24 de março de 2024

ANUNCIAÇÃO — Uma presença angélica num ambiente paradisíaco

Anunciação – Fra Angélico (1442-43). Convento de São Marcos, Florência, Itália.


✅  Plinio Corrêa de Oliveira 

Observem esse quadro de Fra Angelico representando a Anunciação do Anjo a Nossa Senhora, festividade celebrada pela Igreja no dia 25 de março. 

Um claustrozinho com dois átrios, umas pequenas abóbodas, nele se esparge uma luz maravilhosamente difusa. Fazendo uma análise desse jardim, que parece de brinquedo, dir-se-ia que cada graminha foi penteada, que cada coisinha foi posta em ordem. É um jardinzinho comum, mas tudo está arranjadinho e ajeitado. 

Nossa Senhora rezando e o Arcanjo São Gabriel reverente diante d’Ela. Ele proclama a saudação angélica e anuncia que Ela vai ser a Mãe do Verbo Encarnado. 

Olhando-se para a pintura, vemos que na imagem de Nossa Senhora resplandece uma luz. A figura d’Ela é tão santa que fica-se sem saber o que dizer. O Anjo é tão transparente e diáfano que nos arrebata. Numa palavra, angélico! 

A Virgem Santíssima e o Anjo são o foco de luz do quadro, mas essa luz se esparge de modo meio difuso por todos os lados. Tem-se a impressão de que a própria vegetação tem um verde e um viço recebidos pela presença d’Ela e do Anjo descido do Céu. 

Se eu imagino Nossa Senhora andando sobre a relva, parece que onde Ela punha os pés a relva ganhava vida e se tornava mais bela e mais esplendorosa, mais parecida com as relvas do Paraíso. Com o contato d’Ela, tudo ficava meio paradisíaco. Há como que presença angélica naquele ar que as pessoas notam sem perceber, elas veem sem ver e se encantam sem saber por quê. 

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Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 6 de abril de 1972. Esta transcrição não passou pela revisão do autor.

20 de março de 2024

Por que defendemos um Ocidente decadente

 

                  Um establishment dirigido por Davos promove as agendas woke e ecológicas por toda parte


  John Horvat

Um choque de proporções monumentais parece provável à medida em que a ordem liberal do pós-guerra se desmorona. Isto poderá acontecer se os atuais focos de conflito na Ucrânia, Israel, Coreia do Norte e Taiwan se expandirem e envolverem as grandes potências com suas respectivas esferas de influência. Assim, muitos analistas enquadram corretamente o envolvimento dos Estados Unidos nos conflitos de hoje como uma defesa do Ocidente. Os riscos são de fato elevados, uma vez que qualquer surto ameaça não apenas nações individuais, mas o estado atual do mundo.

 

Afeganistão. Um exemplo, entre mil, de como nem o Oriente nem o Ocidente estão isentos do domínio da Revolução Cultural. 

Defesa do Ocidente

Contudo, certas correntes não veem a batalha desta forma. Questionam o objetivo de defender o Ocidente no seu atual estado de decadência. Podem até simpatizar com os aiatolás do Irã e outros adversários do Ocidente que veem os Estados Unidos como o “Grande Satã”, responsável pelos males do mundo. Na verdade, as nações ocidentais muito colaboraram para corromper o mundo com as suas redes globalizadas, modas imorais e culturas decadentes.

China
Um establishment dirigido por Davos promove as agendas woke e ecológicas por toda parte. Outras potências antiocidentais, como a Rússia e a China, afirmam representar culturas que se opõem a essas tendências alarmantes.


 

Lei Eterna e Natural: a base da Moral e da Lei

Assim, alguns afirmam erroneamente que não se deve defender o Ocidente por causa dessa decadência. Acham que é melhor recuar para o isolacionismo e deixar o sistema globalizado com as suas elites corruptas desmoronar-se. Tal atitude está errada. Não são considerados três pontos principais que colocam essa grande luta em perspectiva.

 

Uma revolução universal que afeta a todos

França
O primeiro ponto é que uma crise mundial universal aflige o mundo inteiro. Nem o Oriente nem o Ocidente estão isentos do seu domínio. Ataca, em vários graus, todos os estados, culturas e sistemas.

O pensador e homem de ação brasileiro, Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, chamou essa crise de Revolução, um processo histórico que começou com a Revolução Protestante e avançou com as Revoluções Francesa e Comunista. Hoje, manifesta-se na Revolução Cultural. Seu objetivo é extinguir todos os vestígios do Cristianismo.

Essa profunda crise moral na alma do homem moderno é impulsionada por movimentos de orgulho e sensualidade. É uma revolta contra Deus que afeta a todos. As redes globalizadas de hoje facilitam a sua propagação em todo o mundo, não deixando ninguém intocado.

Estados Unidos
Afirmar que algumas regiões como a Rússia, a China ou o Irã estão isentas da sua influência é uma ilusão. Na verdade, o flagelo moral do aborto provocado, da pornografia e da promiscuidade encontra-se nesses lugares e em vários outros. A irreligião, o igualitarismo e o niilismo são neles igualmente galopantes.

Assim, esta luta deve ser vista neste contexto, em que ambos os lados estão infectados com o mesmo germe dessa Revolução, embora manifestada de forma diferente.

 

Bolívia

A Revolução não é o Ocidente

Em segundo lugar, essa Revolução não pode ser equiparada ao Ocidente. Pelo contrário, seu principal alvo é a civilização cristã ocidental. Incorpora-se nas estruturas ocidentais que dominam o mundo e, tal como um tumor cancerígeno, seus germes ideológicos contaminam e deitam metástases em todo o mundo.

Assim, a verdadeira crise está muito mais dentro dessas estruturas ocidentais do que num choque entre o Oriente e o Ocidente. O que o mundo está a testemunhar é a destruição causada pelas filosofias do século XIX, como o socialismo, o liberalismo e o hegelianismo, que deterioraram as almas de todas as nações, do Oriente e do Ocidente. O niilismo e as ideias woke estão visando e destruindo as narrativas ocidentais, as noções de identidade e as estruturas sociais onde quer que sejam encontradas.

