Agradecendo ao Divino Menino Jesus, à Sua Santíssima Mãe e a São José por todo auxílio ao longo deste ano cheio de embates em defesa da instituição da Família, agradeço também a todos nossos Amigos por terem participado de tais embates e nos incentivado na luta contra os fatores que visam a decomposição da sociedade.
De todo coração desejo-lhes um Santo e Feliz Natal, coroado das mais escolhidas graças da Sagrada Família e celestiais bênçãos de Ano Novo. Que Jesus, Maria e José reinem ao longo de todos os dias de todos anos em seus lares e corações, protegendo e concedendo-lhes a verdadeira paz, que — segundo Santo Agostinho — é a “tranquilidade da ordem”. E por ordem não entendemos apenas viver pacificamente neste mundo anárquico e igualitário, mas a reordenação de todas as coisas (das leis, das instituições, etc.) conforme àquele Divino Infante que veio ao mundo para salvá-lo. Como bem definiu Plinio Corrêa de Oliveira: “Se a Revolução é a desordem, a Contra-Revolução é a restauração da ordem. E por ordem entendemos a paz de Cristo no reino de Cristo. Ou seja, a Civilização Cristã, austera e hierárquica, fundamentalmente sacral, antiigualitária e antiliberal”.
Para esta época natalina, por excelência familiar, ofereço a nossos leitores uma bela lenda de Natal — de autoria do historiador francês G. Lenotre (1857 – 1935), extraída do livro “Lendas de Natal” (Editora Verbo, Lisboa, 1966) —, que narra a nobre atitude do Conde de Plessis-Morambert para com um simples menino limpador de chaminés, chamado Mathiote; bem como a atitude, também nobre, do limpador de chaminés em relação ao Conde, ajudando-o a escapar da prisão à qual fora encarcerado pelos sanguinários sans-culottes na Revolução Francesa.
Um Conto de Natal que bem retrata a harmonia entre as classes sociais, numa “civilização antiigualitária e antiliberal” — que a Revolução de 1789 fez de tudo para destruir, assim como tentou abolir o próprio Natal. O que seria do mundo sem Natal?
Paulo Roberto Campos
Natal/2010
Mathiote
G. Lenôtre
A lembrança enternecida daquela festa inesperada levava ali todos os anos, na mesma data, o limpa-chaminés, que recebia sempre broas e sopa quente, para as quais o atraía não só o reconhecimento, mas também a gulodice e o interesse.
Ora, naquela noite, que era a de 24 de dezembro de 1793, o pequeno ficou surpreendido ao encontrar o palácio fechado. Nas janelas não brilhava uma luz. Deixou cair por várias vezes a aldrava da porta, sem obter resposta, e ia já desistir e virar as costas, muito desiludido, quando avistou na extremidade da rua, na escuridão já densa, o vulto de um rapazinho que se encaminhava a largos passos para o palácio. Mathiote reconheceu Tiago de Morambert e correu para ele.
— Ah! És tu, Mathiote... Coitado, vieste!... Anda, vem depressa, é melhor entrarmos.
Mal entraram em casa, Tiago rompeu a soluçar:
— Há oito dias que meu pai foi preso. O Comitê revolucionário desta área denunciou-o. Vão julgá-lo antes do fim do ano. Ai, Mathiote! O meu pai está perdido!...
E o pranto do pequeno redobrou. Mathiote, a quem o Terror em nada alterara a humilde existência, soube que o conde era acusado de “incivismo” – crime terrível naquela época – e que o cadafalso era inevitável. Havia oito dias que Tiago ia postar-se todas as tardes em frente à prisão. Tinham-lhe recusado a consolação de falar com o pai, mas pelo menos, através das grades de uma janela que dava para a rua, via o conde atirar-lhe beijos. O pobre rapazinho ficava ali até ao anoitecer. Regressava justamente dessa dolorosa “entrevista”, no momento em que Mathiote o encontrara.
— Não se aflija, senhor Tiago – disse o limpa-chaminés, desolado com o que acabava de ouvir. Esses malvados não podem matar assim o senhor conde, que é tão bom, tão caridoso.
— Enganas-te. Foi isso que o perdeu.
— Tenha coragem e deixe o caso comigo.
— Contigo? Que podes tu fazer?... Qualquer tentativa de o ajudar só serviria para apressar a execução.
