou aos pés dos sacerdotes
as trinta moedas de prata
e saiu do Templo,
sem saber
para onde dirigir os seus passos.
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Imerso
na turba, o traidor encontrava-se à porta do palácio quando ela foi aberta para
dar passagem aos soldados que conduziam Jesus ao pretório do governador romano.
Soube ele, por este indício, que a vítima da sua traição já estava condenada. O
mais espantoso desespero penetrou-lhe o íntimo da alma. Alguns sacerdotes que
saíam do Conselho dirigiam-se ao Templo, para o sacrifício da manhã. Seguiu-os,
levando as moedas de prata com que eles lhe pagaram a traição. Mal chegaram ao
lugar santo, apresentou-se diante deles e disse-lhes com uma voz que o horror tornava
trêmula: Pequei, entregando-vos o sangue
do Justo (Mt 27, 4). E estendeu-lhes a mão com a bolsa dos trinta dinheiros,
que lhe queimavam os dedos.
Ao
proclamar ele mesmo a inocência do seu Mestre, restituindo o preço do crime, talvez
Judas esperasse abrandar aqueles homens e fazê-los intervir em favor do
condenado, arrancando-o assim à morte. Mas tinha diante de si corações mais
duros que o dele, e mais insensíveis aos remorsos. Responderam-lhe encolhendo
os ombros, com zombarias indignas: Se
entregaste o sangue inocente, isso é lá contigo. O que temos nós a ver com o
caso? Tu és o único responsável. Judas sentia pesar e remorso, mas o
Sinédrio não os tinha e lançava toda a culpa sobre ele. Judas atirou aos pés
dos sacerdotes as trinta moedas de prata e saiu do Templo, sem saber para onde
dirigir os seus passos.
Assim
morrem os que vendem Jesus e a Igreja
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O demônio tira a alma de Judas
Giovanni Canavesio, 1491.
Chapelle
Notre-Dame des des Fontaines,
La Brigue, França.
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Do
Monte Moriá, colina do Templo, desceu Judas ao vale de Josafat. Aí andou pelo
meio dos sepulcros, passou junto do túmulo de Absalão (esse filho maldito que
voltara as armas contra o seu pai) e lançou um olhar para aquele Monte das
Oliveiras, ao pé do qual Jesus pouco antes lhe dissera: Amigo, com um beijo entregas o Filho do Homem! Uma voz interior, a voz
de Satanás, gritava-lhe sempre: Maldito! Maldito! Entrou logo no vale da Geena,
imagem do inferno do qual toma o nome. Abrandou o passo e subiu a vertente
escarpada que espreita para o Monte Sião. Estava sozinho no campo de um oleiro,
e pela última vez fixou o olhar em Jerusalém. Desatando o cinto, enforcou-se
numa árvore e morreu desesperado.
O
cadáver do traidor foi encontrado ao pé da árvore. O laço se havia rompido,
caindo seu corpo no chão e rebentando-se suas entranhas, que ficaram espalhadas
pela terra. Foi enterrado no campo do oleiro. Como os sacerdotes não queriam incluir
no tesouro do Templo as trinta moedas de prata, por serem preço de sangue,
compraram com aquela quantia o campo do oleiro onde Judas se enforcara, destinando-o
à sepultura dos prosélitos estrangeiros. Aquele campo chama-se ainda hoje Haceldama, isto é, preço de sangue. Deste
modo se cumpriu a profecia de Jeremias: Receberam
os trinta dinheiros de prata, preço d´Aquele que foi posto à venda, e os deram
pelo campo de um oleiro, conforme dispôs o Senhor (Zac 11, 12-13; Jer 19, 1
ss; Mt 27, 3-10).
Assim
foi a morte do novo Caim, assim morrem os que, à imitação de Judas, vendem
Jesus e a Igreja por algumas moedas de prata. O seu espírito extinto já não crê
na misericórdia do Deus a quem atraiçoaram, o seu coração endurecido fica
insensível ao amor, a sua alma desesperada cai no abismo, onde ecoará aquela
palavra de Jesus a Judas: Ai daquele por
quem o Filho do Homem for traído! Melhor lhe seria que não tivesse nascido
(Mc 14, 21).
__________________
Notas:
1.
Pe. Augustin
Berthe, C.SS.R., nasceu a 15 de agosto de 1830, em Merville, diocese de Cambrai
(França). Faleceu em Roma em 22 de novembro de 1907. Ordenado sacerdote em 1854,
tornou-se grande missionário e pregador da sua Congregação. Foi professor de
Retórica, reitor de diversas casas redentoristas na França e consultor geral da
Congregação em Roma. Escreveu numerosos artigos e livros traduzidos para
diversas línguas, com tiragens muito elevadas.
2.
Esta
particularidade da Paixão do Salvador é conhecida pela tradição. Ainda hoje se
mostra, junto à ponte do Cedron, uma pedra de bom tamanho na qual Nosso Senhor,
ao cair, deixou a impressão dos seus joelhos, pés e mãos. A Igreja concedeu
indulgências aos peregrinos que se ajoelham naquela pedra do Cedron, que se
tornou uma das estações da Via do Cativeiro, nome do caminho que seguiu Jesus
desde o horto de Getsêmani até o palácio de Pilatos.
3.
Uma daquelas
grutas chama-se ainda Retiro dos
Apóstolos, lugar onde se refugiaram oito apóstolos depois da prisão do
Salvador, segundo a tradição.
4.
Ainda hoje, os
peregrinos que descem o monte Sião visitam a Gruta do Arrependimento de São Pedro. Segundo uma tradição, depois
que saiu do palácio de Caifás, naquela gruta Pedro chorou amargamente (Lc 22,
62). Até o século XII, ela estava encerrada dentro de uma igreja que tinha o
nome de S. Pedro em Galicanto (canto
do galo). Esta igreja não existe mais.