Essa mesma Revolução também incita outras culturas a atacarem o Ocidente. Elas são instadas a não destruir a Revolução (o que seria uma coisa muito boa), mas sim a civilização cristã que o Ocidente outrora representou de forma tão vibrante.

Se quisermos que o mundo volte à ordem, devemos todos atacar o inimigo comum, que é essa Revolução moral. Para isso, a verdadeira luta é identificar e opor-se às suas manifestações mais radicais que levam adiante o seu processo destrutivo.

 

O ponto de unidade dinâmica do Ocidente foi a Cristandade sob a orientação da Igreja Católica. Essas nações se uniram em torno da pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e, com o Seu Evangelho, transformaram o mundo

Defendendo o Ocidente – ou o que sobrou dele

É por isso que os Estados Unidos devem defender o Ocidente — ou melhor, o que resta dele. Enquanto o Ocidente existir como ideal, ele ameaçará essa Revolução.

O Ocidente, como ideal, representa aquela família de nações, especialmente na Europa, que foram influenciadas pela moral e pelas crenças cristãs. O ponto de unidade dinâmica do Ocidente foi a Cristandade sob a orientação da Igreja Católica. Essas nações se uniram em torno da pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo e, com o Seu Evangelho, transformaram o mundo.

Esse mesmo Ocidente gerou instituições cristãs, filosofias, artes, cultura e modos de ser que ainda sobrevivem incorporados na vida quotidiana. O estado atual da Revolução procura destruir tudo isso. Essas estruturas sociais são muito mais alvo da hostilidade russa, chinesa e iraniana do que da decadência moral justamente condenável — que também encontra grande oposição por parte dos ativistas no Ocidente.

Por esta razão, as nações ocidentais estão em melhores condições para combater a Revolução com os seus remanescentes da civilização cristã do que os países antiocidentais que suprimiriam todos esses remanescentes juntamente com o Ocidente. Além disso, o Ocidente ainda encontra almas dispostas a lutar por esses ideais, e a opor-se à Revolução e implorar a ajuda da graça de Deus.

A aliança do comunismo chinês, do Islã político do Irã e da mística “Quarta Teoria Política” da Rússia representa um avanço no processo revolucionário. O seu triunfo sombrio comprometeria seriamente uma resposta contra-revolucionária.

É por isso que os Estados Unidos devem defender esse vago ideal cristão do Ocidente, mesmo no seu atual estado de decadência. O Ocidente continua a ser a plataforma sobre a qual a resistência, com a ajuda da graça de Deus, ainda pode ser despertada e alimentada.

Enquanto existirem algumas brasas da civilização cristã, uma Contra-Revolução poderá alimentá-las de volta a um fogo violento, privando a Revolução de todas as condições para prevalecer e garantindo assim o regresso à ordem.

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* O articulista é colaborador de Catolicismo, vice-presidente da TFP norte-americana e autor do best-seller Return to Order.

** Fonte: Revista Catolicismo, Nº 878, Março/2023.

19 de março de 2024

O Protetor por excelência das Famílias: o Glorioso São José

magem de São José, venerada
na Igreja de Nossa Senhora
da Conceição da Praia,
em Salvador, BA (Foto: PRC)

Em homenagem ao Santo Patrono das Famílias, o Glorioso São José — festividade comemorada hoje no mundo inteiro —, transcrevo uma esplêndida matéria sobre a altíssima linhagem do pai adotivo de Nosso Senhor Jesus Cristo, esposo castíssimo da Santíssima Virgem Maria. 

Ele é o modelo por excelência para todos os pais, tanto quanto à proteção devida à esposa quanto aos filhos. São José é o exemplo perfeito no qual todas as famílias deveriam se espelhar e a ele invocar sempre para superar as dificuldades inerentes ao convívio familiar.


São José: de raça patriarcal, régia e principesca 

Nosso Senhor Jesus Cristo quis viver na pobreza, mas nascer de estirpe real; viveu humildemente, mas amou a aristocracia, que é um dom de Deus.


Quando se fala em nossos dias de São José — cuja festa a Igreja celebra no dia 19 deste mês — recorda-se frequentemente sua condição de operário, de simples carpinteiro. E ele o foi realmente. Mas há um outro aspecto pouco considerado do pai adotivo de Jesus: sua alta nobreza de nascimento, pois descendia, assim como sua castíssima esposa, da real estirpe de David. “Regali ex progenie Maria exorta refulget” (Maria manifesta-se a nós fulgurante, nascida de uma estirpe real), conforme as belas palavras da Igreja. 

Uma vez que esse aspecto de Príncipe da Casa de David é pouco associado à pessoa de São José, convém realçá-lo aqui. Fazemo-lo reproduzindo alguns trechos extraídos da obra Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, de Plinio Corrêa de Oliveira.(1) 
Imagem da Sagrada Família, Jesus, Maria e José, que se venera na Igreja do Carmo, no Rio de Janeiro, Antiga Sé (Foto: PRC)


De um sermão de São Bernardino de Siena (1380-1444) sobre São José: 


“Em primeiro lugar, consideremos a nobreza da esposa, isto é, da Santíssima Virgem. A Bem-aventurada Virgem foi mais nobre do que todas as criaturas que tenham existido na natureza humana, que possam ou tenham podido ser geradas. Pois São Mateus (cap. 1), colocando três vezes catorze gerações, desde Abraão até Jesus Cristo inclusive, mostra que Ela é descendente de catorze Patriarcas, de catorze Reis e de catorze Príncipes. [...] 

São Lucas, escrevendo também no cap. 3 a sua nobreza, a partir de Adão e Eva, prossegue na sua genealogia até Cristo Deus. [...] 