E Tiago recomeçou a chorar. Mathiote consolou-o o melhor que pôde. Os dois rapazes estiveram juntos cerca de uma hora. Quando o limpa-chaminés saiu do palácio, anoitecera de todo. Dirigiu-se em passo rápido, e quase alegre, para o centro de Paris.
O conde de Plessis-Morambert fora encerrado na prisão da Abadia. Durante as primeiras horas de cativeiro, dominado por essa sobre-excitação raivosa que se apossa de todos os presos, andara às voltas na cela, como uma fera na jaula, esquadrinhando os cantos da prisão, sacudindo as grades da janela, procurando arrombar a porta, esforçando-se, em suma, por descobrir qualquer meio de evasão. A solidez das barras de ferro, a espessura das paredes, as enormes dimensões da fechadura atarrachada por grandes parafusos, depressa lhe dissiparam as ilusões.
A essa natural agitação, a inatividade forçada fez suceder longas horas de prostração. Invadira-o uma espécie de resignação calma, e nessa noite, à frouxa luz de uma lanterna que o carcereiro acendera, sentado na única cadeira de palha que mobiliava a cela, com os olhos fitos na chaminé vazia, meditava tristemente. O seu pensamento fugia para o lar onde se sabia tão amado. Via o seu pequeno Tiago lavado em lágrimas, sozinho no palácio deserto, pedindo por ele a Deus. E lembrava-se das noites de Natal passadas, quando o pequeno, antes de adormecer, ia pôr os sapatinhos na chaminé, esperando a visita do Menino Jesus, que nunca faltava.
Que pensaria Tiago na manhã seguinte, ao acordar, quando visse que o Menino Jesus se esquecera dele? À idéia daquela decepção inevitável, o conde de Morambert fixava os olhos cheios de lágrimas na chaminé sem lume, comovido pela lembrança dessas noites felizes, quando entrava pé ante pé no quarto do filho adormecido e dispunha na chaminé os brinquedos enfeitados de laçarotes, os altivos soldados de pau na caixa de pinho branco, as laranjas de ouro, as frutas cristalizadas – todo esse paraíso de coisas boas que o menino, ao acordar, festejava com palmas e gritos de alegria.
O conde foi bruscamente arrancado aos seus melancólicos pensamentos por um ruído estridente na chaminé. Uma chuva abundante de caliça e fuligem crepitou na pedra da lareira, seguida quase logo de um volumoso embrulho muito bem amarrado, que caiu pesadamente e rolou até ao meio da cela. Espantado com o caso estranho, o conde se levantou. Os seus olhos iam da chaminé ao misterioso embrulho, quando viu de repente dois pés que balouçavam por cima da lareira. Num instante esses pés tocaram no chão. Uma forma negra agachou-se na chaminé e saltou com esforço para o meio do quarto, dizendo:
— Não se assuste, senhor conde! Sou eu, Mathiote.
Era Mathiote, com efeito. De pé diante do preso, com a cara e a roupa negros de fuligem, sorria, mostrando os dentes brancos. Os olhos, na face de breu, pareciam claros e luziam como estrelas.
— Ma-thi-o-te?... – vacilou o fidalgo, tentando lembrar-se.
— Eu é que não me esqueci do senhor conde. Venho lá da sua casa. O senhor Tiago está bem. Alegre não está, já se sabe... Mas depois falaremos dele com mais vagar. Agora venho buscá-lo, senhor conde.
— Vens buscar-me?
— Sim, não podemos perder tempo. Fale baixo. Tenho aqui tudo o que é preciso. Primeiro, roupas para o senhor.
E o pequeno limpa-chaminés desatava febrilmente o embrulho que atirara pela chaminé.
— Arranjei as roupas em casa do patrão. Está aqui este rolo de luíses de ouro, que o Sr. Tiago me deu. São dois mil francos. Podem servir, mas temos de os esconder. Daqui a um quarto de hora estaremos na rua.
— Mas por onde sairemos, meu pequeno? Não pretendes levar-me por onde vieste, com certeza... Aliás, onde é que iríamos ter? Aos telhados... É verdade: como conseguiste encontrar a minha cela?
— O senhor Tiago tinha-me dito: a última janela à esquina da rua Sainte-Marguérite, e estudei bem o local. Quando se está habituado, não custa nada. Mas olhe, senhor conde, se me dá licença, agora não lhe respondo mais. Conversaremos depois, na rua. Vou trabalhar, e enquanto isso o senhor se vista.