Em segundo lugar, consideremos a nobreza do esposo, isto é, de São José. Nasceu ele de raça patriarcal, régia e principesca, em linha reta, como já foi dito. Pois São Mateus (cap. 1) leva em linha reta todos esses pais desde Abraão até ao esposo da Virgem, demonstrando claramente que nele desfechou toda a dignidade patriarcal, régia e principesca. [...] 

Em terceiro lugar, examinemos a nobreza de Cristo. Ele foi, portanto, como decorre do que ficou dito, Patriarca, Rei e Príncipe, por parte de mãe e de pai [...].

Os referidos Evangelistas descreveram a nobreza da Virgem e de José para manifestar a nobreza de Cristo. José foi portanto de tanta nobreza que, de certo modo, se é permitido exprimir-se assim, deu a nobreza temporal a Deus em Nosso Senhor Jesus Cristo”.(2) 

Dos escritos sobre São José, de São Pedro Julião Eymard (1811-1868):


“Quando Deus Pai resolveu dar o seu Filho ao mundo, quis fazê-lo com honra, pois Ele é digno de toda a honra e de todo o louvor. 

Preparou-Lhe, pois, uma corte e um serviço régio dignos d’Ele: Deus queria que, mesmo na Terra, o seu Filho encontrasse uma recepção digna e gloriosa, senão aos olhos do mundo, ao menos aos seus próprios olhos. 

Esse mistério de graça da Encarnação do Verbo, não foi realizado por Deus de improviso e aqueles que haviam sido escolhidos para tomar parte nele, foram preparados por Ele muito tempo antes. A corte do Filho de Deus feito Homem compõe-se de Maria e de José; o próprio Deus não poderia ter encontrado para seu Filho servos mais dignos de estarem junto d’Ele. Consideremos particularmente São José. 

Encarregado da educação do Príncipe real do Céu e da Terra, incumbido de dirigi-lo e de servi-lo, era necessário que os seus serviços fizessem honra ao seu divino pupilo: não ficava bem a um Deus, ter que se envergonhar do seu pai. Portanto, devendo ser Rei, da estirpe de David, faz nascer São José desse mesmo tronco real: quer que ele seja nobre, até mesmo da nobreza terrena. Nas veias de São José corre, pois, o sangue de David, de Salomão, e de todos os nobres reis de Judá e se a sua dinastia tivesse continuado a reinar, ele [São José] seria o herdeiro do trono e haveria de ocupá-lo por sua vez. 

Não vos detenhais a considerar a sua pobreza atual: a injustiça expulsou a sua família do trono a que tinha direito, mas, nem por isso ele deixa de ser Rei, filho desses Reis de Judá, os maiores, os mais nobres, os mais ricos do universo. Também nos registros do recenseamento em Belém São José será inscrito e reconhecido pelo Governador romano, como o herdeiro de David: esse é o seu pergaminho real, facilmente reconhecível e leva a sua régia assinatura. 

Mas, que importa a nobreza de José? — direis talvez. Jesus só veio para se humilhar. Respondo que o Filho de Deus, o qual se quis humilhar por algum tempo, também quis reunir na sua Pessoa todos os gêneros de grandeza: Ele também é Rei por direito de herança, pois é de sangue real. Jesus é nobre, e quando escolher os seus Apóstolos entre os plebeus, Ele os enobrecerá: esse direito pertence-Lhe, já que é filho de Abraão e herdeiro do trono de David. Ele ama esta honra de família; a Igreja não entende a nobreza em termos de democracia: respeitemos, portanto, tudo o que Ela respeita. A nobreza é de Deus.

Mas então, é preciso ser nobre para servir a Nosso Senhor? Se o sois, dar-Lhe-eis uma glória a mais; porém, não é necessário, e Ele contenta-se com a boa vontade e a nobreza do coração. Contudo, os anais da Igreja demonstram que um grande número de Santos, e dos mais ilustres, ostentavam um brasão, possuíam um nome, uma família distinta: alguns até eram de sangue real. 

Nosso Senhor compraz-se em receber a homenagem de tudo quanto é honorífico. São José recebeu no Templo esmerada educação e Deus preparou-o assim para ser o nobre servidor do seu Filho, o cavalheiro do mais nobre Príncipe, o protetor da mais augusta Rainha do Universo”(3) 
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Notas: 
1. Nobreza e elites tradicionais análogas nas alocuções de Pio XII ao Patriciado e à Nobreza romana, Editora Civilização, Porto, 1992. 
2. Sancti Bernardini Senensis Sermones Eximii, vol. IV, in Aedibus Andreae Poletti, Venetiis, 1745, p. 232.
3. Mois de Saint Joseph, le premier et le plus parfait des adorateurs – Extrait des écrits du P. Eymard, Desclée de Brouwer, Paris, 7ª ed., pp. 59-62. 
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Fonte: Revista Catolicismo, edição Nº 735, março/2012.

17 de março de 2024

COMBATIVIDADE E VIDA INTERIOR

Visão de Santo Inácio de Loyola de Cristo e Deus Padre em La Storta (detalhe) — Domenichino Zampieri (1581-1641). Coleção Particular, Londres.


  Plinio Corrêa de Oliveira

É de um catolicismo ardente, combativo, implacável, intransigente, completo que precisamos.

E precisamos também para os nossos católicos de uma vida profundamente imbuída de espírito de oração, profundamente voltada para o sobrenatural, para as verdades eternas, e não apenas de certo catolicismo que anda por aí sequioso de transigir com tudo, de fazer da Igreja uma instituição meramente humana, vivendo apenas dos esforços humanos e lutando com armas apenas humanas. 

Reunir em nós, ao mesmo tempo, a combatividade de um Santo Inácio de Loyola e a vida interior de uma Santa Teresa d’Ávila, eis aí um ideal certamente imenso, mas do qual nos devemos aproximar o mais possível. 

É preciso que desenvolvamos uma reação cada vez maior contra duas tendências incompletas, e, portanto, más, que existem em alguns dos nossos: 

1) a tendência de fazer da Igreja uma simples organizadora de novenas, inteiramente privada de qualquer intervenção positiva na vida social; 

2) considerar o Catolicismo principalmente como uma doutrina social, relegando a um plano inferior seu aspecto propriamente religioso e piedoso. 

O Catolicismo é, ao mesmo tempo, uma e outra coisa. E desde que perca um destes aspectos, passará a ser coisa alguma. Nunca a sociologia católica poderia ser aplicável, sem que a graça sobrenatural infundida através dos Sacramentos desse ao homem as forças necessárias para lhe purificar e elevar o caráter. Mais ainda: o homem nunca se conformaria com a austeridade inflexível de tal sociologia, nunca reconheceria a procedência de suas razões e de seus argumentos, se a graça não lhe viesse em auxílio, porque a eterna tendência do espírito humano será de considerar falsas as verdades incômodas.

Por outro lado, o Catolicismo será um mero passatempo de beatas, se não tivesse uma atuação real e vigorosa na vida social. Em uma palavra, a concepção exclusivamente piedosa do Catolicismo nos conduziria infalivelmente àquela piedade festeira e vã de nossos avós, que transformava as festas da Igreja em pretextos para divertimentos exclusivamente mundanos. 

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Excertos de uma carta de Plinio Corrêa de Oliveira a Alceu Amoroso Lima (pseudônimo: Tristão de Athayde), datada de 15 de outubro de 1932.

15 de março de 2024

Falar que o inferno está vazio não contradiz Jesus, que virá “julgar os vivos e os mortos”?

O Juízo Final (detalhe do Inferno) – Fra Angélico (1431). Museu de São Marcos, Florença, Itália

Pergunta Fiquei chocada quando li que o Papa Francisco tinha afirmado na TV italiana que achava, ou pelo menos desejava, que o inferno estivesse vazio. Fui falar com meu pároco, que se limitou a responder-me: “Se antes de conceber seu filho, você soubesse que ele passaria a eternidade no inferno, você ainda traria seu filho a este mundo?” Meio hesitante, eu disse que não. O padre me retrucou: “Se Deus deixa pessoas sofrendo eternamente no inferno, então Ele seria menos misericordioso que você”. Por minha vez, repeti-lhe que rezamos no Credo que Jesus virá, no fim do mundo, “julgar os vivos e os mortos”, mas que isso não teria sentido se algumas sentenças, pelo menos, não fossem de condenação. Confesso que fiquei perplexa.


Padre David Francisquini

Fonte: Revista Catolicismo, Nº 878, Março/2023* 

RespostaArgumentos de algibeira, que exploram os sentimentos em lugar de fazer um raciocínio frio, são os que levam pessoas românticas a adotar vários pontos de vista errados: que o Deus do Novo Testamento não é o mesmo que o do Antigo, ou que o inferno não é eterno, ou mesmo que o inferno é apenas a aniquilação da alma (como insinuou o Papa Francisco em outra ocasião). Outro ponto de vista bastante popular é a afirmação de que o inferno existe, mas está ou ficará vazio.

Como essa é a questão da atualidade, deixarei para outra ocasião o assunto mais fundamental: por que Deus, infinitamente bom, manda os pecadores impenitentes para o inferno?

Uma primeira questão a resolver é semântica, ou seja, o significado da palavra portuguesa “inferno”. Porque no Evangelho lemos que, antes da Ressurreição, Nosso Senhor desceu aos infernos. Ora, como o Catecismo da Igreja Católica explica: “A morada dos mortos, a que Cristo morto desceu, é chamada pela Escritura os infernos, Sheol [em língua judaica] ou Hades [em grego], porque aqueles que aí se encontravam estavam privados da visão de Deus. Tal era o caso de todos os mortos, maus ou justos, enquanto esperavam o Redentor, o que não quer dizer que a sua sorte fosse idêntica, como Jesus mostra na parábola do pobre Lázaro, recebido no ‘seio de Abraão’. [...] Jesus não desceu à mansão dos mortos para de lá libertar os condenados, nem para abolir o inferno da condenação, mas para libertar os justos que O tinham precedido” (Catecismo da Igreja Católica, 633).

Portanto, nesse primeiro sentido, a palavra portuguesa “inferno”, ou seu plural “infernos”, designa apenas o lugar dos mortos, tanto justos quanto injustos. Mas ela também significa, em outro sentido, o lugar aonde irão parar os injustos impenitentes, para o qual Nosso Senhor empregava outra palavra judaica. Diz mais adiante o Catecismo: “Jesus fala muitas vezes da ‘gehena’ do ‘fogo que não se apaga’, reservada aos que recusam, até ao fim da vida, acreditar e converter-se, e na qual podem perder-se, ao mesmo tempo, a alma e o corpo. Jesus anuncia, em termos muitos severos, que ‘enviará os seus anjos que tirarão do seu Reino […] todos os que praticaram a iniquidade, e hão de lançá-los na fornalha ardente’ (Mt 13, 41-42), e sobre eles pronunciará a sentença: ‘afastai-vos de Mim, malditos. Ide para o fogo eterno’ (Mt 25, 41)” (Catecismo da Igreja \Católica 1034).

Por toda a eternidade e não apenas em um período

Gárgula representado demônio
mordendo o rosto de um condenado
(Catedral de Salisbury, Inglaterra
O que acontecerá com os “infernos”, no primeiro sentido de Mansão dos Mortos? Serão jogados no outro “Inferno”, a fornalha ardente. O livro do Apocalipse diz, a respeito do Fim do Mundo: “A morte e o Hades deram os mortos que estavam neles, e fez-se juízo de cada um segundo as suas obras. Depois, a morte e o Hades foram lançados no tanque de fogo (o tanque de fogo é a segunda morte). E aquele que se não achou inscrito no livro da vida, foi lançado no tanque de fogo (Ap 20, 13-15).

Então, a pergunta é se o “tanque de fogo” é eterno ou ficará vazio algum dia? Novamente, são as Escrituras que nos dão a resposta. O mesmo capítulo do Apocalipse diz:

“E o demônio, que os seduzia, foi metido no tanque de fogo e de enxofre, onde também a Besta e o falso profeta serão atormentados de dia e de noite pelos séculos dos séculos” (Ap 20, 10).