Mathiote dirigiu-se à porta da cela e examinou a fechadura. Tirou da algibeira uma chave de parafusos e começou a tentar soltar a enorme chapa. Trabalhava com precisão e habilidade. O prisioneiro olhava para o que ele fazia, estupefato. Estava numa dessas situações em que a alma, amolecida e desencorajada, se rende antecipadamente, sem luta. A um gesto imperativo de Mathiote, obedeceu quase insensivelmente, despiu a sobrecasaca e começou a enfiar as calças endurecidas de fuligem e o casaco ensebado e enfarruscado, que o pequeno lhe trouxera. A outro sinal, tirou a peruca e foi à chaminé, onde massageou energicamente o rosto com as mãos sujas. Assim disfarçado, tão a rigor que parecia um autêntico limpa-chaminés, voltou para junto de Mathiote que, com ar de triunfo, mas sem dizer palavra, lhe mostrou a fechadura finalmente solta. O pequeno aprovou com um aceno de cabeça a transformação do aristocrata, depois aproximou-se dele e disse em voz baixa:
— Está salvo. Pegue no seu dinheiro e esconda-o. Fiquei com uma moeda, da qual vou precisar agora. O senhor desce a escada atrás de mim. Quando eu me aproximar da sentinela, siga o seu caminho sem parar. Saia naturalmente para a rua e volte à esquerda, sem hesitação. Estamos entendidos?
O conde respondeu-lhe com um aperto de mão. Mathiote abriu a porta e lançou um olhar para o corredor. Sem precipitação, deu passagem ao prisioneiro, saiu com ele e fechou a porta atrás de si. Seguiram pelo corredor e desceram a escada.
No átrio da prisão, o carcereiro, que entrara de serviço havia menos de uma hora, dormia num cubículo envidraçado, aquecido por um fogareiro de barro e mal iluminado por uma lanterna pousada sobre a mesa. O conde, guiado pelo rapazinho, ficou na escuridão, onde o seu vulto negro desaparecia por completo, enquanto Mathiote, com desembaraço, ia bater no vidro e acordava o carcereiro:
— Quero sair, cidadão!
O carcereiro abriu os olhos, dirigiu a luz da lanterna para o local de onde vinha a voz, viu apenas a criança carregada de cordas, de ganchos, de vasculhos – instrumentos do seu ofício – e, tranqüilizado, puxou o cordão da porta. A porta abriu-se, o conde esgueirou-se no escuro até ao limiar. A custo conteve um movimento de recuo, ao ver a sentinela que se voltara, ao ouvir o ruído do fecho. Mathiote, porém, tinha previsto isso e disse, logo que a porta voltou a fechar-se nas costas deles.
— Desculpe, senhor militar, pode indicar-me onde está o chefe do posto?
— O chefe do posto? Que queres tu do chefe do posto? Que estás fazendo por aqui? E quem é esse homem que vai sair? Aqui ninguém passa!
— Queria entregar ao senhor oficial esta moeda de ouro que encontrei lá em cima numa sala vazia, ao varrer as cinzas da chaminé. Está aqui. Não sei o que fazer dela...
E o rapazinho mostrava ao guarda a moeda, que brilhava no escuro, na ponta dos dedos enegrecidos.
O guarda sans-culotte tomou a moeda, examinou-a e meteu-a no bolso. Naquela época, valia duzentos francos em papel-moeda. Já humanizado, o guarda resmungou:
— Está bem, deixa ficar, que eu entrego ao chefe. Não vale a pena acordá-lo por tão pouco.
— Obrigado, cidadão.
— Não há de quê, garoto.
E Mathiote, numa corrida, alcançou o conde de Morambert, que durante este diálogo se adiantara e caminhava já a passos largos pela Rua de Buci.
O valente rapazinho tinha o seu plano. Não ignorava que era impossível esconder o conde em Paris: as buscas domiciliárias inutilizavam qualquer tentativa de despistar a polícia. Além disso, como encontrar, nessa época de terror, um ser tão heróico, tão temerário que estivesse disposto a oferecer hospitalidade, mesmo por uma noite, ao prisioneiro evadido, cuja fuga logo no dia seguinte ia ser participada a todos os agentes do Comitê de Segurança Geral?