Alguns alegam que “pelos séculos dos séculos” poderiam se referir a um período definido, e não a um estado eterno. No entanto, a discussão sobre o destino eterno de Satanás e seus sequazes está no contexto de uma contraposição com o destino dos justos, que certamente gozarão da visão beatífica por toda a eternidade, e não apenas em um período limitado.

No entanto, se essa consideração óbvia não for suficiente, o próprio Jesus responde à alegação. Lemos no Evangelho de São Lucas:

“Alguém lhe perguntou: ‘Senhor, são poucos os que se salvam?’ Ele respondeu-lhes: Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque vos digo que muitos procurarão entrar, e não conseguirão. Quando o pai de família tiver entrado e fechado a porta, vós, estando fora, começareis a bater à porta, dizendo: ‘Senhor, abre-nos’, ele vos responderá: Não sei donde vós sois. Então começareis a dizer: ‘Comemos e bebemos em tua presença, tu ensinaste nas nossas praças’. Ele vos dirá: Não sei donde sois; apartai-vos de mim vós todos os que praticais a iniquidade. Ali haverá choro e ranger de dentes, quando virdes Abraão, Isaac, Jacob, e todos os profetas no reino de Deus, e vós serdes expulsos para fora” (Lc 13, 23-28).

Juízo Final, Catedral de Notre-Dame, Paris 

Jesus Cristo retribuirá cada um segundo as suas obras

São Gregório Magno e Santo Agostinho comentam que se o Inferno tivesse um termo, então o Céu também deveria ter um. Porque se a ameaça não é verdadeira, então a promessa também não o é. E se a “falsa ameaça” não tem outra finalidade senão afastar as pessoas do mal, então a “falsa promessa” não teria outra finalidade senão atrair os bons para o bem. Como ninguém pode aceitar essa segunda afirmação, logo é preciso rejeitar a primeira e repetir, com a Igreja, que o Inferno é realmente eterno.

Outros textos bíblicos poderiam ser examinados para mostrar que não será reaberta a porta àqueles que foram expulsos do Reino, mas convém dar uma olhada nos pronunciamentos do Magistério. Na época em que se realizou o IV Concílio de Latrão (1215), havia alguns que negavam a eternidade da condenação à ‘fornalha ardente’. Para corrigir isso, o maior dos concílios da Idade Média ratificou solenemente que “Ele [Jesus Cristo] virá no fim dos tempos para julgar os vivos e os mortos, para retribuir cada um segundo as suas obras, tanto aos réprobos quanto aos eleitos. Todos eles ressuscitarão com seus próprios corpos, que agora levam, para receberem de acordo com suas obras, sejam elas boas ou más; para os últimos, castigo perpétuo com o diabo; para os primeiros, glória eterna com Cristo” (Denz. 429).

O Inferno para os que morrem em pecado mortal

Seria necessária uma colossal ginástica verbal para conseguir que perpétuo (perpetuam em latim) signifique algo finito. Se juntarmos o que Jesus disse expressamente, que alguns não serão salvos, com que o Magistério disse, que a punição dos condenados será perpétua, a conclusão lógica e inevitável é que algumas pessoas realmente sofrerão punição perpétua, junto com o diabo. O que significa claramente que o “tanque de fogo” não estará vazio.

Alguém poderia objetar que o Catecismo da Igreja Católica ensina que “é na esperança que a Igreja pede que ‘todos os homens se salvem’ (1Tm 2, 4)” (parágrafo 1821). Mas há uma grande diferença entre pedir que todos se salvem e esperar que o Inferno esteja vazio. Nós devemos rezar e esperar que muitas pessoas se salvem, especialmente aquelas que nos são próximas. Mas essa esperança não pode apagar a convicção de fé expressa em outro parágrafo do mesmo Catecismo: “A doutrina da Igreja afirma a existência do Inferno e a sua eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem imediatamente, após a morte, aos infernos, onde sofrem as penas do Inferno, ‘o fogo eterno’” (CIC 1035).

 

Tudo fazer para salvar nossas almas da condenação eterna

Um inferno vazio desvaloriza a religião católica e deprecia as palavras de nosso Divino Redentor, que nos alertou muitas vezes para evitá-lo. Se suas palavras são meras ameaças sem execução, por que se preocupar e levar uma vida correta, se ninguém está indo para lá? A esperança de que o inferno esteja vazio não é uma miragem inofensiva, porque ela afasta as pessoas de uma prática séria da fé e desestimula que as pessoas façam apostolado para encorajar os outros a emendar de vida, voltar-se para Deus e ir para o Céu.

Ironicamente, a esperança otimista de que o inferno esteja vazio contribui muito para ajudar a enchê-lo. Santo Afonso Maria de Ligório, em seu livro Preparação para a Morte, escreveu:

“Um autor erudito ensina que a misericórdia de Deus mergulha mais almas no inferno do que a sua justiça; porque os pecadores, confiando imprudentemente na misericórdia, não param de pecar e são condenados”.

O que isso significa para nós? Que devemos estar vigilantes quanto ao cuidado de nossas almas. Que devemos fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para evangelizar as pessoas que nos rodeiam. Que devemos rezar muitas vezes a Nossa Senhora: “rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte”. E a melhor maneira de fazê-lo é rezar diariamente o terço ou, melhor ainda, o rosário inteiro.

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6 de março de 2024

Triunfo da Cruz, desmoronamento do mundo pagão e Realeza de Nosso Senhor na Cristandade


Do Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo resultou o esfacelamento dos deicidas, a ruína do mundo pagão e brotou a Cristandade em todo seu esplendor. Vitória do Redentor, confessado com o brado de ódio do imperador Juliano: “Vencestes, Galileu!”. O que comprova que a perseguição à Igreja não a destrói, mas a engrandece! 


Fonte: Editorial da e Revista Catolicismo, Nº 878, Março/2023* 

“O mundo há de meter-vos numa prensa, mas tende confiança, Eu venci o mundo” — disse Nosso Senhor Jesus Cristo aos Apóstolos essas palavras de vida eterna, que valem para todos nós, sobretudo nos momentos em que vacilamos em nossa fé e na certeza da vitória final da Igreja Católica Apostólica Romana.

O próprio imperador Juliano — o último do mundo romano, conhecido na história como “o Apóstata” — acabou confessando essa mesma verdade, quando bradou: “Vencestes, Galileu!”. Ele havia prometido exterminar os cristãos, mas derrotado numa batalha, após ser atingido por uma flecha, jogou seu sangue para o alto e lançou aquele brado de ódio, com o qual reconhecia a vitória d’Aquele que era chamado pelos fariseus de “o galileu, o filho do carpinteiro”. 

Foi o preciosíssimo Sangue de Nosso Divino Redentor que obteve o destroçamento dos deicidas, a derrota do mundo pagão, o nascimento da Cristandade. 

Sem o supremo sacrifico oferecido por Ele na Cruz, no alto do Calvário, o mundo continuaria pagão. Mas desejou que para a destruição do paganismo e a dilatação da Cristandade por todo o orbe, houvesse também o sacrifício dos apóstolos, dos discípulos, dos mártires, dos cruzados, dos santos, enfim, de todos os fiéis que derramaram seu sangue, de corpo ou de alma, em defesa da Fé Católica. Donde o célebre dito de Tertuliano: “O sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. 

Deduzimos essas considerações da leitura dos trechos finais da excelente obra Jesus Cristo, Vida, Paixão e Triunfo, do Pe. Augustin Berthe, que são transcritos na matéria de capa desta edição. 

É esse muito elevado e belíssimo tema que propomos aos nossos leitores como meditação para os dias da Semana Santa. Desejamos a todos as mais escolhidas graças próprias ao período quaresmal e uma Santa e Feliz Páscoa! 
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1 de março de 2024

Bispo Strickland: “Estamos à beira de um precipício de devastação como o mundo nunca viu antes”

Dom Joseph Edward Strickland foi  bispo de Tyler (leste do Texas) de 2012 até 2023, quando foi, devido à sua posição conservadora, destituído pelo Papa Francisco.


O bispo emérito de Tyler, Joseph Strickland, que foi demitido pelo Papa Francisco [uma década] antes de completar 75 anos, publicou uma nova carta pública em seu site pessoal.

Strickland, que acaba de participar do evento político conservador mais importante do mundo, dirige esta carta aos bispos de todo o mundo. 

Na carta, o bispo americano encoraja o resto do episcopado mundial a regressar “a Cristo e ao seu caminho”, e encoraja-os a serem: 

“Ousados como os nossos predecessores do primeiro, segundo e terceiro séculos, muitos dos quais seguiram o Senhor até morte, carregando pesadas cruzes em seu nome. 
“Apoiemos os nossos irmãos, que no século XX foram suficientemente fortes para se manifestarem contra os governantes despóticos, embora fossem uma voz minoritária no seu tempo. No século XXI, sejamos vigorosos em conhecer e proclamar Jesus Cristo como a Luz do Mundo e o Senhor da Verdade. Proclamemos com profunda convicção a plenitude da mensagem de Jesus Cristo e resistamos a qualquer tentação de partilhar apenas a porção da Sua Verdade que o mundo aceita para evitar a ira de um mundo que ainda O odeia”.

O bispo emérito de Tyler enfatiza a necessidade de compartilhar: 

“A gloriosa Boa Nova de que Jesus Cristo é a Santa Palavra encarnada, e que a reverência pela Sua Palavra é a reverência pela Sua Presença real e sagrada entre nós, assim como Ele prometeu”. “Apelemos a um Reavivamento Eucarístico mundial que proclame com novas de grande alegria que Jesus Cristo está verdadeiramente presente — Corpo e Sangue, Alma e Divindade — na Sagrada Eucaristia em cada Missa, em cada sacrário e em cada altar de Adoração Eucarística ”. 

Além disso, Dom Strickland pede aos bispos de todo o mundo que sejam: 

“Firmes e claros em relação a todos os ensinamentos da nossa fé católica que falam da santidade da vida desde a concepção até a morte natural. A Noiva de Cristo proclama a verdade de que Deus nos criou homem e mulher. A Igreja, Corpo místico de Cristo, proclama a verdade de que o casamento é um vínculo sagrado entre um homem e uma mulher, comprometido com a vida e aberto aos filhos, e que este modelo ordenado por Deus guiará a humanidade até o fim dos tempos. Prometamos nunca deixar aqueles que foram apanhados em qualquer tipo de pecado sexual vagando nas trevas de um estilo de vida pecaminoso.”

Neste sentido, Dom Strickland exorta o episcopado a resistir: 

“Às correntes do nosso tempo que procuram criar um mundo à ‘nossa’ imagem e eliminar Deus do seu lugar no centro da sua criação. Resistamos às vozes que muitas vezes vêm de dentro da própria Igreja, que nos chamam a abandonar a verdade que Jesus Cristo proclamou e, em vez disso, tentam distorcer, alterar e atualizar esta verdade até que ela se torne irreconhecível e não mais enraizada na realidade.” 

Sem hesitação, Joseph Strickland encoraja-nos a: 

“Reconhecer que estamos à beira de um precipício de devastação como o mundo nunca viu antes”. Por isso, ele pede “abrir os olhos para as forças do mal que trazem divisão e escuridão, mesmo quando pretendem oferecer um novo caminho para a humanidade. Temos a audácia de dizer ‘não’ a estas tendências que procuram apagar Deus e aniquilar o nosso direito dado por Deus de escolher o bem e o mal em liberdade e autonomia pessoal. “Basta dizer ‘não’ àqueles de vocês que sussurram pelo destronamento de Deus e procuram instalar um Estado global em seu lugar”.
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Artigo traduzido do site espanhol Infovaticana (1º de março de 2024) por Hélio Viana.