Por isso Mathiote resolvera sair da França e ir para a Sabóia. Ali, ao menos, conhecia uma casa, a dos pais, onde o seu nobre protegido poderia viver sem perigo até passar a tormenta revolucionária. Em dez dias poderiam chegar à fronteira, e dois saboianos de regresso à terra, no seu traje regional de limpa-chaminés, tinham grandes probabilidades de fazer toda a viagem sem despertar suspeitas.
Para maior segurança, envolveu numa ligadura de linho a cabeça do fidalgo, como se estivesse ferido. Na realidade, fizera isso apenas para explicar o mutismo absoluto que o conde devia manter, sempre que estivessem entre estranhos. Mathiote encarregava-se de responder a todas as perguntas, de desencorajar todas as indiscrições. E fizeram o seu caminho sem ser alvo de nenhuma curiosidade. Ao segundo dia de jornada, o conde de Morambert, pouco afeito a andar a pé, privado do conforto a que estava habituado, comendo toucinho nas estalagens, bebendo água nas fontes, dormindo nos palheiros das herdades, já não precisava fingir. Representava convincentemente o papel de um trabalhador exausto, ferido e doente, que se arrasta conforme pode, para chegar à sua terra. Ninguém poderia descobrir um aristocrata nesse homem escaveirado e sujo, sempre calado, que levava por companheiro o castiço limpa-chaminés, exuberante no seu dialeto saboiana.
O conde, entretanto, admirava a inteligência e a força de alma dessa criança que o salvara. Não tivera até então oportunidade de apreciar as sólidas virtudes da gente do povo. Encontrava motivo sempre novo de espanto na dedicação, no desinteresse absoluto desse pobre limpa-chaminés, que arriscava a vida em reconhecimento de uma sopa quente e de um luís de ouro. Durante as longas marchas, dias a fio, o conde repetia com os seus botões a frase célebre: “Onde se foi esconder a virtude!”
Doze dias depois de saírem de Paris, os fugitivos chegaram finalmente à última aldeia francesa. Mathiote, fresco, bem disposto e cheio de entusiasmo; o conde, estafado, a coxear, mal podendo arrastar-se. Depois de uma noite inteira de caminho, tinham parado numa estalagem e estavam comendo pão com manteiga, quando o estalajadeiro, dirigindo-se a Mathiote e apontando o conde, perguntou:
— É o teu pai?
— Não, senhor, é o irmão do meu patrão.
— Está doente?
— Caiu de um telhado e aleijou-se. Vou acompanhá-lo à terra.
— Tens passaporte?
— Tenho... o quê?
— Não podem passar a fronteira se não têm os papéis. A fronteira está guardada pelos patriotas. Ainda ontem eles prenderam dois emigrados, que estavam disfarçados como vendedores de queijos.
Mathiote empalideceu, sob a fuligem que lhe cobria o rosto, pois não previra esse desfecho. Mas conseguiu controlar-se, e comentou com simplicidade:
— Apesar disso eu gostaria de passar. Eu já podia ter chegado, mas o velho mal consegue arrastar-se.
— Só pode passar quem tiver os documentos – finalizou o estalajadeiro, e em seguida pôs-se a cuidar de outras coisas.
Uma hora depois os fugitivos, sentados num tronco à beira do caminho, não haviam ainda conseguido, apesar de todo o esforço, achar um meio de transpor aquele último obstáculo. Adiante deles a estrada conduzia a uma ponte sobre um riacho, e do outro lado já era o estrangeiro. Menos de cem metros. Eles até conseguiam já ver um poste com as cores da Savóia, bem na fronteira. Mas antes disso havia uma dezena de soldados bem armados, impedindo a passagem no posto de guardas.
— Senhor Conde, vamos tentar um último esforço. Podemos caminhar pelo mato, e depois cruzaremos o riacho em algum lugar menos profundo.
— Impossível, meu pobre Mathiote. Eu mal consigo caminhar, e não poderia fazê-lo nesta terra gelada.
— Então poderíamos aproximar-nos do posto, e enquanto eu distraio os guardas o senhor dá uma corrida e...
— Correr! Correr com estas pernas doloridas!... E além disso eles começarão a atirar.
— Bem, mas as balas podem não acertar.
— Neste caso eles te farão prisioneiro, e pagarás com a vida. Não posso consentir nisso.
— Então!...