26 de fevereiro de 2024

INOCÊNCIA — “sem a qual as coisas não seriam senão o que são”



✅  Plinio Corrêa de Oliveira

Quando menino, no Jardim da Luz da São Paulinho de antigamente, o que constituía um dos meus encantos eram os cisnes à beira do lago. Eles saíam de umas casinholas de porcelana e apareciam majestosos. Realizavam em mim um ideal: moverem-se sobre as águas sem fazer esforço. Eu não percebia que as patas deles faziam esforço, pois nunca fui bom observador nos aspectos “mecânicos” da natureza. 

Eu via o cisne leve, flutuando, gostando da água, mas se sentindo superior a ela, e aristocraticamente olhando a água de cima. De maneira tal, que se tinha a impressão de que da posição do pescoço — numa espécie de “S” sublime — se irradiavam todas as delícias do aristocratismo. 

Depois de contemplar os cisnes, aquela espécie de ápice das delícias do Jardim da Luz, eu voltava para casa considerando uma porção de coisas que dizem respeito à ordem universal vista sob certo ângulo. Era a natureza, mas vista com olhos de um inocente batizado.

Isso me conduzia ao desejo de certa super-inocência, de super-pureza, de super-virtude, que era o necessário para que tudo aquilo atraísse tanto. 

Claude Lorrain, um artista francês, gostava de pintar a luz do sol refletindo sobre as coisas. Às vezes, paredes manchadas, leprosas de tão velhas, mas com o sol batendo, aquelas manchas ficavam parecidas com pedras semi-preciosas enchendo a parede.

Há uma frase, esta de outro francês, o poeta Edmond Rostand, como que saudando o sol e dizendo: “Le soleil, sans lequel les choses ne seraient que ce qu'elles sont”. (O sol, sem o qual as coisas não seriam senão aquilo que são). 

Analogamente, poder-se-ia a fortiori assim saudar a inocência: “sans laquelle les choses ne seraient que ce qu'elles sont”. Ou seja, o mesmo jardim, visto por um menino sem inocência, que teria vontade de matar os passarinhos, de sair correndo para pegar um cisne, de quebrar a casinha dele, de promover brigas de uns com os outros, veria as coisas como elas são, sem as luzes do sol. 

Já um menino inocente via uma ordem de coisas como elas deveriam ser no que havia de melhor, apontando para o que elas deveriam ser de um modo superior.  

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Excertos da conferência proferida pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira em 29 de agosto de 1992. Esta transcrição não passou pela revisão do autor.

21 de fevereiro de 2024

Morto prematuramente o maior opositor de Putin



  Paulo Roberto Campos 

Na Rússia putinista aconteceu o que todos os analistas políticos sérios receavam: a morte de Alexeï Anatolievitch Navalny [foto]. Certamente, não por causas naturais, mas foi morto. Tinha apenas 47 anos. Era o maior opositor do ditador comunista Vladimir Putin.

Ocorrido no último dia 16, o fato indignou boa parte do mundo, mas não surpreende aqueles que acompanham os acontecimentos na Rússia atual. Não é o primeiro caso e nem será o último morto em circunstâncias misteriosas e suspeitas. 

Navalny provavelmente seria eleito no lugar de Putin [foto] caso na Rússia houvesse eleições livres. Como se sabe, lá elas são inteiramente manipuladas pelo Kremlin, que segue com o mesmo histórico das “eleições” durante a triste era soviética. Na época da URSS, os candidatos do Partido Comunista sempre “venciam” as eleições aproximadamente com 90% dos votos... Quem dirá “me engana que eu gosto”? 

O mesmo ocorria com líderes comunistas de outros países, como em Cuba, onde Fidel Castro sempre foi reeleito com quase 100% dos votos. Por mais de 50 anos, ele foi praticamente candidato único... 


Os mesmos métodos tipo KGB 

Assim, sem Navalny como concorrente, nas eleições presidenciais do próximo dia 15 de março, o autocrata Putin, será novamente “reeleito” com os votos — dirá o Kremlin — da “imensa maioria”. Ele se perpetua no Poder com seu 5º mandato, ficando no comando, pelo menos, até 2030! 

Qualquer um que tenha apoio popular na Rússia, com real possibilidade de ser eleito e ousar candidatar-se será tirado do caminho, como ocorreu com Navalny, um mês antes do pleito. Já em 2018, quando se candidatou, fora impedido de concorrer, acusado de organizar manifestações contra o governo e de tentar depor Putin... 

Navalny, além de já ter sido preso algumas vezes por participar de protestos contra o déspota russo, sofrera alguns atentados. Em 2017, enquanto caminhava numa rua, foi atacado por agentes do serviço secreto com um spray que quase o deixou cego. Em 2020, num voo de Tomsk (Sibéria) a Moscou passou mal e teve de ser internado. Havia sido envenenado.

Temendo a morte, conseguiram levá-lo para a Alemanha, onde médicos especialistas do hospital militar de Berlim descobriram o tipo de veneno que usava a KGB, o letal tóxico Novichok. [foto]. Assim, puderam salvá-lo. Laboratórios alemães, franceses e suecos confirmaram o envenenamento por esse neurotóxico colocado na roupa de Navalny. 

É fabricado apenas por laboratórios muito avançados (na Rússia há alguns que forneciam para a KGB), afeta o sistema nervoso e leva a vítima à morte. Outras vítimas de Putin sofreram o mesmo tipo de envenenamento, mas não tiveram a mesma sorte, tiveram mortes atrozes. 


Eliminação dos concorrentes 

Navalny com a esposa Yulia Navalnaya

Depois de ter recuperado a saúde na Alemanha, em 2021 Navalny retornou à Rússia, mas logo ao desembarcar no aeroporto de Moscou foi preso, acusado de não ter respeitado a “liberdade condicional”. É o vale tudo para se eliminar os opositores do novo Tsar russo. Seu recado é claro: se algum outro concorrente surgir para sucedê-lo, terá a mesma sorte... 