— Então está tudo acabado. Encalhamos bem perto do porto. O melhor é me deixares aqui e seguires sozinho pelo mato. Só estarei tranqüilo quando tiveres passado o riacho.
Mathiote ficou pensativo por um momento, coçou a cabeça, e em seguida propôs:
— Temos uma última possibilidade, Sr. Conde. Vamos caminhando tranqüilamente até o posto da guarda. Se eles nos pedirem os papéis, o senhor continuará caminhando o mais rápido que puder. Enquanto isso eu vou desabotoar lentamente a minha jaqueta, e começarei a simular a procura dos documentos nos bolsos. Isto será suficiente para o senhor avançar uns bons metros. Mas... – e calou-se, hesitando.
— Mas o quê?
— Mas, como não temos a certeza de escapar, é melhor o senhor desfazer-se dos luíses... Se o revistassem e lhe achassem tanto dinheiro, então é que ficaria comprometido de fato!
O conde aquiesceu com um sinal de cabeça. As últimas palavras de Mathiote pareciam confirmar uma leve suspeita que ainda tinha. Na realidade, fora muito ingênuo ao acreditar que um rapazinho daquela condição o ajudara, a ele, rico e nobre, por pura dedicação. Era a primeira vez que se deixava iludir pelo aparente desinteresse de um plebeu. Parecia que o saboiano tivera apenas uma intenção: apropriar-se daquela soma, que para ele era uma fortuna, e receber assim o preço dos seus serviços. Tirou o dinheiro dos bolsos e o pôs na mão do limpa-chaminés. Depois, passando a mão pela testa, como se quisesse afastar a amargura da decepção, levantou-se a custo.
— Vou me entregar. Trata de escapar, se puderes. Tens razão: cada um por si.
— Eu não o deixo! – exclamou Mathiote, seguindo-o com ar alegre.
Minutos depois os fugitivos chegavam diante do posto. Os soldados, sem desconfiança perante o traje característico dos dois viajantes, deixaram-nos passar sem exigir documentos. Mal tinham dado alguns passos para a ponte, o oficial, com uma súbita suspeita, chamou os seus homens:
— Rapazes! Olhem para esses dois, que já transgrediram a ordem! Ei, garoto!
Mathiote fingiu que não ouvia. Isso significava mais alguns passos ganhos.
— Páras ou não, pequeno patife?
Mathiote voltou-se, afetando um ar surpreendido, e retornou ao posto, enquanto o conde, chamando a si todas as forças, estugava o passo em direção à fronteira.
— Que foi, cidadão? – perguntou o rapazinho, com ar inocente.
— O teu passaporte!... E o outro, será que ele é surdo?
— Está ferido...
— Ele que pare, senão disparamos!
— Oh, cidadão, não faça isso!... O meu passaporte... já lho dou... é só um instante...
Seguindo pelo canto do olho o conde de Morambert, que estava já a poucos passos da ponte, Mathiote enfiava as mãos em todos os bolsos, virava a boina pelo avesso, despejava o saco. Aquela manobra não enganou o oficial. Percebendo o embuste, chamou os seus homens com uma praga formidável:
— Façam fogo! Não vêem que é um aristocrata tentando fugir? Abatam esse homem! Fogo! Fogo!
Todas as espingardas se abaixaram ao mesmo tempo. Mathiote, num salto, atirou-se para a frente dos canos apontados. Os soldados hesitaram em fuzilar à queima-roupa aquela criança desarmada.
— Fogo! Façam fogo, senão ele nos escapa!
Mas nesse instante Mathiote, enchendo as mãos com as moedas de ouro que trazia nos bolsos, atirou-as como confeitos de batizado aos pés dos soldados prestes a disparar.
E foi uma confusão indescritível. À vista daquele ouro que rolava pela estrada, os soldados perderam a cabeça, largaram as espingardas e precipitaram-se para o apanhar, empurrando-se, atirando-se ao chão, disputando a soco o despojo inesperado.
Mathiote não se deteve a contemplar aquele quadro épico. Num salto, foi juntar-se ao conde, do outro lado da ponte, fora da França. E enquanto os soldados lutavam ainda, disputando a última moeda, a criança atirou a boina ao ar e gritou no seu dialeto saboiano:
— Evviva la libertà! — E correu para o seu companheiro.
Esgotado, chorando de alegria, de cansaço e de gratidão, o conde caíra abraçado ao poste com as cores da Sabóia.