Mesmo trancado no presídio, o prestígio de Navalny crescia. Era corajoso, carismático e popular, sobretudo entre os jovens, contava com milhões de seguidores nas redes sociais. Por meio de auxiliares, ele criticava a invasão russa na Ucrânia — o que na Rússia é considerado crime... 

Em 2022, numa das audiências no Tribunal, acusou Putin de iniciar uma “guerra estúpida, sem nenhum propósito ou significado”. Também criticava a enorme corrupção e a podridão do governo russo, por ele caracterizado como sendo composto por “vigaristas e ladrões”. 

Mais recentemente, ele anunciou uma campanha contra a reeleição de Putin nas eleições do próximo mês, mostrando que será uma eleição-farsa. O todo poderoso Putin, sentido seu trono ameaçado, mandou seu rival para bem longe a fim de ficar praticamente incomunicável. 

No final de dezembro passado, desapareceu da prisão de Vladimir (a 250 km de Moscou), e reapareceu dias depois numa prisão na Sibéria (a 2000 km da capital) para cumprir pena de 30 anos! 


Condenado sem ter praticado crime 

A mãe de Navalny, Liudmila Navalnaya [foto], o havia visitado naquele cárcere no dia 12 último e declarou que o filho estava bem de saúde e bem animado, apesar de estar em “Lobo Polar”, uma das prisões mais temidas do mundo, localizada na Sibéria, onde as temperaturas chegam a 42 graus abaixo de zero! Neste mês de fevereiro, o clima está ‘ameno’, mais ou menos 30 graus negativos... 

Conhecida também como IK-3, é uma prisão de segurança máxima na região de Yamalo-Nenets, no Ártico [foto abaixo]. Construída nos anos 60 num antigo campo de concentração da União Soviética, para onde eram mandados os dissidentes do regime comunista. Conta com 1000 detentos, os criminosos mais perigosos da Rússia, como assassinos em série, estupradores e pedófilos contumazes. 

Mas no caso de Navalny foi condenado sem ter praticado nenhum crime, mas suspeito de ter ajudado organizações para depor o ditador russo. Muitos achavam que ele ficaria naquela “colônia penal” pelo resto de sua vida, ou pelo resto da vida de Putin. 

Em isolamento total, lá os presos são proibidos de manter qualquer comunicação sob severas penas. Na primavera os presos sofrem pavorosamente com enxames de mosquitos; no inverno são forçados a ficar imóveis na neve, se um deles se move, todos recebem jatos de água gelada. 

As celas não têm janelas, em algumas o condenado só consegue ficar agachado. Não podem fazer caminhadas, a não ser dentro de uma pequena jaula uma vez por dia durante 90 minutos. Mesmo nestas condições, Navalny estava bem. Na véspera da morte, numa audiência, ele se apresentou saudável, sorrindo e bem humorado brincando com o juiz. 


Mortes não esclarecidas 

Navalny é o 9º opositor de Putin que morre de modo misterioso. Alguns morreram “caindo” das janelas ou sacadas de seus apartamentos... Ou foram defenestrados pelos agentes dos serviços secretos? 

Dezenas de jornalistas e políticos que fizeram oposição a Putin só tiveram uma alternativa para escapar da prisão e possivelmente da morte: fugiram da Rússia. Dos que ficaram alguns foram atropelados ou baleados “acidentalmente”, morreram em seus carros explodidos, envenenados com chá com polônio radioativo, outro teve o avião “implodido” [foto].

É o caso mais famoso do ano passado. O chefe do ‘Grupo Wagner’, Yevgeny Prigozhin, depois de décadas de serviços especiais prestados a Putin, foi acusado de traição e tramar um golpe de Estado. 

Assim são as coisas na Rússia putinista, e Navalny entra para mais um na lista de opositores de Putin que morreram misteriosamente. Lista extensa e negra de assassinatos encomendados pelo Kremlin, que nunca serão esclarecidos. Menos mal que várias autoridades do mundo ocidental responsabilizaram diretamente Putin pela morte de Navalny.

Realmente seria preciso muita ingenuidade para não se colocar a culpa em Putin. Já o presidente brasileiro [na foto com Putin], ao ser indagado, disse que esperará o resultado dos exames antes de se pronunciar. Mas aí não é por ingenuidade, mas para tentar salvar o ditador russo, assim como age em relação aos ditadores, como o de Cuba, Venezuela e Nicarágua.
Forças policiais reprimindo manifestação pró Navalny

Um dia virá, a Rússia será verdadeiramente anticomunista 

No dia seguinte à morte de Navalny, familiares pediram seu corpo para o sepultamento, mas não obtiveram até esta data (21 de fevereiro). A própria mãe retornou à prisão no Ártico para ver o corpo do filho, mas não conseguiu, deram-lhe apenas um documento afirmando que Navalny morreu no dia 16 de fevereiro às 2:17 da tarde. 

No documento não há explicação da causa mortis... Tudo leva a crer que o Kremlin está ganhando tempo para encobrir as provas do assassinato. 

A viúva de Navalny, Yulia Navalnaya [foto com o esposo e filhos], que sequer pôde ver o corpo do marido no necrotério, acusou diretamente Putin de ter mandado envenenar o marido. Ela disse que o governo russo espera os vestígios do veneno ministrado desaparecerem do corpo para só depois entregá-lo à família. 

Em várias cidades russas as ruas foram tomadas por manifestações acusando Putin de ser o culpado por ter calado a principal voz da oposição. Mas elas foram duramente reprimidas pela polícia, que efetuou, até o momento, quase 500 prisões de manifestantes.

Mesmo com proibição policial, centenas de simpatizantes depositaram arranjos florais na “Pedra Solovetsky” — monumento às vítimas da repressão política, que fica em frente ao Kremlin, onde outro líder oposicionista foi morto em 2015. 

Flores vermelhas colocadas na neve bem simbolizam o sangue que se verterá em defesa de uma Rússia verdadeiramente anticomunista. Um dia virá!